sábado, 17 de agosto de 2013

Santa Teresa de Jesus, por Roberto Romano


Santa Teresa de Jesus, crítica da ética

Roberto Romano



Nada mais estranho à experiência mística do que o automatismo ético. A primeira abre sendas para o Absoluto, e o segundo fecha almas e corpos nos ritos estereotipados do cotidiano e dos preconceitos. Flaubert narra, no conto “Um coração simples”, o drama religioso de uma pobre alma que perdeu gradativamente as referências objetivas do mundo. Felicidade, nome da mulher que auxilia uma senhora morta há pouco tempo e  cuja habitação se esvaziou de móveis e de gente, segue um calvário de ilusões e tristezas. A piedosa Felicidade confunde seu papagaio com o ser divino: “Envolvendo-o com um olhar angustiado, ela implorava ao Espírito Santo e contraiu o hábito idólatra de rezar, ajoelhada, diante do papagaio. Algumas vezes, o sol penetrava pela janela e feria seu olho de vidro, fazendo jorrar um grande raio luminoso que a punha em êxtase”.

Insistamos nos elementos dessa narrativa. A relação com o divino, como nas grandes experiências religiosas e filosóficas ocidentais, valoriza os olhos. A humilde Felicidade retoma um culto ao Sol bem anterior ao cristianismo, cerimônia que surgiu de remotas eras e chegou ao século 18, à época das Luzes. O platonismo que molda boa parte do pensamento cristão insiste no vínculo entre os olhos e a divinização humana. O ápice dessa doutrina verificou-se, pouco antes de Flaubert, no pensamento europeu dos séculos 18 e 19. Das páginas redigidas pelo Pseudo-Dionísio Areopagita (que viveu no quarto ou quinto século depois de Cristo) aos escritos de Goethe, a semelhança entre o Absoluto e o Sol define as formas contemplativas do Ocidente. Indica o Pseudo-Dionísio: “Porque como o nosso astro solar – não por cálculo ou escolha, mas pelo seu próprio ser, ilumina todas as coisas para espalhar sua luz, cada um em seu grau – , assim o Bem, como superior ao Sol, como arquétipo por excelência, está acima de toda imagem obscura e envia para todas as coisas os raios de sua bondade, segundo as suas capacidades. Por esses raios subsistem todas as essências inteligíveis e inteligentes com suas energias e poderes” (Sobre os nomes divinos).

 “Deus”, afirma Tomás de Aquino, um seguidor parcial do Pseudo-Dionísio, “não quer que se faça o mal, nem quer que não se faça; o que Ele quer é permitir que se faça, e isto é bom” (Summa Theologica, 1 q. de 19 a 9). O espelho  terrestre foi embaçado pelo hálito pestilento do mal, mas pode ser limpo e  resplandecer novamente. A criaturas atingem a perfeição no campo iluminado pelo brilho divino. No capítulo sobre a luz e a visão dos homens, Aquino refuta a aproximação entre os últimos e o morcego “que não pode ver o mais visível, o Sol, por causa  precisamente do excesso de luz”. Os homens não nasceram para a lamentável escuridão, e seu alvo é a perfeita alegria da vista: “Como a suprema felicidade do homem consiste na mais elevada de suas operações, a do intelecto, se este nunca pudesse ver a essência divina, segue-se que o homem nunca alcançaria a felicidade, ou que esta é algo distinto de Deus, o que se opõe à fé (…) uma coisa é tanto mais perfeita, quanto mais se une ao princípio”. Logo, “os bem-aventurados vêem a  essência divina” (Summa, 1 q., de 12 a 1).  

