terça-feira, 26 de novembro de 2013

Para entender Carl Schmitt


Roberto Romano

Quando doutrinas jurídicas mostram elos inequívocos com práticas genocidas, obrigação ética é examinar os textos, sem o direito de elogiar seus pressupostos e conclusões. O anti-semitismo de Carl Schmitt requer tal atitude deontológica. Médicos, juízes, professores universitários, advogados, pesquisadores das ciências sociais, se profissionais competentes, conhecem a eugenia e a política assassina do nazismo, defendidas por militantes ignaros ou intelectuais. A culpa dos últimos é mais grave. 
No caso de C. Schmitt, ninguém pode elogiar suas doutrinas e calar o incitamento ao genocídio nelas explícito. Bom número de universitários, jornalistas e partidos de esquerda aplaudem, em nome da luta contra a corrupção, pronunciamentos favoráveis ao jurista mais notório do nazismo. Para citar Walter Benjamin, se não mantivermos a memória acesa, “nem os mortos estão seguros”. Quem sofre na carne o preconceito racial não tem o direito de ignorar o que significa Schmitt na história do Direito e das ideologias. E. Bloch, autor do livro O Princípio Esperança o situa entre “as prostitutas do absolutismo que se tornou completamente mortífero, do absolutismo nacional-socialista.”(Droit Naturel et Dignité Humaine, Paris, Payot, 1976, p. 57). 
Schmitt uniu as formas legais nazistas e as ditaduras que a SA (destruída por Hitler e trocada pela Gestapo) impuseram à Alemanha. Para conhecer o pensamento de Schmitt, examinemos seus escritos, mesmo que tal mister exija a máscara contra gases fétidos. 
Nos últimos vinte anos ele se tornou o patrono da esquerda e dos que renovam o fascismo. Sua leitura raramente é feita em primeira mão, os axiomas que ele inventou chegam aos catecúmenos por propagandistas como G. Agambem e outros. Ignorando sua atividade efetiva, não o lendo diretamente, muitos transmitem ao coletivo o seu antissemitismo totalitário.'
Yves Ch. Zarka, autor de pesquisas essenciais sobre Hobbes (cujos textos são usados por Schmitt para combater a democracia) e a razão de Estado, desmascara ao mesmo tempo Schmitt e a esquerda que hoje o assume. Cito o juízo de Zarka, escritor a ser usado por mim até o final das presentes análises. “Existia uma corrente pró schmittiana de extrema direita. O que não é surpresa. Schmitt é reivindicado pela ala a que ele pertenceu. Mas é nova a adesão às teses de Schmitt entre intelectuais da esquerda ou extrema esquerda. Era impossível em 1960 ou 1970 que tais setores se referissem a um pensador ligado ao nazismo, mas hoje ocorre o contrário. Como entender a sedução do pensamento de Schmitt entre os intelectuais de esquerda? A razão principal, creio, é a crise profunda do pensamento de esquerda pós marxista. Como o pensamento marxista caiu na indigência, perdeu todo crédito, é incapaz de suscitar a menor adesão intelectual, bom número de teses schmittianas surgem como tábua de salvação. É como se Schmitt fornecesse a versão renovada, revigorada, expressa em outros termos, de teses e temas antes mantidas no pensamento e no combate marxista. Assim ocorre na crítica ao liberalismo, parlamentarismo, representação política, formalidade dos direitos humanos, no tema central da luta ou da guerra na história, na questão do inimigo (de classe, estrangeiro) etc. Em tais pontos. Schmitt parece suscetível de tomar o bastão de Marx (...) para defender as mesmas posições ou combater os mesmos adversários (...) O mesmo jurista, hoje guru de uma parte dos intelectuais, conduziu décadas antes os que o seguiam, repetindo o grande jurista alemão E. Kaufmann, “para a lama do niilismo e de sua variante nacional-socialista”. (Un détail nazi dans la pensée de Carl Schmitt, Paris, PUF, 2005, pp. 92-93).
