segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

No instante em que a ideologia conservadora, seminário dos fascismos, renasce no Brasil com novo nome de batismo (direita liberal...), acho que vale a pena retomar o que escrevi no artigo abaixo, sobre o reacionarismo e suas bases doutrinárias. Em muitos articulistas e blogueiros da direita nacional, hoje, são retomados os slogans de Joseph De Maistre, Donoso Cortés, etc. Como a esquerda é pouco erudita no assunto, pensa que os textos foram imaginados pelos ditos direitistas. Mas os ataques à democracia são por eles apenas reproduzidos, pois têm longa data, eles foram fabricados na contra revolução do século 19, que alimentou os discursos ditatoriais do século 20.

O Pensamento Conservador. 

Revista de Sociologia Política.

Roberto Romano


“Quando falamos de um pensamento político, devemos lembrar as consciências onde um dia ele tornar-se-á princípio inquestionável, norteando a vida e a morte. O estudo sobre as multidões torna-se cada vez mais premente, sobretudo quando investigamos a violência racista e a injustiça social, garantidas pelos meios de imposição persuasiva de grande alcance, abarcando homens e mulheres que se entrechocam nos vários cantos terrestres.Nesse campo, suscita interesse cada vez maior interesse o lúcido Massa e poder de Elias Canetti (CANETTI, 1986). Neste monumento antropológico, filosófico, psicológico e político, encontra-se uma descrição rigorosa do comportamento massificado que domina um ou outro instante de nossa vida. Talvez em termos políticos tenhamos a coragem de nadar contra a corrente. Não raro, em plano individual nos distanciamos do juízo público. Cedo ou tarde sentimos a pressão da massa em nossas opções. Quando nos acostumamos à coragem de refletir, fugindo do lugar comum, nos envergonhamos das frases ditas para não sermos linchados, física ou espiritualmente, pelo grande número. Se vivemos em regime político de opressão, gradativamente repetimos lugares comuns e teses batidas pelos propagandistas. Raros dentre nós chegam ao fim de seus dias sem dobrar a espinha e a língua, desobedecendo os ditadores que decretam morticínios em nome do povo, divindade sedenta de sangue que possui mil faces e apelidos. Nós brasileiros, conhecemos alguns, como os adeptos do “ame-o ou deixe-o” ditatorial, os “fiscais do presidente”, “os descamisados” etc.

Elias Canetti apresenta o espírito moderno imerso nos ritmos e nos movimentos de massa. Sua obra prima foi gerada como réplica aos movimentos nazistas e fascistas que infernizaram o século vinte. Hoje, Canetti está morto, mas seu livro aí está, como advertência e como instrumento para a luta contra o neo-nazismo, o neo-fascismo, que pouco têm de “neo” e apresentam muito das ideologias genocidas aceitas pelas hordas cujo pensamento se reduziu à repetição maquinal dos slogans. Entre estes, um traz ressonâncias sinistras, neste momento: “Desperta Alemanha” (“Deutschland erwache”). No fundo da alma autoritária, na Alemanha ou no Brasil, tais gritos despertam ódios, mentiras, calúnias, perseguições. Não por acaso os propagandistas, mudando o senhor da hora, permanecem os mesmos. Com idênticas técnicas enganadoras.

Importa conhecer, com as massas e suas frases prontas e de sentido semanticamente restrito, os pensadores que produziram a fala que hoje se repete no rádio, na televisão, nas revistas, no cinema, no teatro, nos púlpitos e nas cátedras. Sigo ainda a sugestão de Elias Canetti, em outro livro seu, O território do homem (CANETTI, 1978) onde se analisa dois teóricos conservadores e autoritários. Refiro-me a Thomas Hobbes e a Joseph De Maistre. Canetti diz com propósito: os dois pensadores apresentam-nos o terrível. De Maistre, que escreveu contra a revolução e Hobbes, que previu os eventos revolucionários em sua terra, ambos tiveram medo, e investigaram as razões pelas quais os homens temem a natureza e os seus iguais. Ambos dedicaram sua vida ao estudo da guerra de todos contra todos. Suas doutrinas serviram aos senhores que aniquilaram milhões de almas, desde Napoleão até os militantes da suástica ou do Kmer vermelho.

