domingo, 2 de novembro de 2014

Estadão Política




Não há reforma que solucione toda a política

LOURIVAL SANT’ANNA - O ESTADO DE S.PAULO
02 Novembro 2014 | 03h 00

Especialistas divergem sobre o que e quando mudar e como incluir a sociedade no debate, que não pode ser visto como remédio único

Em seu discurso da vitória, no domingo passado, a presidente Dilma Rousseff elevou a reforma política ao topo de sua agenda. Mas, entre especialistas, há divergências sobre os principais pontos da reforma política - financiamento exclusivamente público, lista fechada e voto distrital - e até mesmo sobre a conveniência de se fazê-la.
O tema, anunciou Dilma, seria objeto de plebiscito, como resposta às manifestações e aos escândalos de corrupção. A proposta foi recebida com frieza no Congresso. O PMDB, o maior aliado do governo, descartou a possibilidade de plebiscito, levando Dilma a recuar. Ao aceitar que a reforma seja aprovada em referendo, o governo devolve ao Congresso o controle sobre seu conteúdo e, principalmente, seu ritmo.
“Não existe nada de intrinsecamente ruim no sistema político brasileiro”, diz Luciano Dias, da CAC Consultoria Política, de Brasília. “A reforma organizada vem sendo feita pelo Judiciário.” Entretanto, “toda vez que o Judiciário faz uma reforma que o sistema político não aprova, ele a derruba”, afirma Dias, lembrando o caso da verticalidade, em que o Supremo Tribunal Federal impôs coerência nas coligações estaduais e federais, e o Congresso votou depois uma lei permitindo que os partidos se coliguem como quiserem.
“Não convém estar mudando”, recomenda Leôncio Martins Rodrigues, especialista em representação política. “Para que um sistema ganhe legitimidade, é preciso tempo. Quando mudam rapidamente as regras do jogo, enfraquece a Constituição democrática. É preciso cuidado e não alimentar ilusões. Políticos não vão deixar de ser corruptos só porque mudaram as regras do jogo. Não há sistema eleitoral perfeito. Veja os problemas que tem o sistema americano.”
PONTOS DE VISTA
Marcio Fernandes/Estadão
“Usar plebiscito para resolver problemas que podem ser resolvidos no sistema de representação comum é abusar do plebiscito. Referendo não é a mesma coisa, mas é quase” - Roberto Romano (PROFESSOR DE ÉTICA DA UNICAMP)
Momento. “Acho que este momento não poderia ser pior para uma tentativa de reforma”, critica Bolívar Lamounier, consultor e cientista político. “O País está muito dividido, e a pauta prioritária é a econômica. Soa como tentativa de entulhar a pauta para o Congresso se ocupar com reforma política e não acompanhar a questão econômica, o escândalo de corrupção na Petrobrás etc.” 
Já outros especialistas acham que uma reforma é necessária e o momento, propício. “Desde junho de 2013, as manifestações apontaram para algo dessa natureza”, analisa Maria do Socorro Braga, da Universidade Federal de São Carlos. “A presidente tentou, mas o Congresso recusou. Ela saiu vitoriosa da eleição, com forte apoio da militância do PT. Pode ser um bom momento.”
“Você tem aí uma certeza geral de que ajustes precisam ser feitos”, observa Marco Antonio Teixeira, da FGV. “Alguma resposta tem de sair neste momento, principalmente na questão do financiamento”, diz ele, referindo-se ao escândalo de corrupção na Petrobrás. “Se não mexer agora, o Supremo vai fazer mudança drástica.” O STF vai decidir sobre a legalidade de doações de campanha por empresas. 
“Essa reforma vai sair porque a iniciativa, desta vez, virá do Supremo”, aposta Bruno Speck, da USP, que estuda financiamentos de campanhas. “Se a proibição do financiamento empresarial sair, não será mais possível ignorar esse assunto. Forçará os outros atores a tomar posição mais clara.” O Congresso tem duas opções, acredita Speck: ou muda a Constituição para permitir o financiamento pelas empresas - o que ele acha improvável, porque “pegaria muito mal” - ou reforma o sistema, limitando as doações de empresas ou instituindo financiamento exclusivamente público.
Consulta. Para Lamounier, o debate sobre se a reforma deve passar por plebiscito ou referendo é inócuo. “Dá na mesma. No plebiscito, pede-se antes à população autorização para o Congresso votar o projeto; no referendo, pede-se depois aprovação para matéria extremamente complexa votada pelo Congresso.”
“O povo não sabe o que está escrito na Constituição a respeito das instituições políticas”, diz o cientista político. Ele teme que se crie um “clima plebiscitário que abrirá caminho para coisas inaceitáveis, como o controle do conteúdo da mídia”.
“O apelo à soberania popular deve ser feito em momento de crise insolúvel”, analisa Roberto Romano, professor de ética da Unicamp. “Usar plebiscito para resolver problemas que podem ser resolvidos no sistema de representação comum é abusar do plebiscito. Referendo não é a mesma coisa, mas é quase.” Ele se preocupa com o risco de manipulação do resultado por meio da formulação das perguntas. “Nem da parte dos dirigentes nem da população tem condição de se fazer uma coisa prudente”, adverte. “Praticamente todo o sistema poderá ser modificado por um cheque em branco. Acho gravíssimo.”
“No cenário ideal, o plebiscito seria muito melhor”, opina Teixeira. “Não vejo como tomar uma decisão dessa sem incluir a sociedade.” Maria do Socorro explica que a ideia de consulta popular tem a ver com o fato de a base do governo ter saído da eleição com maioria mais estreita. “O Congresso nunca quis reforma”, constata a socióloga. “Reforma política sempre vai privilegiar um grupo, e quem propõe leva vantagem. Por isso a presidente joga para a população, para não ser afetada pela imprevisibilidade dos players.”