Schmitt usa frases rápidas que geram persuasão capaz de obnubilar a mente dos jejunos em sofística. Mesmo W. Benjamin já sofrera os seus encantos no livro A origem do drama barroco alemão. Naquele escrito, o conceito de Schmitt sobre a ditadura é acolhido como se não fosse um pilar do previsível Estado nazista. Benjamin não problematiza o enunciado que reza ser “soberano, quem decide sobre o estado de exceção”. Outros empréstimos de Schmitt são visíveis naquele escrito. Mas o seu cochilo é inocente perto das asserções de rara leveza ética, redigidas por Agamben e pares sobre os poderes democráticos, por eles incluídos na “exceção”. 
Schmitt é racista e sua maneira de pensar não pode ser aproveitada para a invalidar o Estado e a sociedade onde vigoram os direitos humanos. A democracia tem falhas, mostradas por Platão e Hobbes. Se ela resistiu aos ataques daqueles pensadores, as fórmulas de Schmitt estão longe de aniquilar as noções de Constituição e de Estado de direito. Com seus artifícios, ele não efetuou a tarefa de coveiro da liberdade. Foi preciso o Holocausto para levar sua missão ao fim genocida. Quem deseja controlar minha análise leia, ou releia o texto de Schmitt intitulado Estado, movimento, povo (Staat, Bewegung, Volk, Hamburg, Hanseatische Verlagsanstalt, 1933; tradução italiana em Schmitt, C. : Principii politici del nazionalsocialismo, Firenze, G.S. Sansoni, 1935) ". 
Schmitt indica três elementos da unidade política: o Estado, o movimento nazista, o povo alemão. E parte em guerra contra a noção de uma universalidade política. Ele ataca a igualdade legal dos componentes sociais e políticos do Estado. Mesmo o conceito de Allgemeine Staatslehre (doutrina geral do Estado) é por ele rechaçado como preso ao pretérito liberal da Europa. A própria palavra Allgemein (geral), diz ele, sugere um Estado de todos, incompatível com o Estado nazista, apenas e tão somente dos alemães legítimos. Ao dizer “povo”, Schmitt visa o alemão de raça ariana, à exclusão dos que, mesmo com a nacionalidade formal alemã, pertenceriam a outras etnias. Judeus, ciganos, negros, turcos, árabes seriam alheios e inimigos do povo tedesco. É preciso cuidado com a palavra “povo” nos escritos schmittianos. Brasileiros não alemães, por exemplo, estão expulsos de sua definição do povo. Aplicar o termo ao Brasil e à sua Carta Magna, além de um erro na exegese do autor, é temeridade ética e política. 
Segundo Schmitt, cada um dos itens (Estado, Movimento, Povo) poderia exprimir “a unidade política” do nazismo: “O Estado no sentido estrito como parte político-estática, o movimento como o elemento político dinâmico, o povo como elemento não político que se desenvolve e cresce sob proteção e à sombra das decisões políticas” (Schmitt). O movimento, continua o autor, pressiona e lidera o Estado e o povo. A liderança que define o movimento é algo próprio do nazismo. Com essa noção tripartite, Schmitt nega os ritos da justiça conhecida em todos os regimes políticos anteriores ao nazismo, mesmo no Estado absoluto. É conhecida a história do moleiro que processou o rei prussiano. E ganhou a causa. Schmitt alerta para que decisões políticas jamais cheguem às cortes de justiça, porque no seu entender a igualdade das partes, inerente ao devido processo legal, permitiria atividades “do inimigo aberto ou oculto do Estado Novo” (Staat, Bewegung, Volk citado, p. 21). Teratologias assim são a regra em Schmitt.
Schmitt queria o Estado livre das cortes de Justiça, para evitar que os governantes pudessem ser questionados. Ele não é único na faina de negar à cidadania o direito de obter reparações ou impedir atos ilegítimos. R. Höhn, seu protegido e depois concorrente no poder nazista, também ele jurista, concorda que seria perigoso levar o Estado e o movimento ao devido processo legal. Ambos atacam G. Jellinek porque este teria reduzido o Estado à personalidade abstrata para garantir direitos públicos aos indivíduos. No entender de Höhn “O Estado como pessoa legal e o conceito de comunidade se excluem mutuamente”. (Cf. Stirki, Peter M. R. Twentieth-century German Political Thought, ed. cit. p. 90). 
