domingo, 23 de novembro de 2014

Revista Interesse Nacional, Roberto Romano

 Revista Interesse Nacional.

Ano 5 - número 20
janeiro-março 2013

 Roberto Romano

 Favor e Corrupção – Algumas Reflexões Éticas

Erich Auerbach, pensador e hermeneuta do século XX, expõe sua visão da propaganda (demagógica e totalitária) na figura do palco e do holofote. Ao criticar o estilo das Luzes militantes (frases rápidas que induzem o leitor a conclusões injustas sobre indivíduos, grupos e instituições), ele recorda que o mundo humano é um imenso palco, onde inúmeras cenas surgem ao mesmo tempo. O propagandista social, político e econômico ilumina uma ou outra cena e deixa as demais na obscuridade. Quem está na plateia tem a sensação de atingir a verdade, pois a parte iluminada é verdadeira. Como, no entanto, os demais aspectos ficam no escuro, ele não testemunha toda a verdade. “E da verdade, faz parte toda a verdade”. Auerbach lembra que a busca do verdadeiro exigiria tempo suficiente para iluminar o maior número possível de cenas. “O público sempre volta a cair nestes truques, sobretudo em tempos de inquietação, e todos conhecemos bastantes exemplos disto, do nosso passado mais imediato. “Contudo, o truque é, na maior parte dos casos, fácil de ser descoberto; mas falta ao povo ou ao público, em tempos de tensão, a vontade séria de fazê-lo. Quando uma forma de vida ou um grupo humano cumpriram o seu tempo ou perderam prestígio e tolerância, toda injustiça que a propaganda comete contra eles é recebida, apesar de se ter uma semiconsciência do seu caráter de injustiça, com alegria sádica”.1 A imprensa, os movimentos, os políticos e as instituições estão imersos no tempo rápido, dominado com técnica refinada pela propaganda.
No caso da Ação Penal 470, é possível notar o quão é útil a figura imaginada por Auerbach. Primeiramente, pela seleção das cenas e dos atores. Como em outros escândalos que atraíram o olhar público (desde o “mar de lama” atribuído ao governo Getúlio Vargas pela UDN ao impedimento de Collor, passando pelos “Anões do Orçamento” e similares) faz-se um recorte de atos e personagens, atribuindo-lhes todos os malefícios da República. Quem denuncia os desmandos é tido como herói sem mácula. Não se diz naqueles instantes que o ato de desmascarar, não raro, é uma forma das mais odiosas de poder autoritário e serve para esconder os intentos e atos dos acusadores. “Nada impede que o ator use uma máscara por baixo de outra” diz Elias Canetti no monumento ético e político chamado Massa e Poder. A máscara duplicada no rosto de quem aponta o dedo para os demais é “arma ou instrumento que deve ser manipulado”.2
Para compreender o processo julgado pelo STF é preciso examinar outras cenas transcorridas em tempos recuados da história ética e política. Felizmente, existem revistas como Interesse Nacional que não se pautam pelo tempo rápido e abrem espaço para considerações que exigem uma cronologia alheia à propaganda. As ações tortuosas do passado continuam a existir no presente e se instalam na maioria dos partidos políticos brasileiros. Não posso ser exaustivo. Escolho o que julgo mais grave em nossa ordem social e política. Outros analistas examinarão com argúcia e rigor vários ângulos do tema.

1 Auerbach. Erich: “A ceia interrompida” in Mimesis (São Paulo, Ed. Perspectiva, 1971), p. 352.
2 “O personagem e a máscara”, Massa e Poder (DF, Ed. Univ. Brasília, 1983), págs. 418 e 419.
 
Começo com o pretérito que nos gerou o absolutismo, forma estatal predominante quando o Brasil foi assumido como Colônia de Portugal. No fim, deduzirei os problemas que nos afastam da ordem democrática moderna, a partir da herança, ainda não ultrapassada entre nós, do Antigo Regime.
O Estado depende da sociedade que o envolve e a ética domina as formas sociais. Um lado relevante da ética – a ordem dos costumes – é a reiteração e o automatismo das posturas corporais e dos valores. Agir segundo um modelo aprendido é próprio da ética. A ordem social brasileira segue o favor, obstáculo que impede a autonomia dos eleitores e, de outro lado, distorce a vida parlamentar, a efetividade do executivo nos projetos públicos e, mesmo, a jurisdição. O favor impõe limites para os elos igualitários na vida pública. No mercado, nos partidos, nas igrejas ou seitas religiosas, o favor define espaços de troca que tornam os programas políticos irrelevantes. O favor não é monopólio do Brasil. Em quase todas as sociedades, antigas ou modernas, ele surge como poder. Mas, em países que chegaram à modernidade ele é regulado e seus efeitos anárquicos se atenuam em prol de procedimentos impessoais e abstratos. Em nossa terra, ele concentra o imaginário, os valores e as práticas de famílias, grupos, cidades e regiões, sendo uma forma de “mediação universal”.3 Aqui, político poderoso é o que mais garante favores aos amigos, aos aliados e, não raro, aos próprios inimigos. O favor alimenta alianças políticas, eleva e rebaixa ministros, ordena as pautas legislativas e atormenta os Executivos. Ele sustenta redes  complexas de interesses, lobbiesdisfarçados, trocas entre poderes, corrupção de agentes públicos por empresas privadas. Somos uma antirrepública ou um império do favor. A Ação 470 e similares só podem ser inteligíveis em semelhante quadro.
O favor no Brasil traz os signos de uma história antiga e seus traços podem ser encontrados no Império Romano e na sociedade do Antigo Regime. A frase que nos separa das sociedades democráticas se origina no “enobrecimento” trazido pelo favor. Em terras de língua inglesa a pergunta, quando alguém desrespeita direitos, é clara: “Who the hell do you think you are?”. No Brasil, o “você sabe com quem está falando?” trai o regime do favor e da importância baseada nos “amigos poderosos” ou na família idem.

Favor no Antigo Regime

Iniciemos com o Antigo Regime que nos deu o corpo e a alma em 1500. O Brasil nasce sob o poder absoluto que dava passos decisivos no século XVI. A ordem dos favores impera na corte e nos elos entre nobres importantes e outros menos poderosos. Como enuncia Joël Cornette ao se referir à França, modelo copiado em parcela significativa de países europeus4, o reino “é organizado como uma família mais ampla de início, na qual as ligações de sangue e proximidade são hegemônicas, onde o rei sempre é percebido sob os traços de pai benevolente, o pater familias, concedendo benesses aos seus e sabendo distinguir, entre os próximos, quem as merece (…) Segundo a propaganda oficial, as famílias terrestres do reino apenas transcrevem a família celeste, dos santos, dos anjos, do povo de Deus”.
O rei socorre os seus aliados “construindo uma rede familiar e doméstica que assegura a boa marcha do governo. Para tanto, é preciso achar subsídios. Os monarcas mais espertos elaboraram com seus conselheiros sistemas que ligam o “doméstico ao administrativo”, a fidelidade à venalidade, o “serviço de sua pessoa na administração da coisa pública”. A monarquia criou em permanência a estrutura clientelar com ramos horizontais no espaço geográfico, limitadas apenas pelas fronteiras, com implicações verticais na hierarquia social”.5

3 Maria Sylvia Carvalho Franco, “Homens Livres na ordem escravocrata”.
4 “La monarchie, entre Renaissance et Révolution, 1515-1792, Histoire de la France Politique-2”, (Paris, Seuil, 2000), página 518.
5 Cornette, op. cit. página 519.