Joseph De Maistre, indica Elias Canetti, possui força persuasiva imensa quando fala das guerras “providenciais” enviadas por Deus para castigo dos homens. Suas descrições dos conflitos armados são verdadeiras, apesar de ser o seu intento desiludir os que buscavam liberar o Estado moderno do jugo teológico-político.

Hobbes, situado na outra ponta do pensamento conservador, sem apelar para o divino na justificação do mando, também é admirado por Canetti, justo porque nele o poder aparece sem disfarces. Repito as suas próprias enunciações: Hobbes “é o único pensador que não esconde com um véu o poder, sua importância e seu peso, sua posição no centro de todas as ações humanas; ele também não o glorifica. [...] Ele sabe o que é o medo; seus cálculos o exorcizam [...] Ela não subestima o peso do Estado. Rousseau, perto dele, é só um garoto falastrão. [...] Sua incredulidade religiosa foi uma oportunidade incompatível: as promessas baratas não tinham influência alguma sobre seu medo. Ele não explica sua aversão pelo grito das massas. Mas o nota. [...] Maquiavel, de quem muito se fala, é só uma de suas metades, sua metade clássica. O Leviatã é considerado uma “Bíblia ideal”, na minha coleção de livros mais importantes, entre os quais, bem entendido, os livros de meus inimigos ocupam lugar de honra. Os livros de nossos inimigos agudizam nosso espírito, enquanto os outros o enfraquecem [...] Nem a Política de Aristóteles, nem o Príncipe de Maquiavel, nem muito menos O Contrato Social de Rousseau integram esta minha ‘Bíblia’ (CANETTI, 1978: 153-155).

Perdoando a exigência de Canetti, porque ele pode escolher com severidade entre os autores a serem tidos como exemplares, digamos que sua tese sobre os escritos de nossos adversários que devem ser lidos é estratégica para quem deseja um regime democrático. Em meu pequeno Conservadorismo romântico (ROMANO, 1981), discutindo o pensamento que ajudou a solidificar as tiranias modernas, com os sentimentos contra a ciência e a razão, eu advertia para a cegueira de se ler apenas os textos que confirmam o nosso modo de enxergar as coisas. Chega a ser cômica a atitude de professores e militantes, quando, em tom sectário, buscam preservar a virgindade ideológica de seus alunos ou companheiros, impedindo que eles consultem autores vistos como reacionários.
Canetti explora o símile da guerra, estrangeira ou civil, em Hobbes e De Maistre, indicando que os dois escritores constroem suas políticas para o controle dos homens. Escolho, nesta ocasião, outra imagem comum aos dois teóricos, a figura do estraçalhamento do corpo humano, algo a ser evitado, segundo Hobbes, mas servindo como advertência aos que acreditam na razão humana sem Deus, no entender de Joseph De Maistre.

Nas Soirées de Saint-Petersbourg De Maistre desenha a figura do carrasco. Solitário, ele espera o instante em que um político torpe, de preferência ministro de Estado, venha exigir os seus serviços. “Ele parte, chega à praça pública coberta pela massa amontoada e palpitante. Jogam-lhe nas mãos um envenenador, um parricida, um sacrílego: ele o toma, o estende, liga-o numa cruz horizontal, levanta o braço: faz-se então um silêncio horripilante e ouve-se apenas o ruído dos ossos que se quebram sob a barra, e os hurros da vítima. Ele a livra, carrega-a para uma roda de suplício: os membros quebrados unem-se nos raios, a cabeça pende, os cabelos se eriçam e a sua boca, aberta como fornalha, só envia por intervalos uma pequena quantidade de palavras sangrentas implorando a morte. Ele acabou o serviço, o seu coração bate, mas de contentamento. Ninguém suplicia melhor do que eu. Ele desce, estende a mão suja de sangue, e a justiça joga nela algumas peças de ouro que ele carrega através de uma dupla fila de homens cujos corpos se afastam, horrorizados. Ele, senta-se à mesa e come. No leito, a seguir, ele dorme. Amanhã, despertado, sonha em outra coisa bem diferente do que realizou na véspera. É um homem? Sim, é recebido por Deus nos seus templos, onde recebe permissão para rezar. Ele não é criminoso, mas nenhuma língua se permite dizer que ele é virtuoso, honesto, estimável etc. Nenhum elogio moral lhe convém, pois todos supõem relações com os homens, e isto ele não possui” (DE MAISTRE, 1960: 40).

