terça-feira, 17 de março de 2015

Hoje no site Estadão à Noite, o meu texto abaixo:


Uma advertência aos palacianos de todos os matizes

Roberto Romano/Unicamp.

As manifestações de massa interessam a todos os regimes, da ditadura à democracia. Existe um saber acumulado sobre o fenômeno, com várias explicações para ele. O fato ocorre desde que os homens se reúnem em coletividades. Ele se notabiliza na democracia de Atenas e nas revoltas da plebe romana contra os aristocratas. Na Idade Média, após a prisão dos pobres nos feudos (laicos ou da Igreja),  multidões se espalham pela Europa. A única fuga dos que viviam sob os nobres era a peregrinação aos santuários, que recebem milhares de peregrinos. É o caso de São Tiago de Compostela e das catedrais dedicadas à Virgem Maria. Os camponeses deixam os domínios feudais, apreciam as estradas, as periferias urbanas renascentes, as feiras. E não retornam ao lugar de servidão. “O ar das cidades liberta”.  Como as corporações citadinas  só empregam os filhos e apadrinhados dos seus integrantes, falta emprego para os que fogem dos campos. Eles se dedicam a tarefas ilegais como o roubo, sequestro, assassinato, etc. As cidades se tornam  perigosas para a vida comum e para o comércio. Nos séculos 13 e 14 os frades mendicantes (franciscanos e dominicanos sobretudo), servem como “pacificadores” de rebeliões, afastam as vinganças dos que têm familiares mortos, assaltados, etc.

No moderno Estado absolutista a massa (a Mob…) causa revoltas e atentados contra os governantes. Entre os teóricos políticos se retoma a ojeriza contra a plebe, o povo perigoso e inculto. Povo e ralé são identificados e os movimentos populares contra os abusos dos aristocratas e reis são esmagados. É o que ocorre com a revolta dos camponeses alemães, sufocada pelos exércitos principescos com as bençãos de Martinho Lutero, de um lado, e da hierarquia católica de outro.

No século 17 inglês a Revolução puritana derruba o rei, corta a sua cabeça e instaura a igualdade legal dos cidadãos.  Milton, o poeta do “Paraíso Perdido”, republicano convicto, redige o clássico “The Tenure of Kings and Magistrates”, onde  defende a liberdade de imprensa e o dever, para as autoridades, de prestar contas ao povo soberano das finanças e dos recursos humanos do Estado. Não por acaso o partido plebeu que conduz a mudança rumo à democracia chama-se “Os Niveladores” (The Levellers). “Accountability” é o nome dado para a prestação de contas, nas democracias instauradas no século 18 nas colônias inglêsas da América. Na França a mesma exigência foi estabelecida para os governantes.  

No Brasil, os partidários do regime democrático foram esmagados pelo poder colonial português e pelo Império. Aqui os seguidores de Francis Bacon, John Locke, Voltaire, Diderot e outros luminares das Luzes, foram exterminados nas várias revoltas liberais que surgiram de Norte a Sul nos séculos 18 e 19.  As massas, bem ao modo absolutista, continuaram a ser vistas com desconfiança e horror pelos operadores do Estado. Era a “gente ordinária de vestes”. Ordinária porque no Antigo Regime certas cores de vestimentas, certos tecidos, etc, eram privilégios dos nobres e clérigos.

Embora esmagadas pela repressão, as massas expressam seu inconformismo contra a autocracia estatal. Durante a ditadura de 1964 tivemos as manifestações pelas diretas, pela anistia. Depois veio o movimento contra Collor e  as demonstrações, em 2013, de repulsa às péssimas políticas públicas brasileiras, transporte, água e esgoto, segurança, saúde, educação, etc. Elas também impediram atrocidades planejadas pelos parlamentares como a abolição da lei da Ficha Limpa, a máxima atenuação da Lei de Improbidade Administrativa, o emasculamento do Ministério Público na PEC 37. Agora as multidões mostram sua indignação contra os corruptos de todos os partidos e poderes, exigem responsabilidade (accountability) dos governantes.

 Ver perigo no povo reunido é próprio de mentes contrárias à república e à democracia. Os ideológos e palacianos que se limitam a definir as massas com suas carcomidas etiquetas (“esquerda”, “direita”) devem pensar em vez de distribuir slogans. A má fé grassa quando eles dizem que na Paulista existiu coro unânime em prol do retorno dos militares. A mentira salta aos olhos:  basta ter seguido de fato as manifestações, usar o juízo sem recorrer às tolices partidárias. Basta ser honesto intelectualmente.  Resta dizer aos parasitas do Estado que habitam os palácios, desprezam ou temem a cidadania : “respeitem e prestem contas ao povo soberano!”.

 Roberto Romano é professor da Unicamp e autor de Razão de Estado e outros estados da razão E. Perspectiva, 2014.