segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Uma universidade, a de Campinas, um universitário (idem) que merecem respeito!

No CEB ou na Amazônia, o foco de Ryan é o paciente

Engenheiro que trabalha com manutenção de equipamentos médicos atua como voluntário em aldeias

Nunca houve uma correspondência da Embaixada de Moçambique que retornasse para alegrar Ryan Pinto Ferreira, apesar do sonho em participar de missões na África. O desejo de atuar em comunidades carentes de atenção o motivava a procurar qualquer tipo de organização responsável por missões ou expedições a lugares onde há pessoas à margem de atendimento. Nessa busca, tomou conhecimento da organização não-governamental Expedicionários da Saúde (EDS) e não teve dúvida, foi realizar manutenção de equipamentos médicos na Amazônia. 

Pelo menos duas vezes ao ano, se despede da família e das atividades no Centro de Engenharia Biomédica (CEB) da Unicamp para cuidar de parte importante de procedimento pré-cirúrgico: a eficácia dos equipamentos. “Quando descobri que a ONG era de Campinas, vi que, finalmente, poderia ajudar não somente como cidadão, mas como profissional, pois os voluntários transportam equipamentos para lá. Alguns deles chegavam a pesar 200 quilos. Agora, com o avanço tecnológico, vamos conseguir utilizar equipamentos compactos.” 


A Expedicionários da Saúde é uma organização humanitária que leva atendimento cirúrgico aos povos indígenas da Amazônia. O reconhecimento ao trabalho da ONG tomou uma página no periódico francês Le Monde, que publicou, em setembro, uma matéria sobre o engajamento do fundador, o médico Ricardo Afonso Ferreira. 

Como engenheiro, não se contentou em somente trabalhar para receber, pois, em sua opinião, trabalho não é somente aquele com o qual se pode ganhar dinheiro. Até porque retorno financeiro nunca é suficiente. “Sempre tento transmitir isso a meu filho, Giovanni, de 15 anos, e ele já pensa em me acompanhar à Amazônia.” 

Para as atividades do outro lado do País, Ryan tem o aval da esposa, Adriana. Até porque a casa onde moram é o local de recepção de equipamentos que conserta para a ONG. “Sempre digo que tenho dois empregos, pois, mesmo quando não estou em viagem, me ocupo com a expedição. O trabalho não se restringe à manutenção. Também instalo, embalo, carrego as imagens. Faço logística e planejamento de compra e instalações de equipamentos. Hoje, lutamos para mudar as instalações.”
No dia a dia, no Laboratório de Engenharia Clínica do CEB, o esmero e a satisfação com que também executa seu trabalho evita riscos a pacientes e profissionais do Hospital de Clínicas (HC) da Unicamp. Mas quando chega a cidades como São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, e tem a oportunidade de assentar-se ao lado das pessoas e ser mais que um engenheiro, acaba participando da emoção de ouvir um a um os pacientes operados dizerem: “Estou enxergando”. “Passamos horas trabalhando para instalação, manutenção, longe da família, dormindo mal, com riscos de contrair doença, mas quando a gente vê o resultado, a pessoa enxergando, é impactante. Vemos o quanto vale a pena. Aí não tem jeito, queremos voltar.”

A expectativa toma conta de parte da equipe que não pode assistir às cirurgias. “Há momento em que saio de cena, instalo os equipamentos e aguardo o resultado, pois não permanecemos durante as cirurgias, mas quando volto e vejo que as pessoas vão poder contemplar aquele ambiente em que vivem, fico emocionado. Os índios têm o jeito deles. São mais reservados. Muitos não demonstram o que sentem, mas sempre alguém se manifesta.” 

 Ryan descobriu que não precisava ir até Moçambique para se voluntariar. Já sabia que na Amazônia legal havia uma lacuna governamental no atendimento a algumas comunidades. Um olhar mais atencioso à população indígena o fez perceber que há vários problemas sociais e culturais quando o índio tem de se deslocar para uma cidade grande. Um deles é o alcoolismo. “É comum encontrar índio alcoolizado no meio da rua em São Gabriel da Cachoeira, por exemplo. Isso me faz pensar que alguns contatos com os brancos não são saudáveis. Os voluntários geralmente procuram chegar, prestar atendimento e ir embora, com o mínimo impacto. Um amigo dentista disse que os mais afastados do centro da cidade apresentam menos problemas, pois vivem da forma tradicional, usam medicamentos tradicionais. O contato tem prós e contras. Precisa ter cuidado. Uma vez eu vi um pajé dizendo: ‘Esta doença é de branco; tem de usar remédio de branco para curar.’ Eles tratam de formas diferentes doenças de brancos e índios.”