Quem vive numa situação dominada pela violência e onde o linchamento é fato banal, saberá apreciar este retrato. Porque, caso oposto, seria preciso que os próprios governantes, ou então os soldados, matassem pessoas no cotidiano. Ambos, carrasco e soldados, matam com licitude. Mas o primeiro é coberto de opróbrio, enquanto o segundo recebe glórias. Caso o soldado matasse como seu colega de profissão, ele seria visto com o mesmo horror e medo. O mando repousa sobre estes dois pilares mortíferos. O poder manifesta a vontade divina, para a qual a ordem e o bem não correspondem à nossa inteligência, aos nossos fins. O cadafalso é um altar, lemos no mesmo livro.

Não se deve emitir gracejos sobre tais descrições de J. De Maistre. Quem se lembra dos campos de concentração, onde carrascos-militares cumpriram burocraticamente seu ofício, sabe a que realidade terrível ele se refere. O poder, segundo esta vertente conservadora, se almeja evitar que toda a sociedade se estraçalhe isto teria ocorrido durante o Terror jacobino deve estraçalhar, como se fosse a mão divina, homens inocentes ou culpados, pouco importa. Fundamental é a hierarquia e a ordem na sociedade, garantidas pelo Estado. Deste último não se espera “justiça” ou “bondade”, mas que impeça o delírio filosófico dos democratas, cujos resultados teriam sido a indisciplina e o caos.

No outro lado temos Hobbes. Nele, também encontramos a figura do despedaçamento. O povo, lemos no capítulo 12 do rigoroso De cive, faz como as filhas estultas de Eson. Estas últimas, aconselhadas por Medéia, cortaram seu pai em pedacinhos, colocando-o para cozinhar. Tal imagem exemplifica o pensamento conservador de Hobbes. A res publica é como o velho Eson. Se a massa a quer reformar, seguindo sofistas e demagogos, acaba estraçalhando o que era um todo adquirido de forma artificial pela ciência e pela técnica. A demagogia, desde os primeiros inícios do Estado antigo, diz Hobbes, sempre aproveitou a raiva dos pobres, dizendo-lhes que a culpa de sua miséria seria localizável nos governantes, e não em sua própria preguiça ou prodigalidade (HOBBES, 1982). É bem conhecido, continua Hobbes: quem imagina ter sobre suas costas os fardos da república, como os impostos, sem vantagens, inclina-se à sedição.

Além desta miséria material, existe a sede de honra, partilhada por todos os homens. A massa é tola. Disfarçados, em seu interior, os espertos e ambiciosos manipulam sua opinião auto-indulgente (a massa, na fala dos demagogos, nunca erra, sempre escolhe bem, é infalível, desde que apóie sua causa quando eles se candidatam aos cargos de mando) com os cantos de sereia, ou com a retórica de Medéia. Tudo vai mal? Então destruamos o Estado, par rejuvenescê-lo, nele introduzindo a justiça perfeita.

Não por acaso essas imagens do estraçalhamento, o carrasco e as filhas de Eson, aparecem nestes pensadores do conservantismo europeu moderno. Hobbes quis impedir que a res publica se esfacelasse, propondo uma doutrina onde o povo não conta. Como os pensadores clássicos do século 17, ele opõe o povo ao vulgo. Esta distinção encontra-se mesmo em Hegel. Basta reler as considerações da Filosofia do direito (HEGEL, 1975: 318) sobre a opinião pública. É preciso, segundo Hobbes, produzir o Estado de maneira artificial, enquanto máquina que impede os homens de se entre-devorarem na busca de riqueza e honra, ou nas chacinas efetivadas pelo gozo de mandar. O vulgo rebelde serve como instrumento monstruoso nas mãos dos que o enganam visando impor o mando de facções.

Joseph De Maistre escreve muito tempo após Hobbes. Quando a Revolução Francesa entrou em refluxo, seus escritos tornaram-se importantes na Europa. A força dos governantes deve ser absoluta, pensava J. De Maistre, porque ela tem como fonte a vontade divina. A força dos governantes deve ser absoluta, afirmara Hobbes, porque só os príncipes possuem soberania e saber para aplicá-la racionalmente. Entre estas duas fórmulas distintas, instalou-se o pensamento liberal e as representações democráticas que, nas Luzes, conheceram o seu apogeu. Também nelas definiu-se o ideal de cidadania democrática que hoje disputa, com o pensamento conservador, as preferências dos intelectuais e das massas.