Schmitt não limita suas receitas de teratologia jurídica ao presente nazista. Ele busca investir suas teses na história do Estado alemão. No escrito Staat als ein konkreter, an eine geschichtliche Epoche gebundener Begriff (O Estado como conceito concreto, adstrito à uma época histórica), publicado em Verfassungsrechtliche Aufsätze aus den Jahren 1924-1954 (Berlin, Duncker & Humblot, 1958), ele discute o Estado e a soberania desde o século 16 e proclama ter chegado o fim do Estado como organização política geral. Desde a instauração nazista o povo é a forma da unidade política. E vem a sua definição do nacional socialismo: “identidade racial incondicional (Artgleichheit) entre o líder e o séquito (Gefolgschaft)”. Schmitt entende “raça” no sentido vulgar. (Cf. Staat, Bewegung, Volk, ed. cit. p. 42). 
Como indica M. Stolleis, juiz e pesquisador do Direito, depois de 1933 “ninguém foi mais rápido ou mais competente em suprir o novo regime com slogans” do que Schmitt. Ao analisar Staat, Bewegung, Volk, afirma Stolleis: “Schmitt distingue o aparato burocrático e militar de comando (Estado), o partido do Estado (o movimento) que seguem rumo a uma via similar, visando um só ponto e o ‘povo’ organizado em unidades autônomas, incluindo as igrejas. A lei definida pelo Estado se tornou agora puro instrumento. A legalidade, que antes mediou a legitimidade, foi amesquinhada a um ‘modo funcional do aparelho burocrático do Estado’”. (Cf. Stolleis, Michael, A History of Public Law in Germany, 1914-1945, Oxford, Un. Press, 2004, p. 340). Termina Stolleis: “Com o Estado, Movimento, Povo, Schmitt articulou a trindade que invadiu toda o aparelho de propaganda do regime”. 
“Povo”, é preciso repetir, inclui apenas os arianos. Tal povo é protegido pelo Estado nazista com força física e leis excepcionais. Assim ocorreu com a lei de 14 de julho de 1933, que autoriza a esterilização em casos de imbecilidade hereditária, esquizofrenia, loucura depressiva, epilepsia hereditária, dança de São Guido, cegueira hereditária, surdez idem, grave deformação física. Algo pior surgiu com as leis de Nuremberg. Os decretos eugênicos se detinham no pretenso saber científico. As leis de Nuremberg definiam a cidadania em termos raciais e nomeavam o inimigo de raça, o judeu. Aqui importa ler (falo sempre para os honestos que não vivem do ouvir falar nem de slogans) os livros de Fr. Neumann (Behemot. The Structure and Practice of National Socialism, Oxford, University Press, 1944) e de R. Hilberg (La destruction des Juifs d’Europe, Paris, Arthème Fayard, 1988). Schmitt segue a diretiva posta em Mein Kampf. “O alvo supremo deve ser a expulsão total dos judeus.” Hitler fala em exterminar (Vernichtung) e mesmo em uso de gaz contra eles. A sorte da Primeira Guerra Mundial, segundo o futuro Führer, seria outra se no fronte, em vez de soldados, 10 mil ou 15 mil hebreus tivessem sido expostos aos gazes asfixiantes. Schmitt/Hitler foram eficazes. Mataram milhões de judeus.
Não é possível atribuir inocência a quem elogia a eutanásia ou o genocídio. Na Alemanha nazista ou no Brasil de hoje, pregar aquelas medidas é crime. Se alguém usa conceitos genocidas e diz ignorar o seu significado, exibe incompetência para exercer cargos públicos. Se os utiliza e conhece os sentidos neles presentes, o crime é maior. Schmitt exibe anti-semitismo, traduziu aquela ideologia em textos jurídicos postos em leis. Ele ajudou a estabelecer a exclusão social e biológica que gerou o Holocausto.
