domingo, 12 de outubro de 2014

Maria Sylvia Carvalho Franco, Caderno Aliás, O Estado de São Paulo, 11/10/2014.


Política da desconstrução

Maria Sylvia Carvalho Franco - O Estado de S. Paulo
11 Outubro 2014 | 16h 00

O recurso à mentira e à repetição persuasiva são a tônica das atuais campanhas eleitorais


FOTIS VROTSIS/GETTYIMAGES
Fórmula. Para vender sabonetes ou candidatos, é preciso atingir o âmago do público
Em todos os tempos a violência - assassinatos, perfídias, traições, calúnias, fraudes, maledicências de toda sorte - tece a história das instituições políticas, culminando com as tiranias, campo por excelência da injustiça. Modernamente, os especialistas em desmoralizar o adversário são os spin doctors, sombrios personagens encarregados de criar e difundir boatos no intuito de “desconstruir” (no jargão moderno) o antagonista. Sem dúvida, essa técnica surte efeitos positivos para seus manipuladores.

No cerne dessa rede publicitária está a falácia dos argumentos repetidos ad nauseam, fundados no pressuposto de que, quanto mais reiterados, mais corretos parecem e mais eficazmente são incutidos no ânimo do cidadão, sejam verazes ou falsos. Um bom exemplo dessa operação é oferecido pela publicidade mercantil americana, focalizado em romance e filme da década de 1940 no qual um magnata delineia as bases da boa propaganda: “Uma simples e boa ideia repetida até que o público esteja tão irritado que compre sua marca porque não consegue esquecê-la”. A seu ver, os profissionais da propaganda temeriam perder clientela, mas, ao contrário, diz ele, “o público gosta disso se você souber como fazê-lo relaxar e divertir-se.” (Vance Packard, The Hidden Persuaders). Note-se a sequência: um estado de tensão, de desgosto, sanado pela experiência prazerosa. 

Foi a esse modelo - a publicidade comercial norte-americana - que Gobbels disse reportar-se ao conceber a propaganda nazista. Com efeito, associada ao relato acima, a frase atribuída a Goebbels, “a mentira repetida mil vezes torna-se verdade”, insere-se em um circuito complexo de emoções conduzindo ao consentimento. Ironicamente, foi Edward Bernays, judeu austro-americano conselheiro de Woodrow Wilson, que forneceu a Goebbels a engenharia psicossocial que orientou suas bem-sucedidas campanhas. Ao recurso espalhafatoso das grandes reuniões e discursos ruidosos ele associou técnicas sutis de persuasão, valendo-se da imagem, da música, do esporte, de mensagens indiretas. Note-se que Bernays, assim como seu associado Lippmann, partiam da premissa de que os indivíduos, na multidão, abstraem inibições, abandonam padrões morais, perdem a capacidade crítica e racional, tornam-se altamente emotivos, descambam para a violência (Le Bon). Por isso mesmo, as massas, por meios de estímulos e reflexos (Pavlov), precisariam ser condicionadas por um conjunto preciso de opiniões e juízos predeterminados pelos “virtuosos”. Para esses pioneiros da propaganda moderna - pasme-se! -, tais controles seriam essenciais para preservar a democracia. Indiferente à mentira ou à verdade, o objetivo, vender sabonetes ou eleger políticos, é atingir o âmago do público e dirigi-lo para os fins estabelecidos. 

Goebbels conhecia e admirava essas técnicas de controle e, doutor em filosofia, estava bem preparado para acioná-las. Para ele, assim como para Hitler, os atributos das massas populares - falta de memória, estupidez, reduzida capacidade de compreensão, intensa emotividade - as tornavam propícias à persuasão e acarretavam a necessidade de dirigi-las. Poucas ideias simples e essenciais devem ser intensamente repetidas até que o último obtuso as compreenda e delas se lembre. 
Nessa linha de argumentos, os métodos de Bismarck foram também objeto de interesse para Goebbels, tal como a utilização de “turmas especiais de boateiros” (Gerüchtemacher), não tardando ele em organizar dossiês contra adversários e preparando-se para usá-los e distorcer os “fatos” no momento azado. O insulto insere-se nessas técnicas de desmoralização perversa.

Todos esses recursos permanecem vivos nas práticas políticas. A avalanche de imagens insidiosas e de impropérios - mentiroso, corrupto, incompetente, hipócrita - é espantosa e escapa ao mínimo de civilidade. 

O arcabouço teórico e as linhas de ação exploradas atualmente pela propaganda política não têm sequer o mérito da novidade. Descontando-se o rude despudor, as distorções estereotipadas e as premissas diferentes, o recurso à mentira e à repetição persuasiva pode ser rastreado por vários milênios. Platão constitui o ápice desse ideário, embora, antes dele, a tragédia e a historiografia gregas o tenham explorado. Seu tratamento da questão reporta-se especialmente ao adestramento do guardião, o jovem de escol destinado a tornar-se “demiurgo da liberdade”. Sua educação parte da constatação de que, numa polis belicosa, faz-se necessário formar o guerreiro que, em sua gênese, deve unificar predicados contraditórios: doçura para com os de casa, hostilidade com estranhos, articulados ao desejo de conhecimento. O modelo dessa natureza aparentemente impossível é encontrado no cão. A humanidade é parte da physis, dos movimentos constitutivos do universo, ordenados e estabilizados na composição do cosmos pelo demiurgo divino (Timeu), participando de sua dinâmica geradora, entretecida nas coisas e nos indivíduos, em seus corpos e almas, em suas percepções, desejos, saberes, em suas vozes e atos. 