A diferença entre Hobbes e a época das Luzes, esta última com suas esperanças pedagógicas – sua confiança na razão e na liberdade – pode ser notada na atitude de Dideroot, o pai da Enciclopédia, diante da mesma fábula de Eson decepado por suas filhas. Em Hobbes a história (que encontramos nas Metamorfoses de Ovídio, no livro 7), indicaria que o povo, com as filhas de Eson, destrói a república. Diderot enxerga no texto uma outra moral: o despedaçamento dá certo, Eson rejuvenesce. Em Hobbes, a saúde do corpo sócio-político exclui o conflito e a idéia ou prática de um povo soberano. Depois do pacto, este é um conceito subversivo, pensa Hobbes, condenando a eloqüência, por ele definida como demagogia e sofística. Diderot exalta a oratória. Ela deslancharia a resistência legítima ao poderoso tirânico e arbitrário. A rebelião é recurso dos povos contra os soberanos que romperam o contrato social separando “os seus interesses pessoais do interesse da sociedade”. Há um excelente trabalho sobre estes problemas, escrito por Gianluigi Goggi (Cf. GOGGI, 1985: 173).

As primeiras linhas da “Epístola Dedicatória”, no De cive, mostram os cidadãos romanos como lobos vorazes que destroem os outros povos, vivendo, como os reis, de rapina. Diderot inverteu esta imagem, acompanhando o juízo de Catão repetido por Plutarco: zôon ô basileus, sarcophagon estin. Esta é uma referência clássica à face violenta do rei devorador de seu povo, na qual retoma-se o libelo de Aquiles contra Agamenon. Como lembra Erasmo de Roterdam (ERASMO, 1980: 130-131) esta frase pode aproximar-se daquela outra, escrita por Hesíodo, mencionando o rei como “devorador de presentes”. O próprio Erasmo acentua: melhor seria dizer que o rei é devorador de tudo.

Todas essas inversões fazem lembrar que o século 18, leitor do pensamento greco-latino, soube apanhar, como Diderot e outros, a essência da teoria hobbesiana conservadora. Diderot inverteu o nome do verdadeiro estraçalhador da república. Não o povo, mas o governante tirânico é quem arrasa a vida estatal e societária. O direito à auto-consciência — mas tarde chamado “direito do cidadão” — sobrepõe-se no século das Luzes, à raison d’État. Com o fim da Revolução Francesa, na Contra-Revolução romântica, exemplificada por De Maistre entre outros, volta o elogio do soberano contra o povo, proibindo o direito de crítica, de rebelião e de reforma do Estado “a partir de baixo”.

Chegamos ao essencial na política conservadora. Hobbes ou De Maistre, com seus êmulos do século 19 e 20, consideram que o povo não é soberano, ele apenas suporta a soberania. Basta ler o arqui-conservador Donoso Cortés. Em sua lição de direito político (29 de novembro, 1836) aquele doutrinário afirma-se contra a soberania popular. “A soberania de direito”, afirma ele, “é una e indivisível. Se ela é própria do homem, ela não pertence a Deus. Se está localizada na sociedade, não existe no céu. A soberania popular, pois, é ateísmo e se o ateísmo pode introduzir-se na filosofia sem transformar o mundo, ele não pode introduzir-se na sociedade sem feri-la com a paralisação e a morte. O soberano possui a onipotência social. Todos os direitos são seus, porque se houvesse um só direito que não estivesse nele, não seria onipotente e, não o sendo, não seria soberano. Pela mesma razão, todas as obrigações estão fora dele, porque, se ele tivesse alguma obrigação a cumprir, seria súdito. Soberano é o que manda [eu sublinho, RR], súdito o que obedece. Soberano é o que tem direitos, súdito o que cumpre obrigações. Assim, o princípio da soberania popular é ateu e tirânico, porque onde há um súdito que não possui direitos e um soberano que não tem obrigações há tirania”.
Sainte Beuve diz, em algum lugar, que se retirarmos Deus de Pascal, teremos a doutrina hobbesiana inteira. Algo parecido ocorre com as relações entre Donoso Cortés e Hobbes. Na mesma lição citada, Donoso aponta o autor do Leviatã e do De cive como a grande muralha contra a doutrina da soberania popular. A soberania de direito divino conhecia, diz Cortéz, alguns limites. “mas a soberania definida por Hobbes nega toda limitação para si mesma. Segundo ele, Deus não existe e o povo, desde o instante em que abre mão de seus direitos, faz-se escravo. Inflexivelmente lógico, Hobbes nega ao povo o direito de resistência à opressão, mesmo a mais delirante e absurda” (CORTÉZ, 1970: 342-347).