 Mas como pode o homem unir-se ao divino? Os anjos e a sua hierarquia, espelhada na hierarquia eclesiástica, dão a primeira resposta. A segunda foi explicitada por Tomás de Aquino: “É indispensável que, em virtude da Graça, seja-lhe concedido o poder intelectual e este acréscimo de poder é o que chamamos iluminação do intelecto, bem como chamamos luz ao objeto inteligível. Esta é a luz de que fala o Apocalipse referindo-se à sociedade dos bem-aventurados que vêem a Deus, que a claridade de Deus a ilumina e graças a esta luz se fazem deiformes, isto é, semelhantes a Deus (idest Deo similes)” (Summa, 1 q. de 12 a 5). Os entes humanos, pela Graça, tornam-se iguais a Deus na contemplação beatífica, na transcendência eterna.

  Passaram-se os tempos e no século 19 lemos no “Prefácio” da Doutrina das cores, escrito polêmico de Goethe contra Isaac Newton: “Se o olho não fosse solar, como poderíamos ver a luz? Se em nós não vivesse a própria força divina, como poderia extasiar-nos o que é divino?”. Retomada por Schelling, filósofo e místico do idealismo alemão, a fórmula recebera um tratamento irreligioso na pena dos Enciclopedistas franceses. Sem Deus, pensam os Philosophes, os olhos expressam o espírito que nos resta e o melhor em nós. “O olho pertence à alma mais do que todos os demais órgãos, ele exprime… as paixões mais vivas, as emoções mais tumultuosas, assim como os movimentos mais suaves e o sentimentos mais delicados; ele as mostra em toda a sua força, toda sua pureza, tal como acabaram de nascer; ele as transmite por clarões rápidos que levam até uma outra alma este fogo, a ação, a imagem daquela de onde partem. O olho recebe e reflete ao mesmo tempo a luz do pensamento e o calor do sentimento” (Enciclopédia dirigida por Denis Diderot, artigo “Olho”).

  A herança de Platão, poeta sublime, é evidente nas passagens citadas acima. Mesmo o lado aristotélico do pensamento ocidental, incluindo o cristianismo, sorve da água cristalina que brota dos Diálogos. No De anima, Aristóteles compara a atividade do intelecto agente à da luz, metáfora que determinou a maior parte de nossas doutrinas sobre o conhecimento e a prática. Para quem, na antiga Igreja Católica, levou adiante a reflexão sobre os exercícios místicos, como Orígenes, o conhecimento de Cristo segundo o corpo compara-se à sombra, o saber de acordo com o espiritual aproxima-se da luz. Pedro, o Venerável, fala de uma luz invisível que resplandece de repente na alma.

  Santa Teresa, a grande mística da modernidade, com João da Cruz, afirma não entender direito o que os mestres espirituais da Igreja aludem com a metáfora das luzes e do Sol. No Livro da vida, ela escreve com aparente ingenuidade: “Em alguns livros sobre a oração dizem que, embora a alma não possa chegar por si mesma a este estado (contemplativo), porque ele inteiro é obra sobrenatural do Senhor, seria possível ajudar-se liberando o espírito de tudo o que é criado e erguê-lo com humildade, depois de muitos anos de vida purgativa, e aproveitando a vida iluminativa. Não sei bem por que dizem ‘iluminativa’”.

Não sei bem… com o pequeno enunciado, a mais poderosa alma poética e mística do cristianismo moderno joga montes de teorias sobre a luz na obscuridade.

  Quando uma idéia, um conceito, uma prática tornam-se “verdadeiros” porque habituais, perdem o significado vivo que possuíam quando foram gerados no intelecto e na alma. Esse foi o destino da figura solar no mundo moderno. A secura que envolveu a imagem da luz como símile da união entre Deus e os homens fez brotar a visão melancólica de Flaubert, evocada acima, sobre o modo “contemplativo” de Felicidade. O automatismo, as repetições, cauterizaram o útero gerador de significados na metáfora solar. Teresa de Jesus “não entende” o símile, justo porque experimenta a mais elevada situação mística. O lugar-comum sobre a luz nada lhe diz no instante em que sua existência é arrebatada pelo divino. Falar em luminosidade para exprimir os vínculos entre o finito e o infinito tornou-se banal, retórica vazia e, mesmo, garrulice ensandecida.