Financiamento, distrital e lista são polêmicos

LOURIVAL SANT’ANNA - O ESTADO DE S.PAULO
02 Novembro 2014 | 03h 00

Modelos cheios de nuances seriam difíceis de escolher em consulta popular, e Congresso não quer mudanças

JOSÉ PONTES LUCIO/ESTADAO
Posição. Cláudio Couto, da FGV, defende voto distrital misto
O financiamento exclusivamente público das campanhas eleitorais deve ser o principal objetivo da reforma política, na visão de Maria do Socorro Braga, da Universidade Federal de São Carlos: “Há escândalos em todos os partidos, alguns apurados, outros não. Campanhas cada vez mais caras. Caixa 2 é comum. O poder econômico tem muito peso. PT e PSDB ganham grandes somas”. 
Ela ressalva que, para funcionar, o financiamento público precisa de uma Justiça eleitoral com meios de punir quem não cumprir as regras. “No México não deu certo porque houve muita corrupção. Não havia instituição para punir, e as pessoas continuaram usando dinheiro privado.”
“Financiamento público só funciona se associado a punições draconianas aos transgressores”, concorda Cláudio Couto, da Fundação Getúlio Vargas. Segundo ele, empresas não votam, e portanto devem ser proibidas de financiar campanhas. Também deveriam ser submetidas a prejuízos econômicos severos, se doassem ilegalmente. Mas doações individuais poderiam ser mantidas, desde que fosse estabelecido teto para nivelar as chances de participação de eleitores de diferentes faixas de renda.
Marco Antonio Teixeira, da FGV, também é a favor de um teto para as doações, mas não do financiamento exclusivamente público. Ele observa que a grande justificativa de todo governo para não fornecer serviços públicos de qualidade é a falta de receita. Como justificar, então, destinar uma parte de recursos tão escassos para o financiamento de campanhas? Luciano Dias, da CAC Consultoria Política, acrescenta um dado: em torno de 90% dos eleitores rejeitam o financiamento exclusivamente público, segundo pesquisas.
“Financiamento público afasta os partidos dos eleitores”, pondera Bruno Speck, da USP. “Partidos são arredios. Receber bolada sem fazer nada é muito melhor.” Para evitar que eles passem a depender menos dos cidadãos, o especialista recomenda a adoção de financiamento público indireto: os eleitores escolheriam para quem seriam feitas as doações, ainda que bancadas com recursos públicos. 
“Enquanto os partidos tiverem essa estrutura, não adianta pensar que um ou outro financiamento será a salvação da lavoura”, descarta Roberto Romano, da Unicamp. “As oligarquias mandam nos grandes partidos. Controlam tudo: alianças, supostos programas, o cofre e o horário eleitoral, que usam como moeda.” Para ele, é preciso impor eleições primárias e mandatos de dois anos para os dirigentes, sem reeleição. Além disso, será preciso mudar a Justiça eleitoral, “leniente com o governo e rigorosa só com a oposição”. 
Com o atual sistema de voto proporcional, listas abertas e coligações, os eleitores não têm controle sobre o destino de seu voto, que ajuda a eleger candidatos que ele nem conhece, e os dirigentes partidários distribuem recursos e tempo no horário eleitoral da forma como querem. Um modelo bastante defendido no Brasil é o voto distrital misto com lista fechada, pelo qual parte dos candidatos estaria vinculada a distritos e outra parte, não, mas os eleitores saberiam de antemão a ordem de prioridade dos candidatos em cada partido.
Paróquias. O fim do voto proporcional, principalmente se acompanhado de cláusulas de desempenho mais exigentes, teria o efeito de reduzir o número de partidos, que também é um problema da democracia brasileira. O voto distrital aproxima eleitores e eleitos e possibilita maior cobrança. Mas, se for puro, elimina candidatos comprometidos com pautas mais globais, como meio ambiente e defesa das minorias. A política ficaria reduzida mais ainda às questões “paroquiais”, como obras e verbas para cada localidade.
Teixeira observa que, mesmo sem o voto distrital, os vereadores, principalmente em metrópoles como São Paulo, já não têm uma visão global da cidade. “Discussões como a do plano diretor, mobilidade urbana e educação perdem a qualidade.”
A lista fechada reduz o peso do voto em indivíduos. O modelo distrital evita que o candidato viaje longas distâncias. Essas duas características diminuem o custo das campanhas, explica Couto, que prefere o voto distrital misto. Na lista fechada, o cálculo continua sendo proporcional. A diferença é que o eleitor tem como prever como seu voto será distribuído.
O consultor Luciano Dias, que nega a necessidade de reforma política, lembra que os eleitores se colocam nas pesquisas contra a lista fechada. Essa rejeição tem a ver com a imagem ruim dos partidos. No entanto, argumenta Couto, “se tiver primárias, reduz o peso das oligarquias e oxigena os partidos”.
Mas não seria simples organizar o voto distrital em um país com as dimensões do Brasil, advertem Leôncio Martins Rodrigues, especialista em representação política, e Maria do Socorro. Em regiões escassamente povoadas, como as da Amazônia, haveria distritos gigantescos. 
É difícil imaginar como temas tão complexos e cheios de nuances podem ser decididos em consultas populares. Assim como esperar que políticos eleitos pelo sistema atual tomem a iniciativa de modificá-lo. / L.S.

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