As massas, diz nosso doutrinário em outro lugar (“De la monarquia absoluta en Espana”, 1838) “carecem de unidade, de previsão, de concerto, só a iminência do perigo pode obrigá-las a se reagrupar ao redor de uma bandeira. Quando passa o perigo, decai o entusiasmo, a unidade conjuntural formada pelo entusiasmo se atenua e se fraciona [...] Quando se extingue o entusiasmo, o povo deixa de ser uma realidade para ser apenas um nome sonoro. Na sociedade, então, só existem interesses que se combatem, princípios que lutam entre si, ambições que se excluem e individualidades que se chocam”.

O povo é existência fugaz que não possui estabilidade, logo, não garante nenhuma soberania. Sem esta última, não existe poder (Soberano é o que manda, lembremos desta definição dada por Donoso, estratégica nas doutrinas sobre a soberania no século 20, especialmente nas jurisprudências próximas ao nazismo), sem poder, desaparecem os vínculos sociais. Para o pensamento conservador, a soberania popular é o perigo e o grande vício do liberalismo e das Luzes democráticas. “Povo” é nome enganador, quando posto na boca dos que nele depositam esperanças, afirma Donoso Cortés, em texto escrito entre 1851 e 1853 (“Despachos desde Paris”).

“Em geral”, declara Cortés, “os povos recusam o poder que lhes é pedido e confirmam o poder que lhes é tomado. O que sei é que para a França só existe salvação na ditadura. Nela, não há ditadura possível ou pelo menos provável, se não vem do povo e não se apóia no povo. Todo poder ditatorial ou real que só busque apoio nas classes acomodadas é um poder perdido”. No autor do “Discurso sobre a ditadura”, não estranha encontrarmos, neste pseudo elogio do povo, a crítica mais virulenta ao Estado de direito moderno. Quem deseja pautar o poder através da Constituição é um fraco, perdido antes de sabê-lo. “O governo das classes vencidas é o constitucional, o das vencedoras foi, é, será perpetuamente a monarquia civil ou a ditadura militar. Nunca os povos obedeceram gostosamente alguém que não fosse um ditador ou rei absoluto”.

“Soberano é o que manda”. Na pena de Cortés, os democráticos e liberais são gente que discute sem decidir. Quando percebe esta indecisão perpétua o povo joga-se nos braços dos poderosos, dos que são vencedores, fugindo dos vencidos. Esta forma de pensar une todos os reacionários do século anterior e do nosso tempo. Permitam-me citar um trecho de meu Conservadorismo romântico, sobre este ponto. Segundo Novalis, há uma diferença radical entre monarca e súditos. O rei é verticalmente superior aos homens rasos. Enquanto todo cidadão é “um funcionário do Estado”, o rei “não é um cidadão, logo, não é um funcionário. O sinal distintivo da monarquia, é que ela repousa na crença em um homem superior [...] o rei é um homem erigido em fatalidade terrestre”.

O rei é eleito por seu nascimento, não está restrito a nada que não seja a expressão direta de sua natureza. Contra os “infelizes filistinos” que, nas Assembléias francesas, quiseram impor uma Constituição ao rei, Novalis responde: “sou um homem profundamente antijurídico”. Constituições escritas são artificiais, produzidas pela reunião, discussão e contrato entre inferiores (ROMANO, 1981: 152). A soberania popular é afastada também por De Bonald, outro pai do pensamento conservador moderno. “O direito do povo a governar a si próprio é um desafio contra toda verdade. A verdade é que o povo tem o direito de ser governado” (GODECHOT, 1961). Novalis disse a coisa com todas as letras, sem mascar as palavras, para usarmos a expressão francesa: “O povo é como uma criança, um problema individual, pedagógico”. Esta sinceridade bruta ataca a essência das Luzes modernas, para as quais, seguindo I. Kant, a maioridade é nossa meta e labor.

