quinta-feira, 31 de julho de 2014

Folha, uma entrevista antiga, mas atualissima.

ão Paulo, domingo, 20 de outubro de 1996
Um remédio contra a tagarelice
CÁSSIO STARLING CARLOS
EDITOR-ADJUNTO DO MAIS!
Praticamente em silêncio, Roberto Romano, professor de filosofia da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) preparou e está lançando um minucioso ensaio sobre o filósofo iluminista Denis Diderot (1713-1784).
Em "Silêncio e Ruído - A Sátira em Diderot", Romano investiga, a partir de "O Sobrinho de Rameau", de Diderot, o modo de funcionamento da sátira e seus vínculos com a tradição clássica, sobretudo em Plutarco e Luciano (leia crítica nesta página).
Para Romano, a sátira serve para indicar nossos limites. Ela é um purgatório contra os excessos do discurso. Não se trata ainda de criticar o logocentrismo, mas de vitimar a logorréia. A sátira de Diderot permanece válida em tempos em que a garrulice e a adulação se tornaram vícios coletivos.
Nesta entrevista à Folha, Roberto Romano fala de seu trabalho e critica o subjetivismo que tomou conta do discurso intelectual.
*
Folha - Que razões levaram o sr. a investigar a obra de Diderot?
Roberto Romano - Primeiro, para desmentir os clichês em torno da obra deste filósofo, considerado vulgarmente um pensador eclético, sem rigor, superficial, ligeiro. Segundo, para entrar numa área, a estética, considerada um lugar menor dentro da filosofia "séria". E dentro desta área menor quis pegar uma questão ainda mais desprezada, que é a da sátira. A partir dali, tento mostrar como, via sátira, você chega a certos pontos essenciais tanto na perspectiva epistemológica quanto na política.
Folha - Que lugar ocupa a sátira na filosofia contemporânea?
Romano - Hoje temos, por um lado, pensadores da Escola de Frankfurt, como Habermas, tentando encontrar uma ética do discurso, da vida em comum. Por outro, o positivismo lógico, realizando um trabalho seriíssimo de limpeza da linguagem, tendo em vista a questão da ciência. Ora, o que faz Diderot com a sátira ao longo de seus trabalhos? Discute a questão da comunicabilidade numa perspectiva paralela à de Rousseau na mesma época. Ambos concordam que a civilização chegou a uma situação de ruído, de incomunicabilidade, na qual o que se ouve é apenas um amontoado de sujeitos falando sozinhos. A diferença é que para Rousseau este é um ponto terminal, de opacidade completa dos sentimentos. No caso de Diderot, é o momento -propriamente poético da filosofia e da linguagem- de gerar fórmulas novas, que é o que ele tenta fazer.
Folha - Como a sátira funciona nas situações de incomunicabilidade por excesso de ruído?
Romano - A sátira, junto com o ceticismo, será sempre uma espécie de alavanca do pensamento, ela vai impedir que ele descanse, que seja invalidado pelo palavrório.
Folha - Na sua opinião, a filosofia está contaminada pelo palavrório?
Romano - Esta espécie de papinha que hoje se produz sob a denominação de desconstrucionismo, de pensamento pós-moderno, não responde a nada que seja profundo. Houve uma dessubstancialização do pensamento, uma desmaterialização, para utilizar uma expressão em voga, e nada foi colocado em seu lugar.
Hegel, na "Estética", interpreta a sátira como um momento de decadência da "polis", um momento de severidade, com a qual a sátira vai se identificar. De certo modo, o satírico é um censor.
Na verdade, tal como se vê em Plutarco e Luciano, a tradição satírica, junto com a censura política, quer mostrar o quanto é ridículo o abuso da palavra, sobretudo o abuso pedante da palavra. Diante do ridículo que afasta a linguagem do que é substancial, a sátira funciona como purgatório.
Folha - Quais são os sinais de excesso da linguagem hoje?
Romano - Vivemos uma inflação de palavras que não haverá Plano Real capaz de conter. Pode-se dar o exemplo de uma palavra que justifica planos econômicos, serve como modelo explicativo, como palavra de ordem etc.: globalização. É um fetiche. Ela aparece hoje como um novo sistema, como se nunca alguém tivesse pensado em circulação de mercadorias, de idéias etc. Essa inflação do discurso está a exigir uma espécie de gargalhada com a sátira.
Folha - Quem estaria apto a provocar esta risada?
Romano - Eu não sou satírico, não tenho essa capacidade poética, sou apenas um analista. Mas em alguns autores você encontra este tipo de remédio. Neste século, o encontramos em Joyce, Musil e Günter Grass, por exemplo.
Folha - Numa passagem do livro, o sr. critica, sem citar nomes, o que chama de "bajuladores das confrarias". A quem o sr. se refere?
Romano - O que acontece hoje é um enquistamento ao redor de pessoas e não mais de idéias. Nós chegamos a uma espécie de intersubjetivismo muito grave, no qual as questões do pensamento não são propriamente colocadas.
Eu me espanto com o que está ocorrendo no debate filosófico no Brasil. Não é ranhetice, mas alguma coisa está acontecendo quando as pessoas, em vez de pensarem, falam sobre si mesmas. Eu tenho algum interesse sobre a subjetividade deste ou daquele filósofo? O último livro de Paulo Arantes, por exemplo, é de uma tristeza global. Alguém que escreveu um texto magnífico sobre Hegel, hoje publica um livro de diálogos no qual se transcreve até uma ida ao banheiro. O mesmo acontece com Giannotti e Ruy Fausto. Que interesse tem para o público o "modus operandi" de Giannotti?
Falar de nós mesmos não interessa a ninguém. O culto à subjetividade chegou a um ponto perigoso, a partir do qual se está abrindo o caminho para o autoritarismo. Fomos tomados pela embriaguez da confissão sem sermos Santo Agostinho ou Rousseau.

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