domingo, 18 de agosto de 2013

Estado de São Paulo, 17/08/2013

 
 Praça dos três poderes.
 
 
 
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Poderes tirânicos do Brasil

17 de agosto de 2013 | 2h 06

Roberto Romano*
 
No governo tirânico o governante, "ao pisar as leis da natureza, abusa da liberdade dos governados, como se eles fossem escravos, e dos bens alheios como dos seus" (Jean Bodin, Os Seis Livros da República). Já vimos de tudo na vida política brasileira. O mais comum é o uso, pelos que operam o Estado, das coisas públicas em proveito próprio. Tais grupos e indivíduos cabem na definição do tirano formulada por Jean Bodin. Eles enriquecem às expensas do erário porque são blindados por normas ilegítimas e perversas se vistas sob o ângulo ético. Nada que discrepe dos juízos emitidos no Sermão do Bom ladrão: "Se o alheio, que se tomou ou retém, se pode restituir, e não se restitui, a penitência deste e dos outros pecados não é verdadeira penitência, senão simulada e fingida, porque se não perdoa o pecado sem restituir o roubado". Bom Vieira, colega jesuíta do papa Francisco! Ele teria na conta de réprobos o maior número dos que exerceram, exercem e com muita probabilidade exercerão cargos públicos no Brasil.

Até hoje, no entanto, era inédito que um Poder, não grupos ou indivíduos, se apropriasse indevidamente de um bem que pertence ao povo soberano (se tal expressão tem sentido no país em que sobrevivemos). Não conforta o recuo do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) no convênio com a Serasa para repassar informações da cidadania em troca de benefícios para seus funcionários. A identidade cidadã é destinada aos ritos da República democrática, o dever do voto. O TSE não é dono daquele bem e não tem direito algum de o alienar. Como semelhante golpe de Estado chegou ao Diário Oficial? Difícil aceitar que as autoridades daquele Poder nada soubessem sobre o trato que privatiza a cidadania.

Quando a população sai às ruas e mostra inconformismo com a arbitrária condução dos assuntos oficiais, os Poderes tudo fazem para aumentar a descrença e o esmigalhamento da fé pública. Parlamentares e governadores usam bens coletivos como se fossem prerrogativa do cargo, mas alguém no Senado prorrompe em falas oraculares e dogmatiza que a ética é subjetiva. Atentados similares ocorrem em todos os níveis e negam o essencial: "A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência".

Se o descalabro chega a tal ponto na instituição que deve dar-nos segurança e justiça, no Legislativo o desconforto não é menor. Em recente pesquisa de opinião o Congresso tomba no franco desprezo dos que pagam impostos e não têm licenças principescas como a de foro, o privilégio de hospitalização à custa do contribuinte, casa, automóvel e outras benesses ignoradas em todos os países democráticos. A cada legislatura nova os eleitos esmigalham as esperanças neles depositadas. A qualidade da representação piora, sem que se vislumbre saída prudente para o impasse do Parlamento.
O Executivo, embora acuado, dispõe do cofre para distribuir favores aos amigos, pão e água para a oposição. E legisla, usurpa impune atribuições dos demais Poderes. Ele move a propaganda sistemática, consegue reverter a péssima situação em que se encontra. Até onde? Até quando? Até que o atual regime constitucional seja abolido em seu proveito? O fato não seria raro na História do Brasil. Basta recordar as ditaduras do século 20 que reduziram o Judiciário e o Legislativo ao silêncio e à insignificância.

Quando os liberais defenderam o sistema parlamentar, "imaginavam ter nele um método de escolha política de dirigentes, um caminho seguro para afastar o diletantismo político e permitir o acesso só dos melhores e mais competentes à direção política. Tornou-se muito duvidosa a real competência do parlamento para formar uma elite política. Hoje em dia não somos mais tão otimistas a respeito desse instrumento de seleção; muitos já encaravam essa expectativas como obsoletas, e a palavra 'ilusão' poderia facilmente aplicar-se a certos democratas. As centenas de ministros constantemente apresentados como elite política pelos inúmeros parlamentos não justificam nenhum otimismo. Mas o que é pior, e desfaz qualquer esperança, é que o sistema parlamentar conseguiu transformar todas as questões públicas em objeto de cobiça e de compromisso dos partidos e dos agregados, e a política, longe de ser a ocupação de uma elite, passou a ser a desprezível negociata de uma desprezível classe de gente".

O parágrafo acima não me pertence, mas ao jurista que mais colaborou para o reforço absoluto do Executivo contra os deputados e senadores alemães. Sim, os especialistas notaram que o trecho foi escrito por Carl Schmitt (A Crise da Democracia Parlamentar). Se trocarmos a Alemanha pré-nazista pelo Brasil de agora, a tese de Schmitt sobre os parlamentares permanece válida, para nossa melancolia. No país de Getúlio Vargas e de Francisco Campos, de Filinto Müller e do AI-5, onde a hegemonia do Executivo foi imposta a ferro e fogo, dói constatar a desmoralização dos legisladores. Mas eles não se emendam. A votação do "orçamento impositivo" exemplifica o acerto de Carl Schmitt: destrói qualquer orçamento sério no País, serve aos fins eleitoreiros dos partidos e lideranças, sem preocupação com o Estado e a sociedade.

Os parlamentares cavam a sepultura do regime atual. Estudos sobre o tema não faltam. Em 2012 Fernando Bianchini, promotor de Justiça paulista, defendeu ótima dissertação de mestrado intitulada A democracia parlamentar na crítica de Carl Schmitt. Há inúmeros outros trabalhos sobre o risco autoritário no País, mas nossos representantes não os examinam, porque eles tornariam insuportável sua atuação como joguetes da Presidência federativa ou lobistas de alto coturno, sem cor republicana e democrática. 

  * Professor de Ética e Filosofia da Unicamp. É autor de "O caldeirão de Medeia" (Perspectiva).