Neste plano, pode-se apontar um traço conservador fortíssimo no pensamento de Hegel, filósofo ora visto como liberal, ora como pai do totalitarismo. Hegel assumiu a mesma recusa dos conservadores diante da soberania popular, especialmente na Filosofia do direito (Parágrafo 279, nota). A soberania pertence ao Estado. O conceito de soberania popular só é concreto neste todo. “Mas é opondo-a à soberania que reside no monarca que se colocou, em época recente, a falar de soberania popular. Vista nesta oposição, a dita soberania integra estes pensamentos confusos que têm por base uma representação grosseira do povo. Sem seu monarca e sem a organização que a ele se une necessária e imediatamente, o povo é a massa informe que não é mais um Estado…” (HEGEL, 1975: 259).

“Difficile est satiram non scribere”. Com esta frase, Hans Kelsen termina suas considerações críticas ao redor de algumas posições jurídicas alemãs, em seu tempo (KELSEN, 1989: 469). A frase irônica, desferida principalmente contra Ebers, pode ser endereçada a todos os pensadores, de J. De Maistre até Carl Schmitt, contrários às Luzes e à razão científica no cuidado das coisas políticas e jurídicas. O pensamento que herdou os pressupostos do século 18 liberal e democrático, bem como racionalista, busca, na trilha de Espinosa, a salvação da res publica no maior número de casos, deixando a exceção. Mesmo dessubstancializando o conceito de soberania, como em Kelsen, busca-se, nesta vertente, o que é normal, afastando-se a patologia do poder.

A força do ataque conservador está justo em acentuar a patologia do mando e a exceção política. Como vimos, Hobbes, De Maistre, Donoso Cortés sublinham a doença do corpo social para garantir, de múltiplos modos, a ditadura permanente do governante sobre (e contra) os governados. Nestas águas banharam-se Augusto Comte e outros teóricos que viram na idéia de soberania popular apenas um resquício da idade metafísica, o século 18 e a Revolução Francesa.

Edmund Burke enuncia o princípio de que o povo, a maioria, não é soberano, porque o governo difere de um problema aritmético. “Foi dito que 24 milhões devem prevalecer sobre 200 mil. Verdade, se a Constituição de um reino fosse um problema aritmético. [...] A vontade de muitos, e seu interesse, devem diferir com freqüência, e uma grande vontade será a diferença quando eles, os muitos, fazem uma escolha ruim” (BURKE, 1976: 141).

Voltemos a De Maistre. Evitei, até agora, citar seu texto principal, o famoso Du Pape. Mas lembremos sua doutrina sobre a soberania, apresentada no Livro 2 daquela obra. Como seria previsível, De Maistre, o autor da imagem sobre o carrasco, começa seus considerandos pela justiça. O homem reto não teme o soberano, o celerado sempre o teme. Mesmo que o príncipe seja dissoluto, ele tem a virtude de garantir a aplicação geral da lei. Ao tratar a origem da soberania, vemos que nosso autor rompe com todas as idéias modernas do contrato, desde os juristas protestantes, como Althusius, até Rousseau. “Sendo o homem necessariamente associado e necessariamente governado, sua vontade não conta para nada no estabelecimento do governo [eu sublinho, RR]; pois, uma vez que os povos não têm escolha e que a soberania não resulta diretamente da natureza humana, os soberanos não existem pela graça dos povos, a soberania não sendo a resultante de sua vontade, tanto quanto a própria sociedade”. Não existe soberano sem povo, assevera De Maistre, nem povo sem soberano. Mas o povo tem dívidas para com o soberano, ele “deve-lhe a existência social e todos os bens que dela resultam. O príncipe só deve ao povo um brilho ilusório que nada possui em comum com a felicidade e que dela o exclui mesmo quase para sempre”.

Inexiste soberania limitada, ou do povo. Existe soberania legítima ou não. “Dirão alguns: a soberania na `Inglaterra é limitada’, Nada é mais falso. Apenas a realeza é limitada naquela ilha célebre. Ora, a realeza não é toda a soberania, pelo menos teoricamente. Quando os três poderes, que, na Inglaterra, constituem a soberania, concordam, o que podem eles? É preciso responder, com Blackstone: TUDO. E o que se pode contra eles? NADA” (maiúsculas do próprio De Maistre) (DE MAISTRE, 1966: 122-137).

