quarta-feira, 23 de julho de 2014

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São Paulo, sábado, 03 de abril de 2004


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TENDÊNCIAS/DEBATES

NÃO

Sobre ética e fé pública ROBERTO ROMANO

Os movimentos sociais possuem histórias e formas diferentes. Eles experimentam, em seu próprio interior, disputas pela direção a ser tomada. Nenhum deles oferece ao governo garantias de que fala em nome de todos. As sua tendências apresentam reivindicações que, no máximo, circunscrevem consensos temporários, os quais podem seguir num sentido ou noutro, de acordo com as batalhas encetadas em suas assembléias. Sem hegemonia interna, falham as unidades programáticas, doutrinas ou alvos. São instáveis as pontes entre os que defendem as mulheres, os negros, os homossexuais, os sem-teto, os sem-terra e outros "negativamente privilegiados" (Max Weber).

Nos tratos com o governo, cada movimento segue uma cronologia própria e técnicas definidas de organização. Quando se reúnem, exibem discursos cuja semântica varia muito. Qualquer administração pública enfrenta a pergunta prévia: qual movimento escolher para cooperar, antes dos demais?. A resposta define a estratégia do governo. Se ele seguir a resposta errada, o trato com os movimentos sociais se compromete. Restam táticas oportunistas ou patéticas para captar o apoio dos líderes e militantes.

Os movimento buscam a própria sobrevivência. Se for necessário salvar alguém, nas situações críticas, eles escolhem a si mesmos. Nenhum governante que possua conhecimentos sociológicos e domine a psicologia das massas deixa-se embair pelos "apoios irrestritos" dos movimentos sociais, políticos, ideológicos, religiosos. O MST sabe que a sua âncora não está no governo. O apoio desse último é uma cilada. Deter a sua atividade para dar fôlego aos ministros, sobretudo quantos eles enfrentam uma crise política, é desastroso para os militantes. Em sua estratégia, tais ocasiões potenciam suas reivindicações.
Para que o MST coopere com o governo, apenas duas hipóteses devem ser vistas. Na primeira, o monopólio da força física é empregado contra as tomadas de fazendas, invasões de edifícios públicos etc.

 O governo deve contar com um leque amplo de apoio nos setores inimigos ou concorrentes do MST. Sem isso, será mais do que um erro ordenar o uso das armas contra os militantes. Eldorado de Carajás alerta contra essa "solução". Na segunda hipótese, o governo aplica uma política competente de assentamentos e ganha, pela sua eficácia, autoridade para definir rumos certos no campo e na cidade. Um Incra que exponha resultados palpáveis, e não slogans, atenua, embora não detenha, os atos do MST. Essencial, nesse rumo, é a fé pública. A palavra dos administradores precisa valer para todos os envolvidos na questão agrária: os militantes, as autoridades judiciais, a imprensa, a cidadania.

Mas sobra incompetência e arrogância stalinista no governo. A sua técnica usual encontra-se no verticalismo autoritário e o seu recurso é a propaganda enganosa, como demonstrou esta Folha. A fé pública não pode ser garantida por Duda Mendonça. Na questão agrária e nas eleições, o tempo difere. As segundas podem ser ganhas com fantasias. No campo, ou a política econômica mostra viabilidade, ou recomeçam as invasões etc. O eleitor ludibriado por um partido rompe com ele só nas próximas eleições. O candidato à terra não tem o mesmo tempo. A reação à propaganda enganosa surge em poucos dias.

Sem fé pública, incompetente para administrar as políticas sociais -todas à mingua de recursos devido ao superávit fiscal-, o governo oscila entre autismo e promessas, ou propaganda. A perdurar esse "modus operandi", logo a "solução" empregada pelos dirigentes será o uso das armas para reprimir o MST. Este último tem plena consciência disso. E usa o seu tempo para garantir o que já conquistou.
O caso do MST é o mais grave, mas não é o único. Algo similar ocorre nos direitos humanos, na segurança, nos setores que lutam contra o racismo etc. Se os ministros (sobretudo o da Justiça) cuidassem mais de resolver os problemas do campo, deixariam de avançar slogans incendiários para encobrir sua própria indigência na arte de governar. Eles falariam menos de "conspiração", exigiriam mais recursos para suas pastas, gastariam verbas com eficácia e ciência.

Os culpados por uma previsível tragédia no campo, desta vez, serão os eleitos pelo PT. Eles fazem tudo, da troca fisiológica às ameaças, para garantir a "governabilidade". Mas esta última, sem ética e fé pública, só pode ser garantida na ponta das baionetas. Tal "solução" é a única que sobrará, em pouco tempo, aos soberanos do PT.


Roberto Romano, 57, é professor titular de ética e filosofia política na Unicamp e autor de, entre outras obras, "Moral e Ciência - a Monstruosidade no Século XVIII" (ed. Senac/São Paulo).


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