domingo, 10 de março de 2013

MINHA ÚLTIMA AULA NA UNICAMP, SOBRE UM PERSONAGEM FEMININO PERSEGUIDO E DOMINADO POR HOMENS, SUZANNE SIMONIN, A RELIGIOSA DE DIDEROT.


A Religiosa, última aula.
Prof. Roberto Romano



Ao analisar o pensamento e as práticas de Diderot no plano do teatro, Béatrice Didier ([1]), autora de corretos trabalhos sobre a música no século 18 (sobretudo nas relações entre música, energia, ópera) indica o elo entre seu determinismo materialista e a sua concepção teatral. Ela mostra que a figura do pai, onipresente em suas peças (morto ou vivo) é o símbolo do determinismo biológico. Ninguém escolhe o próprio genitor, assim como o ser humano não pode mudar o ritmo e a mudança que ocorre no interior da natureza. Assim, para usar o mote de Jacques o Fatalista, “tudo está escrito lá encima”. Mas o homem deve fazer de conta que é livre. É assim que Jacques o faz, e assim ele é mais eficaz do que seu patrão, que confessa uma doutrina voluntarista. Os heróis submetidos ao pai, portanto, reconhecem o determinismo e buscam agir dentro de seus limites, mas não se subordinando cegamente a ele, mesmo nos piores resultados, nos fracassos trágicos.

Tal é a tela de fundo de A Religiosa. Aqui temos uma tripla (ou mesmo quádrupla) determinação que tange a vida da heroína. Em primeiro lugar o determinismo biológico cego que a torna filha de um desconhecido, devendo ela “pagar”pela sua origem no âmbito familiar, social, jurídico e religioso. Aqui, temos o elemento essencial da tragédia grega: o desconhecimento pelo herói da origem de seus males, algo devido à Τύχη . (Tyche). O erro viria da ignorância, ensina a filosofia clássica. Depois, o determinismo social, vivido como se fosse elemento da natureza,  decide quem é “filho legítimo”e quem não é. Aqui, a decisão cabe ao pai “verdadeiro” que assume o rebento, ou ao postiço, que pode aceitar a missão paterna ou não. De qualquer modo, a mulher que gerou o filho não tem voz ativa na sociedade patriarcal. Quem não foi assumido como legítimo sofre o peso de uma desgraça tão impiedosa quanto a marcha da natureza cega. Note-se que na Europa, particularmente na França absolutista, o costume machista se atenua em parte com o reconhecimento pelo rei, nobres, e mesmo burgueses dos filhos bastardos. Estes chegavam a ser tratados, social e juridicamente, como dignos de respeito e consideração. Como enuncia um autor do século 18, Ferrière, “Comme le mariage est la seule voie légitime de la propagation du genre humain, on distingue la condition des bâtards de celles des enfants légitimes; et même on ne donne le nom d'enfant aux bâtards qu'en y ajoutant quelque épithête, comme d'enfants naturels, ou autres. Les bâtards sont capables du droit des gens et du droit civil comme ceux qui sont nés en légitime mariage, par la raison que c'est la naissance seule dans un pays qui donne le droit de bourgeoisie et la capacité des effets civils. Ils peuvent donc acquérir et posséder toutes sortes de biens et de charges dans le royaume, ce qui est d'autant plus juste qu'on doit honorer la vertu, quelque part qu'elle se trouve”. ([2])Mas quanto menor a grandeza dos bens familiares e mais estreita a mentalidade da família, menos eram reconhecidos os bastardos, mais sofriam eles o castigo de uma “culpa”que não lhes poderia ser atribuída.