O conto de Flaubert sobre a “mística” Felicidade tem o mesmo tom corrosivo do terrível Dicionário de idéias recebidas. E retoma a desconfiança, expressa por Santa Teresa, diante das metáforas das luzes. As palavras e os conceitos, gastos pelo tempo e pela repetição, perdem o valor, são moedas sem cara ou coroa. E chegam à tolice que mimetiza o espiritual, mas conduz à pobre animalidade. É a mesma passagem da pomba, evocando o Santo Espírito, ao papagaio. Este fala, mas seus vocábulos reiteram a parolagem vazia, nunca o Logos que fertiliza o universo dos sentidos. Quando ouvimos um lugar-comum proclamado com certeza dogmática, ficamos embaraçados, com vergonha de nós mesmos. Essa experiência aparece em quase todos os instantes da vida social, política, econômica. Na religião, semelhante tortura também se repete, especialmente quando o padre, no sermão enfadonho e mecânico, caminha para o lugar-comum e o “fiel”, assim alimentado, escreve sua vida de fé copiando modelos gastos por milênios de uso. 

No conto de Flaubert, Felicidade (quanta crueza neste nome!) nada compreendia dos dogmas católicos. Nas preleções sobre religião, lemos ali, “o padre discorria, as crianças recitavam… foi dessa maneira, por muito escutar, que ela aprendeu o catecismo”. Uma crítica literária preocupada com a psicanálise afirma sobre essa passagem: “O exercício sociolingüístico da repetição torna-se uma espécie de aprendizado, um condicionamento, um automatismo. Toda prática lingüística repetitiva veicula uma potência de hipnose que induz o indivíduo a comportamentos sociais ou mentais estereotipados, nos quais ele abdica de sua subjetividade. Felicidade é assim habitada por automatismos da linguagem”. (Shoshana Felman, “Gustave Flaubert, Folie et Cliché”, In La folie et la chose littéraire, Paris: Seuil, 1978.)

Repetição de falas, imagens, gestos: estamos em pleno campo da ética e dos costumes. Quando um discurso ou uma constelação de figuras são gerados, eles cumprem ou não o papel de unir pessoas ou povos. Se conseguem fazer isso, são repetidos e copiados. E começa o automatismo. Os herdeiros de uma cultura a retomam como se ela fosse natural, inquestionável, como se ela valesse no pretérito e no futuro, tivesse a forma de um tesouro inexaurível. Dessa fonte nascem os costumes e as suas justificativas, surgem os preconceitos e o fanatismo. Este último consiste em acreditar nas palavras habituais, retomando gestos idem. O fanático se transforma em uma fria máquina que repete fórmulas tidas por ele como “evidentes”. O fanático jamais duvida. Ele mata o pensamento em si mesmo e os sentidos de sua alma. O fanático resseca toda lógica viva nas frases, no espírito. Ele repete, como papagaio, o “verdadeiro” do qual, lhe asseguram, é o único proprietário.

Um santo ou místico não é fanático. A “ingênua” afirmação de Teresa de Jesus mostra o ponto. Ela não sabe o que significa a metáfora da luz na experiência anímica,  duvida de um conjunto imagético que veio da Grécia clássica, atravessou o helenismo e a Idade Média, invadiu o mundo moderno para determinar o saber perfeito e universal. É duvidar de muita coisa! Com semelhante dúvida, ela também se expõe aos zeladores do reiterativo, no caso de Teresa, da Santa Inquisição. Como têm dúvidas, a Santa também suspeita dos costumes, do automatismo que congela o espírito em “práticas” canônicas.

A experiência, descrita por Flaubert na pessoa de Felicidade, já fora criticada no Renascimento pelo cético Montaigne.

