domingo, 7 de setembro de 2014

Ancelmo Gois, em O Globo, 07/setembro/2014

gois de papel

O dedo de Deus na política

Desde a eleição de 1933 para a Assembleia Nacional Constituinte, que contou com uma forte participação da Liga Eleitoral Católica (LEC), talvez nunca, como agora, a religião esteve tão influente no resultado das urnas. Um pastor, Everaldo, é candidato a presidente. Marina Silva tem uma agenda evangélica muito clara. Já Dilma e Aécio cedem a um discurso conservador para não melindrar os eleitores evangélicos.

Mas isto não é novo, claro. Roberto Romano, 67 anos, professor de Ética e Filosofia Política da Unicamp e autor do livro “Brasil: Igreja contra Estado”, cita que na República, por exemplo, “após curta temporada de poder dos positivistas e liberais”, há exemplos em que a pauta católica exerceu grande influência política. As marchas da família, a Cruzada do Rosário, do Padre Peyton, e outros movimentos que ajudaram a armar o Golpe de 64 e, mais recentemente, o intenso lobby da CNBB para colocar perspectivas católicas na Constituição de 1988 (a começar com a consagração da Carta ao nome de Deus). “Além disso, a Igreja se manifestou em movimentos, como as comunidades de base, que ajudaram a formar lideranças como a de Marina Silva, educada no catolicismo e convertida em 1997 ao cristianismo evangélico, e a de quadros do PT, do MST, etc.”

O cientista político Sandro Amadeu Cerveira, de 45 anos, pastor da Igreja Presbiteriana Unida, também se refere à Constituinte de 88 como fator importante da entrada dos evangélicos na cena política: “Foi só a partir da segunda metade da década de 1980 que ganhou força a ideia que os evangélicos deveriam participar da política. Antes, havia um consenso de que crente não se mete em política.”

A Constituinte de 88 significaria então, prossegue Sandro, que a lei máxima do país seria escrita do zero: “Havia o risco iminente de que neste processo os evangélicos fossem prejudicados (afinal, os católicos estariam lá) e os valores cristãos desrespeitados (os comunistas, ateus, feministas, abortistas também estariam lá). Com a Constituinte, a máxima dos evangélicos mudou de “crente não se mete em política” para “irmão vota em irmão”.

O desembarque dos evangélicos na arena política ajudou as igrejas a terem acesso a recursos públicos, como concessão de rádio e TV. O cientista político cita o exemplo do Bispo Rodrigues, hoje preso no caso do Mensalão. Em 1998, quando era coordenador político da Igreja Universal, em entrevista à imprensa evangélica (revista “Eclésia”), Rodrigues disse que negociou com FH, em troca de apoio dos evangélicos à reeleição, o veto ao artigo da Lei Ambiental que punia com prisão líderes de igrejas que não respeitassem os horários de silêncio.

Já Romano lembra que, a partir dos anos 1960, com o fervor trazido pelos evangélicos, que souberam aproveitar a crise do catolicismo nacional e com a queda da tradição nos ritos católicos, as massas religiosas passaram, em grande parte, para o campo do protestantismo. “Desde então os evangélicos lutam para ultrapassar a hegemonia católica, sabedores que a fonte da hegemonia é o poder estatal.” E alerta que “sempre que a democracia laica entra em crise (e vivemos uma crise do Estado laico e democrático no mundo), as formas religiosas surgem como autoridade máxima”. É o que ele chama de dialética do medo e da esperança. “Quando a segurança estatal mostra fraturas graves, a esperança de sobrevida se esvai e chega o medo da morte. E, no reino da morte, imperam as religiões.”

O temor de muitos é que o avanço destes quadros religiosos na política favoreça práticas antigas, como o clientelismo e o voto do cabresto, onde o eleitor vota, sem discutir, em nomes apontados por líderes religiosos. Para Romano, por enquanto, esta prática é pouco notável, mas pode se tornar hegemônica. “Logo poderemos verificar o ‘bico de pena’ ditado por pastores e padres, de modo a tornar irrelevantes os líderes partidários de todas as correntes. Quem viver, verá.”