Em 1938 os judeus foram obrigados a acrescentar ao seu nome o título de “Sara” ou “Israel”. Como indica Yves Charles Zarka, desde 1936, em discurso intitulado A ciência alemã do direito na luta contra o espírito judeu (Die deutsche Rechtswissenschaft im Kampf gegen den jüdischen Geist, in Deutsche Juristen Zeitung, XLI, n 1, pp. 15-21) Schmitt inventa a purificação racial da escrita jurídica. Devem ser evitadas, diz ele, referências aos autores judeus. Se for impossível cortar o nome, se acrescente o adjetivo “judeu”. No escrito O Leviatã na teoria do Estado de Tomas Hobbes (Der Leviathan in der Staatslehre des Thomas Hobbes, Stuttgart, Klett- Cota, 1938) ele usa a identificação recomendada e cita “um sábio judeu, Leo Strauss”, “Spinoza, o primeiro judeu liberal”, “o judeu Mendelssohn” etc. 
Se era impossível impedir que os judeus usassem a língua alemã, mais difícil o combate para que eles fossem excluídos do território. O judeu, na ideologia nazista, é inimigo externo e interno, penetra na alma alemã e conspira contra o Reich no países liberais como a França, a Inglaterra, os EUA. O judeu: inimigo estratégico. Desde O conceito do político (Der Begriff des Politischen, text von 1932 mit einem Vorwort und drei Corollarien, Berlin, Duncker & Humblot, 1963) Schmitt dá o tom: “Os conceitos de amigo e inimigo devem ser tomados na sua significação concreta, existencial, não só como metáforas ou símbolos”. A essência do político está no conflito extremo, com a morte do adversário. O inimigo, para o nazismo e para Schmitt, é o judeu. O conceito de inimigo, bem como o de decisão, povo, movimento, estado de exceção, ditadura, são comuns ao nazismo e a Schmitt como pares siameses. É má fé ou ignorância tentar separá-los para os aplicar em contextos diferentes do totalitário. 
O jurista faz suas as leis de Nuremberg. Quando aquela teratologia jurídica foi editada, Schmitt já detinha cargos importantes no Estado nazista. Göring o nomeou para o Conselho de Estado da Prússia, onde partilhou o espaço com Himmler e outros dignatários do regime. Em 1933 é professor titular de direito público em Berlim. No mesmo ano ele publica Estado, Movimento, Povo. Em 1934 dirige o Deutsche Juristen Zeitungen, órgão oficial do direito nacional socialista. E publica O Füher protege o direito, onde justifica Hitler depois da “Noite das Longas Facas”. Eis o estilo schmittiano: “O Füher executa verdadeiramente os ensinamentos extraídos da história alemã. Isto lhe dá o direito e a força para fundar um Estado Novo e uma Ordem Nova. O Füher protege o direito contra o pior uso abusivo, no instante do perigo, ele legisla diretamente em virtude de sua qualidade de Füher e de suprema autoridade judiciária”. (Der Füher schützt das Recht in Deutsche Juristen Zeitung, XXXIX, n 15, pp. 945-950). É possível usar em nossos dias os conceitos de Schmitt como se fossem universais? Minha resposta é negativa.
Afirmar que um nazista inspira formas democráticas é tão desprovido de significação quanto dizer que Minha Luta gera direitos humanos. Mas intelectuais europeus e norte-americanos de hoje jogam ao público a armadilha envenenada. Exemplo nauseante: ao escrever sobre o estado de exceção, certo comentarista afirma que o conceito “se relaciona com a preservação do Estado e defesa do governo legitimamente constituído e das instituições permanentes da sociedade. E argumenta que a ‘exceção é diferente da anarquia e do caos’(nosso comentarista cita O conceito do Político, RR). Ela é uma tentativa para restaurar a ordem. Os excessos bárbaros e o puro poder arbitrário não constituem o objeto de Schmitt”. O comentário afirma que Schmitt é conservador, mas seu “pensamento se distingue do fascismo e do nazismo em sua subordinação de todas as instituições sociais a entidades idealizadas como o Líder do povo. Porque, segundo Schmitt, a exceção nunca é a regra, como ocorria com o fascismo e o nazismo” (Cf. P. Hirst, Carl Schmitt’s decisionism in Ch. Mouffe (ed.) The Challenge of Carl Schmitt, New York, Verso Ed., 1999, p. 12).