Trata-se do caso, em A Religiosa. Depois  temos o determinismo jurídico. Embora atenuada pelos costumes, sobretudo nas famílias aristocráticas e ricas, a regra da ilegitimidade tolhe as possíveis movimentações livres no mundo social, político e mesmo religioso. Aqui, o mesmo Ferrière citado anteriormente descreve a crueldade “santa”de maneira a concorrer com o texto diderotiano. Cito o trecho do Dicionário de Prática : “Se os bastardos não podem ser promovidos às ordens, nem possuir  benefícios na Igreja a não ser através da dispensa, não significa que algo lhes deva ser imputado por ocasião de seu nascimento; mas é apenas porque a mejestade da casa de Deus exige que seus ministros e funcionários seja isentos da menor mácula, mesmo daquela que não pode ser imputada a eles, mas aos que os lhes deram o ser. A razão e a religião, portanto, trabalharam unidas para punir o vício não admitindo no estado eclesiástico quem nasceu fora do casamento, porque é fruto da incontinência dos que lhe deram o ser”. Suzanne sequer poderia pedir licença para estar no convento como religiosa. Para “esconder”a culpa de sua geração, os pais mentiram hipócritamente para a sociedade, o Estado, a Igreja. Assim, temos o determinismo social e político dando-se as mãos para impedir a liberdade de um indivíduo humano.

Os determinismos são desafiados ao longo de A Religiosa por meio dos mais diversos procedimentos. Ela tenta usar a lingua contra o sacrifício que lhe é imposto. E perde. Tenta usar a lingua escrita, remetendo cartas às autoridades e ao marques de Croismare. Perde. Tenta assumir uma atitude distante em relação às regras monásticas, de modo a guardar alguma livre atitude corporal e anímica. Perde. Sua morte, no final, é o ápice do determinismo, que no seu caso não pode ser desviado, como em Jacques o Fatalista.

Leitor de Platão, além de ser um entusiasta dos trágicos gregos, Diderot descreve a tragetória de Suzanne como uma tentativa contínua e desesperada de lutar contra a Fortuna, sendo finalmente vencida de modo terrível. A narrativa pictórica de A Religiosa é na verdade uma peça teatral trágica, sendo os conventos cenários onde se espelham as paixões e sentimentos baixos da sociedade e do Estado. O teatro recolhe as duras verdades e mentiras do mundo, seja ele sagrado ou profano. Como disse, leitor de Platão ( e também tradutor do filósofo durante sua estadia nas celas de Vincennes), Diderot sabe perfeitamente que nas Leis (obra muito lida pelos juristas e filósofos modernos, desde o século XVI até hoje) se encontra o símile de nosso destino e o das marionetes, movidas por mãos invisíveis. Na altura de 644 d o Ateniense propõe indicações do que é a e esperança (ἐλπίς) diante do futuro. A que traz dor(λύπης) é dita “medo” (φόβος) e a que traz prazer é dita “confiança” e para pensar tais coisas, existe o cálculo sobre o bom e o péssimo. O cálculo, quando se torna um decreto público se chama “lei”. Diante das dificuldades para entender a tese, por Megilo, o Ateniense propõe a imagem: “Vamos conceber o assunto deste jeito. Vamos supor que cada um de nós, criaturas vivas, é uma engenhosa boneca dos deuses, seja para uso como brinquedo para eles ou para algum propósito sério (pois nada sabemos quanto a tal ponto). Mas sabemos que existem que dentro de nós existem afecções, como fios ou cordas, que nos empurram e, sendo opostos uns aos outros, puxam em opostas direções; aqui reside a linha que divide o bem do mal. Porque, segundo nosso argumento delara, há uma dessas forcas que empurram que todo homem deveria seguir, mas existem outros fios que agem em sentido contrário”. Além de Platão, Diderot era cultor de Horácio. Este, nas Sátiras (II, 7, 82) enxerga o homem como uma pequena marionete.

Importa nos deter na Sátira citada porque é nela que se encontra todo o mote de O Sobrinho de Rameau, a grande obra diderotiana sobre a fortuna do sábio e do medíocre. Naquele trecho, após condenar o indivíduo que foge de um espaço a outro, como se fosse dirigido imediatamente por Vertumnio, o deus das mudanças, e de um tempo para outro (chora pelos tempos antigos, mas jamais aceitaria neles viver ou voltar), Horácio ensina, como os seus colegas de filosofia, que o sábio comanda a si mesmo, não teme a pobreza, não teme a morte, nem a prisão, ele resiste aos próprios desejos, despreza as honras, vive em si mesmo como se fosse uma esfera perfeita, sobre a qual nenhum corpo pode se alojar e contra a qual se quebra a Fortuna, impotente.