Apesar dos fortes vínculos que o unificam, a formação compósita do cosmos abre-se para a possibilidade de sua ruptura, donde a necessária e constante atenção a sua “sustentabilidade”. No caso do guardião, é preciso cuidar para que não se transforme de cão de guarda em lobo devorador. Essas figuras não formam apenas uma alegoria; elas projetam-se na própria natureza humana, em sua efetiva lhanura e selvageria inatas, passíveis de serem dirigidas. 

O poder das palavras, suas implicações sensíveis e seu controle racional, o impacto que desferem ou sofrem, o modo como se cruzam e se fecundam, determinam a retórica, circunscrevendo o enquadramento necessário à discussão socrática sobre a escrita (inerte) e a oralidade (potente), ao mister de operar racionalmente com esses poderes e não apenas de modo empírico. Além do reconhecimento preciso de seu campo de atuação, definindo tanto as almas visadas quanto as forças capazes de atingi-las, o retor precisa regular o poder da palavra, discernindo a oportunidade para acioná-lo ou retê-lo, contraponteando fala e silêncio, manobrando-o eficazmente. 

Esse horizonte físico-político determina a oposição socrática entre monólogo grafado e conversa falada e também define os todos emergentes na linguagem: esses não se formam, se desenvolvem e se mantêm a partir de uma imperturbável teleologia inerente aos sistemas, anterior e superior às suas partes, mas são gerados, compostos e alterados pelo jogo dinâmico dos “poderes”que nele se entrecruzam. Nesse contexto, que envolve certa margem de indeterminação, torna-se imprescindível a arte - política ou medicina ou retórica- enquanto controle racional dessas forças, baseado no acúmulo e transmissão de conhecimentos.

A importância essencial da linguagem falada atravessa o longo percurso do treinamento do guardião, de recém-nascido a jovem militar especializado. Assim como Sócrates se propôs formar uma polis “em palavras”, também o guardião será produzido “em palavras”. No contexto acima lembrado, a dinâmica produtiva operando na retórica, nem a cidade nem o guardião constituem ficções, mas construções sociais e políticas efetivas. Não por acaso, esse adestramento inicia-se pela fiscalização das histórias contadas às crianças por mães e amas, pelas restrições a poetas, a Homero e Hesíodo, aos temas que poderiam, por exemplo, incutir o medo da morte em indivíduos destinados a serem guerreiros. Nessa exposição, a insistência no poder produtivo da palavra conjuga-se ao vocabulário das artes plásticas com variantes de moldar, pintar, produzir. 

Dessa complicada e muito discutida censura lembrarei apenas um aspecto, a mentira. Após discutir como ela é inútil aos deuses perfeitos, afirma que, aos homens ela pode ser vantajosa, como forma de remédio. Platão joga aí com a polissemia do medicamento - to pharmakon -, ao mesmo tempo remédio e veneno, cuja administração, restrita ao médico, é interditada ao homem comum. Com isso, sua assertiva abre-se tanto para o caráter reversível do mito, pode ser veraz ou falso, como para o monopólio da mentira, prerrogativa da razão de Estado: o estadista pode mentir acertadamente para o benefício da cidade, mas não o homem comum, réu do maior e mais destrutivo dos erros. Com tal privilégio, maquinam-se enganos oportunos, “nobre mentira”, para persuadir mesmo os governantes (resta perguntar quem os persuade).

A essa célebre passagem segue-se uma saga de difícil crença: Sócrates propõe que os guardiães suponham que sua educação tenha sido imaginária, como em sonho, mas que, na verdade, durante todo o tempo estivessem debaixo da terra, sendo aí moldados e nutridos. Quando prontos, nasceriam da terra, a qual, como sua mãe, seria defendida, sendo os compatriotas vistos como irmãos. A essa tradição sobre a autoctonia e unidade ateniense segue-se o mito sobre os componentes da cidade, com a reinterpretação do mito hesiódico das três raças, de ouro, prata e ferro. Diante dessas proposições, o interlocutor de Sócrates pergunta se há algum modo de fazer com que esses mitos sejam acreditados ao que ele admite que a presente geração não o fará, mas sim seus filhos, sucessores e o resto da humanidade, guiados pela fala reiterativa. Aí está a semente da operação repetitiva da propaganda. Resta indicar que esse automatismo é invocado por razões de Estado e não para interesses privativos, sendo estabelecidas cautelas, por exemplo, contra a corrupção pelo dinheiro. 

Resta indicar que a analogia do sonho e do processo educativo tem desdobramentos que nos remetem novamente à exploração publicitária comercial e política tendente a atingir o mais profundo dos processos físicos, psíquicos e sociais, tendo o desejo por alvo. Introduzindo a dinâmica da alma na exposição sobre a gênese do tirano, Platão destaca os desejos desnecessários, ativados nos sonhos, quando a parte racional sucumbe no sono e a parte bestial emerge e satisfaz seu próprio modo de ser, desavergonhado, mentiroso, sanguinário. Ao contrário, o homem sóbrio, saudável, prudente, aplaca sua parte selvagem e desperta a racional com belas palavras e pensamentos, dormindo com visões e sonhos conformes as leis e costumes. Se a concepção platônica dos sonhos antecipa a freudiana, inclusive na questão da censura acima assinalada, é questão alheia a essas notas. Entretanto, vale lembrar que o nexo entre sua concepção de sonho e educação evidencia que os procedimentos nesta preconizados visam a chegar, podemos sugerir, até ao inconsciente. Não será talvez ocioso indicar que Bernays... era sobrinho de Freud.

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Maria Sylvia Carvalho Franco é professora titular do Departamento de Filosofia da USP e da Unicamp