Um continuador explícito de Joseph De Maistre, Augusto Comte dele retirou lições de soberania conservadora. O resultado principal é a proposta de uma ditadura positivista, sem a intervenção dos parlamentos, e a instauração de um poder espiritual, com presença de intelectuais, sacerdotes da Humanidade, dirigindo as consciências da massa. Neste Estado, dasapareceria a noção de direito. “Todo direito humano é absurdo e imoral. Uma vez que não mais existem direitos divinos, esta noção deve apagar-se completamente” (COMTE, 1966: 237-238).

Ditadura por ditadura, cabe lembrar que Donoso Cortés já havia efetivado a “dedução” acima. O resultado é praticamente o mesmo: quem explica a operação é Carl Schmitt: “Desde 1848 a doutrina do direito público tornou-se positiva escondendo nesta palavra o seu embaraço: ou funda todo poder, mediante as mais diversas reconstruções, sobre o `poder constituinte’ do povo: isto é, no lugar da idéia monárquica de legitimidade entra a democrática. Neste ponto é incalculável na sua relevância o fato de que um dos maiores representantes do pensamento decisionista e filósofo do Estado católico, consciente de modo extremamente radical da essência metafísica de toda política, Donoso Cortés, diante da revolução de 1848, pudesse compreender que a época do realismo tive chegado ao fim. Não existe mais realismo, porque o rei não existe mais. Sequer existe uma legitimidade em sentido tradicional. Logo, só resta um resultado: a ditadura. É o mesmo resultado a que Hobbes chegou, procedendo na base da mesma conseqüência do pensamento decisionista, embora misturado com uma espécie de relativismo matemático. `Auctoritas, non veritas facit legem’” (SCHMITT, 1972: 73).

“Soberano é quem manda”. Este mote, produzido por Donoso Cortés, aninha-se na frase de Carl Schmitt, citada em todos os discursos, velados ou explícitos, que adotam a ditadura como solução para os impasses da vida pública: “Soberano, é quem decide sobre o Estado de exceção”. Este célebre “extremus necessitatus casus” tem sido bastante sublinhado na doutrina de Carl Schmitt (LOWITH, 1991: 16). Não por acaso, no mesmo número da revista Les Temps Modernes, que publica o texto de Lowith, podemos ler a tradução de importante escrito de Carl Schmitt sobre o Estado enquanto mecanismo em Hobbes e Descartes. Esta é uma característica estratégica do pensamento conservador: ele sabe buscar suas fontes e seus inimigos, não raro editando seus textos. Isto ocorreu com F. Tönnies, o maior estudioso de Hobbes, e seu editor, que levou anos de engenho para escrever uma refutação monumental de sua visão mecânica e dessacralizada, o que foi aproveitado de Hobbes nas Luzes democráticas. Refiro-me, naturalmente, ao clássico da sociologia romântica, Comunidade e sociedade. Mas vejamos o que diz Carl Schmitt sobre o Estado hobbesiano. Em primeiro lugar, o banal: o Estado, na perspectiva de Hobbes, é machina machinarum, o primeiro produto da era técnica. Mas é algo que vem antes, nas considerações de Schmitt sobre Hobbes que mais nos interessa: “na condição civil, estatal, todos os cidadãos têm segurança de sua existência física. A tranqüilidade, a segurança, a ordem, reinam. Como sabemos, isto é uma definição da polícia. O Estado moderno e a polícia nasceram ao mesmo tempo e a instituição essencial deste Estado de Segurança é a polícia”. O artigo de Schmitt é de 1937. Nesta época, as frases acima já apresentam ressonâncias terríveis para quem tivesse a ousadia de negar a legítima soberania do povo alemão e de seu Líder. É possível seguir este ponto num artigo também importante de André Doremus (DOREMUS, 1982: 585).

Em 1937 Schmitt publicou o trabalho nuclear para a compreensão do Estado totalitário, sendo este último termo de sua lavra na história da língua política. Refiro-me ao “Totaler Feind, totaler Krieg, totaler Staat”, republicado em 1940. Em carta a Jean-Pierre Faye, escrita no dia 31 de agosto de 1963, Carl Schmitt indica sua atitude na época: “Sob a impressão de uma dissolução [eu sublinho, RR], irresistível das diferenças e dos limites tradicionais num direito dos povos, e da mesma dissolução das diferenças no terreno do direito constitucional e estatal (como Estado e Sociedade, Estado e economia, política e cultura etc…) surgiu a fórmula do Estado total, mas como pura análise da realidade e sem nenhum interesse ideológico … não orientada em sentido fascista”. Como diria Kelsen, difícil não satirizar… (FAYE, 1974: 61-62).