  Montaigne afirma com tranqüila condescendência:  “Concebeu muito bem a força do costume, aquela pessoa que forjou este conto: certa camponesa, tendo aprendido a acariciar e trazer nos braços um vitelo desde a hora do seu nascimento, e continuando sempre a fazer a mesma coisa, acostumou-se tanto que, embora o vitelo tenha se transformado em um boi, ela ainda o carregava. Pois o costume, na verdade, é um mestre violento e traidor. Ele estabelece em nós, pouco a pouco, à socapa, o pé de sua autoridade: mas com esse doce e humilde começo, tendo-o afirmado com a ajuda do tempo, ele nos mostra uma face tirânica e furiosa, contra a qual não temos mais a liberdade de sequer levantar os olhos. Nós o vemos forçar todos os golpes das regras naturais: Usus efficacissimus rerum omnium magister. (…) o costume idiotiza nossos sentidos (…) e o que é mais estranho, que apesar de longos intervalos, o costume possa unir e estabelecer o efeito de sua impressão sobre nossos sentidos: como experimentam os vizinhos dos campanários. Moro numa torre onde um enorme sino toca todos os dias às ave-marias. Esse barulho espanta até mesmo a minha torre, e nos primeiros dias é insuportável, e pouco depois me domestica de tal modo que o escuto sem dores. Platão reprovou um menino que jogava. A criança lhe respondeu: ‘me reprovas por algo insignificante. O costume, replicou Platão, não é algo insignificante’. (“Sobre o costume e sobre não mudar facilmente uma lei recebida” In Ensaios).

Teresa de Jesus tinha dúvidas sobre as metáforas da luz como fonte de contemplação e desaconselhou o costume. Na Visita de Descalzas, lemos o seguinte: “O costume é uma coisa terrível em nossa natureza, e pouco a pouco e em poucas coisas são feitos agravos irremediáveis à Ordem….”. Pouco a pouco, no diagnóstico sobre a tirania ética (dos costumes), concordam o cético Montaigne e a santa religiosa. No Camino de perfección, diz ela: “Grandes danos são feitos ao começar um costume ruim, mais gostaríamos de morrer do que significar a causa desse fato”. Ao longo dos escritos de Santa Teresa, encontram-se advertências contra os costumes. Eles não levam à experiência contemplativa autêntica, nem encaminham para a santidade. São espécies de automatismos que afastam a via mística e determinam apenas o que é humano, demasiado humano.

O mundo religioso abarca as mais diversas e contraditórias formas de vida e de morte. Todos os que leram os grandes místicos se acostumaram a neles encontrar liberdade e carinho para com os sentidos humanos, para com os outros viajantes na estrada do Absoluto. Neles, não encontramos a rigidez cadavérica dos fanáticos que repetem cultos, gestos e palavras, repetem costumes. A seiva espiritual percorre cada ato dos místicos verdadeiros, neles revelando piedade e amor pelos que pensam e agem de maneira diversa. Um carola seco e impiedoso, preso nas sacristias ou nos palácios de governo, só conhece a letra fria da lei, estranha o espírito que lhe dá alento. O místico autêntico joga-se no divino com a voragem da esposa, no Cântico dos Cânticos. Um enlace erótico assim descentra o sujeito, abre todos os seus poros para o Outro. Ele não mais se preocupa com o pequeno Eu que o prende ao ordenamento do mundo. Ele não mais se imagina como fonte de poder e de mando, não aceita mais o papel de máquina que serve à disciplina mecânica e aos preconceitos éticos. Ele é livre. Quem duvidar, leia as  belíssimas Meditaciones sobre los Cantares. Aliás, o comentário de Teresa foi condenado à fogueira em 1580, por motivos evidentes: o fanatismo sentiu-se, como sempre, incomodado. Graças aos céus o texto chegou até nós, estropiado, mas com muito sentido. Quem deseja saber o que significa contemplação mística, leia aquele escrito. Verá que o relato de Flaubert retoma a face mais triste do cristianismo, não a sua esplêndida fronte humana, a qual se desenha na figura de Teresa. 

Roberto Romano

Professor titular de Ética e Filosofia Política da Universidade de Campinas – Unicamp \. Autor, dentre outros trabalhos, de O desafio do Islã e outros desafios, O caldeirão de Medeia (ambos pela editora Perspectiva) e Moral e ciência: a monstruosidade do século 18 (Senac)