Suzanne reúne em si mesma as qualidades do sábio, mas não totalmente, e as da marionete deslocada no espaço e no tempo, sem descanso. Ela não pode ser sábia, visto que é determinada de fora (o termo mais certo seria “alienação”), mas não é totalmente louca, porque busca afirmar sua autonomia e independência diante da riqueza, das honras. Ela, no entanto, tem horror (φόβος)  da prisão e não pode a ela se resignar estoicamente. Ela conduz a esperança (ἐλπίς)  de sair do convento até o máximo. Mas sua luta tem como obstáculo maior a lei que a sociedade dá a si mesma e a todos. E a lei é tirânica.  Dá para entender o porque do dito diderotiano sobre A Religiosa, “a mais terrível sátira sobre os conventos”. Neles ninguém consegue ser sábio in totum, nem louco. Todos são agidos como pequenas marionetes das quais se ignora o manipulador dos fios. Quem deseja analisar O Sobrinho de Rameau e A Religiosa (além de outros textos de Diderot, como Jacques o Fatalista e as peças teatrais) precisa inspecionar com o máximo apuro a Sátira de Horácio e as Leis de Platão. ([3])

Além dos determinismos naturais e sociais apresentados em A Religiosa (o embate de um ser humano que, à semelhança de bonita borboleta se recusa a ficar espetada numa parede de cela) temos outros problemas de ordem ética e moral que afligem as pessoas até hoje. É o caso do aborto em situações desesperadas. Como sua mãe era hipócrita e dizia ser cristã, o aborto não foi praticado e Suzanne nasceu. Diderot aconselha, pela voz de Suzanne, em casos semelhantes, o remédio do assassinato no berço: “Matai vossa filha em vez de a aprisioná-la num claustro contra sua vontade; sim, matai vossa filha. Quantas vezes desejei ter sido morta por minha mãe ao nascer! Ela teria sido menos cruel”.  Um comentador, Dominique Julien, nota que Suzanne não parece ter consciência de que tal é a função de seu encerramento no claustro pela sua mãe : matá-la para o mundo, para a família, para ela mesma. A tentativa reiterada, física ou imaginária de suicídio (a tentação de se jogar num poço profundo) pode ser a marca de seu desespero, mas também o desejo de levar o gesto da mãe ao máximo, matando a si mesma para que a genitora retornasse a um tempo sem máculas, à uma inocência agora impossível. A imagem da enterrada viva é obsessiva em Suzanne.

Metáfora da vida social, política, jurídica, o romance diderotiano só encontra similar no século 20, com os textos de Kafka. Que esta obra reúne elementos éticos, estéticos, políticos, religiosos, sociais, é patente. O sentido de semelhante síntese ainda ergue comentários e comentários dos especialistas. Com o curso que agora acabamos, pretendi levar aos estudantes as facetas de um autor que é filósofo, esteta, teatrólogo, crítico de arte, poeta, artesão, dicionarista, naturalista, médico, etc. Ou seja, com Diderot retroagimos a uma tempo em que a filosofia não era uma “disciplina”a mais no âmbito das ciências humanas. Ela era a busca de totalizar o saber e a prática dos seres humanos. Ela era, sobretudo, um desejo de liberdade no pensamento e na ordem social. Coisas que hoje parecem utópicas e desprovidas de sentido. Boas férias para os senhores!  



[1] Diderot dramaturge du vivant (Paris, PUF, 2001), existe exemplar na Biblioteca do IFCH.
[2] Claude-Joseph de Ferrière: Dictionnaire de Droit et de Pratique (Paris, Bauche Libraire,1771), página 58 e seguintes.  Existe edição eletrônica na Gallica, BNF.
[3] Importa consultar o clássico de Ernst Robert Curtius, A literatura européia e a Idade Média Latina, sobretudo o capítulo sobre as metáforas do teatro. Existe edição brasileira pela Edusp.