O que é “conservador”? O medo de que a população estrague a festa do poder, destruindo a segurança, a propriedade, os vínculos da tradição, as inovações técnicas que só beneficiam alguns. Trata-se de conservar o social e o Estado, produto histórico como nos românticos, engenho técnico como em Hobbes, mas sempre no horizonte do pavor e do medo, da guerra, do soldado, da polícia, do carrasco. Por isso a imagem do dilaceramento, junto com o medo da subversão da ordem, é onipresente nas falas conservadoras. Nelas acentua-se a harmonia como fim político, não importa o preço. Harmonia étnica, política, axiológica, econômica etc. Se tal concórdia implica em jogar nos porões da polícia este ou aquele inocente, se ela disfarça ódios arraigados, tudo isto importa pouco. Os caminhos da Providência são misteriosos. “Todos os conceitos mais importantes da moderna doutrina do Estado são conceitos teológicos secularizados [...] O Estado de exceção tem, para a jurisprudência, uma significação análoga à do milagre para a teologia” (SCHMITT, 1972: 61).

Milagres custam muito. Eles repetem os planos da Providência, laica ou religiosa, com lógica infalível. Termino, lembrando dois fatos importantes, no meu entender. Primeiro, o renascimento do interesse pelo pensamento conservador, e a recusa do século 18, na Europa sobretudo, coincide com a retomada dos movimentos fascistas que já chegaram ao governo, por exemplo na Itália. Carl Schmitt recebe uma voga de interesse inusitado. É importante tomá-lo em consideração, com todos os doutrinários que lhe serviram de sustento, para entender um pouco a mente dos líderes e das massas que agora ativaram a caça aos judeus, aos árabes, aos negros, aos diferentes.

No Brasil, mais do que nunca, os frios cálculos burocráticos e administrativos unem-se ao carisma pré-fabricado ou efetivo, colocando massas nas mãos de indivíduos, a quem cabe decidir o destino de milhões. O Salvador político, com pirotecnia fabulosa, promete ao mesmo tempo segurança às massas e aos proprietários. Nesta conciliação de incompossíveis reside a força retórica do pensamento conservador: no seu Estado, pobre e ricos vivem na aparência em harmonia garantida pelo encanto dos chefes, mas na verdade provida pelo medo da solidão e da morte, do carrasco e da polícia, enquanto se espera o soldado. Neste pânico cultivado com precisão científica pelas forças conservadoras, reside boa parte da angústia que antecede todo plano milagroso de salvação, contra, por exemplo, o processo inflacionário. Nele, também, mantem-se o fanatismo da adesão aos mesmos planos, produzidos sine ira et studio para engodo e para manter o mando em mãos definidas. Nele, brota o ódio que explode na massa quando os seus deuses da véspera se transformam em demônios da hora, como ocorreu com os ditadores fascistas e, numa escala mais branda, com nossos presidentes, de Vargas até Collor.

Enquanto durar este pêndulo, os intelectuais conservadores produzirão teorias que reduzem o povo ao papel de simples suporte, assistindo apenas a vida política, enquanto eles, os intelectuais, aderem sem vergonha aos donos do mando. Isto apenas contribui para o afrouxamento da ética, ensinando o povo a viver de expedientes, como os seus políticos vivem de golpes econômicos, políticos, publicitários, como seus intelectuais (não repetirei a fórmula batida, sobre “as exceções”, se elas existem, são evidentes), sobrevivem parasitando os poderosos. No Estado assim constituído, a lei é afastada e dirigida contra os críticos e a oposição. O discurso conservador exige fé em Deus ou na República, mas foge das leis e de sua abrangência universal, Nele… o conceito de igualdade, como o de soberania popular, é meta-físico. A única lei universal, nesta terra onde as Luzes ainda não penetraram, pela educação e pela técnica, é a de Gerson, muito útil aos soldados que nos impuseram durante anos sua ditadura. Donoso Cortés, naqueles anos melancólicos, alegrou-se com certeza em seu túmulo, como lavou sua alma, contra a república democrática espanhola, no advento do Generalíssimo Franco.”

Roberto Romano

Professor Titular do Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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