Convivência
Ao passar quase 20 dias vivendo e comendo juntos, Ryan consegue roubar alguns sorrisos dos indígenas, principalmente as crianças. A simplicidade que sempre teve durante sua criação e nos trabalhos sociais em uma igreja evangélica é intensificada cada vez que passa pela experiência. Apesar de a expedição durar sete dias, Ryan precisa chegar alguns dias antes. “Enxergo como vivem. Vivem bem, sem luxo. Então penso: por que preciso de luxo para viver?” A própria bagagem tem de ser singela. Não se pode levar muita muda de roupa, pois há um peso máximo para embarcarmos. 

“Andamos de chinelos e bermuda. Metade de minha bagagem vai com comida. A cultura diária do índio nos ajuda muito”, brinca.

Em alguns lugares, as fotos são proibidas, pois algumas etnias relacionam sua imagem com parte de sua alma. Ryan lembra que em uma das expedições, ele tentou fotografar crianças que jogaram futebol com ele, mas o pai questionou. “Mas a mãe falou braba com ele, na língua dela, e autorizou a foto.”

A aproximação nem sempre é rápida, mas alguns meios são usados para que os indígenas aceitem as visitas, entre eles copiar a maquiagem de seu povo. É comum em fotos ver enfermeiros, dentistas com o rosto pintado para facilitar o relacionamento.  Mas, algumas vezes, é preciso ter cuidado para não voltar ao trabalho formal ou para casa maquiado. Algumas tintas, avisa Ryan, saem somente depois de 15 dias. “Cheguei com rosto pintado. Havia chegado a minha casa às 6 da manhã e fui atender o pessoal de uma empresa aqui no laboratório. Eles ficaram olhando para mim e, talvez, se perguntando onde esse maluco havia tatuado o rosto”, brinca.
Na Unicamp, a lida com equipamentos começou cedo, aos 17 anos, como estagiário no mesmo laboratório. Aprendeu (e faz questão de reconhecer) com pessoas que hoje são subordinadas profissionalmente a ele, por conta da exigência de nível superior. “Fui acolhido por algumas pessoas que se tornaram muito importantes nesta trajetória. Recebi muitos conselhos de Carlos Rios quando fui estagiário dele. Ícaro Bellentani, meu chefe na época, foi uma espécie de tutor quando comecei como engenheiro.”

Na época, também começava uma trajetória acadêmica na Universidade, como estudante de eletrônica do Colégio Técnico de Campinas (Cotuca). “Aprendi muito no colégio. Tive excelentes professores. No cursinho reencontrei docentes de lá também.” 
 
A história com a instituição quase “cinquentona”, porém, começou antes mesmo de decidir por alguma carreira. As brincadeiras nas escadarias do Ciclo Básico o divertiam enquanto a mãe estudava pedagogia na Faculdade de Educação. O primeiro a abrir a fila, porém, foi o pai, formado em engenharia elétrica. “Minha mãe veio estudar quando nós já tínhamos nascido, então, aos 7 anos, já frequentava o campus de Barão Geraldo. Aos 13, ela vinha fazer complementação, e eu também acompanhava. Minha irmã mais velha também estudou pedagogia aqui.” Mas não foram somente as referências familiares que o inspiraram a estudar na Unicamp. “Vim por oportunidade e necessidade, pois havia somente dois cursos noturnos de engenharia elétrica na região, um gratuito e outro pago. Então, estudei muito para me formar no gratuito.”

Ao concluir o ensino técnico, Ryan foi contratado como estagiário pelo CEB e, logo em seguida, foi aprovado em concurso público para técnico em eletrônica. Em 1994, entrou na segunda turma do curso noturno de engenharia elétrica. “Tempos difíceis, mas recompensadores. Eu trocava dias de férias por dias de preparação para as provas. No final, quase não tinha férias, mas sabia que mais tarde seria recompensado pelos esforços durante a graduação. Poder trabalhar e estudar aqui foi muito bom.”

Assim como na aldeia, Ryan alegra-se por colaborar com a prática médica em seu dia a dia. “Tenho no quadro de funcionários quatro técnicos, um estagiário e ajudamos a manter os equipamentos em bom funcionamento até o final da vida dele. É gratificante quando tira o foco do trabalho, do estresse e coloca o foco no paciente. Isso ajuda muito a entender as coisas e passar pelas dificuldades normais de uma rotina. É bacana ver o que fizemos. Isso faz diferença.”