sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Correio Braziliense

  Correio Braziliense, Opinião, 09/05/2007



PAPA JULIO 2











A visita de um vice-Deus.
Roberto Romano

—“Sou designado Santíssimo Senhor, já me deram o nome de Santidade, sou Julio, podes me reconhecer pelas duas letras P.M. —São Pedro: “Elas significam, suponho, Peste Máxima. --—Julio: “Não, Pontifex Maximus !”. É bom reler a crítica de Erasmo ao Papa Julio 2, barrado na porta do paraíso pelo Apóstolo, o qual ignora nomes e prerrogativas papais.1 “Successor principis apostolorum”, “Princeps sui iuris civitatis Vaticanae”: violento contraste entre os títulos do Vigário e uma outra sátira, a de Hobbes : “o Papado é o fantasma do defunto império romano” e o seu poder só existe no “reino das fadas e contos da carochinha”. Mais: “quem não tem reino não pode fazer leis”. O juízo hobbesiano vai ao núcleo dos embates entre Igreja e Estado modernos. Abarcar poder civil e religioso, alvo do mando papal desde a Idade Média, define utopia surgida antes mesmo do vocábulo “Papa”. O seu germe é a distinção entre leigos e clero, tutor da ordem ética, política, jurídica.

A supremacia papal se reforça com a voga de Dionísio, o Pseudo Areopagita, traduzido para o latim por Scotus Erígena. Essencial à sua doutrina é a noção de hierarquia, unindo vida religiosa e poder político. “Hieros” (santo, sagrado) une-se a “Arche” (princípio, poder). Para Dionísio a hierarquia é o “sagrado sistema de graduações relativo ao conhecimento e à eficácia”. Nela, o cosmos surge como escada luminosa que liga um Deus inefável (Uno e origem de todo ser) à natureza. Na hierarquia celeste, anjos espelham o divino. Na terrestre, sacerdotes refletem a ordem celestial.2 Abaixo deles vêm reis e povos. Igreja e política vão da unidade à pluralidade.3 A segunda só existe presa à primeira, a santa monarquia garante os poderes.4 O ideário católico/vertical repele a visão democrática ateniense, o principio horizontal da isonomia, retomado na revolução inglêsa (o século 17 dos Levellers), na independência norte-americana e França de 1789.

Leão 1, ao definir seu cargo como auxiliar de São Pedro (cuius vice fungimus), usa a lógica da monarquia: Pedro delega aos sucessores a “potestas regendi”. O papa é principe da Igreja e do mundo. Para Santo Ambrósio, o imperador é filho, não soberano da Igreja (“Imperator enim intra ecclesiam, non supra ecclesiam est”). O poder secular não tem “auctoritas” e Isidoro de Sevilha o limita à força física para servir o clero. Sem medo, governos não subsistem : “Nam si omnes sine metu fuissent, quis esset qui a malis quempiam prohiberet?”. E Gregório 1 é dito “Consul Dei”,“pater Europae”. Desse ideário sem base histórica, surge a utopia da Societas reipublicae Christianae. 5

As pretensões do poder eclesiástico são mantidas, mas com elas o Sumo Pontífice perde sempre. Já a bula “Clericis Laicos” (1296) contra Eduardo 1 exige entrega absoluta ao governo religioso. Rei e Parlamento inglêses recusam obedecê-lo. Filipe o Belo, contra a Bula “Unam Sanctam”, que une o poder sacerdotal ao sol e o secular à lua, aprisiona o Papa (1302).6

O Estado moderno se afirma e a Igreja, em vão, dele exige obediência. A diplomacia vaticana reitera as teses hierocráticas, mas usa um trato realista com os governos. Pio 11 e Mussolini resolvem os choques entre Itália e Santa Sé. Entre 11 Concordatas e 3 acordos, com vários governantes, inclusive Hitler, fracassam as negociações Vaticano/URSS. O pontífice, um jurista, redige as cláusulas favoráveis à Santa Sé, contra a democracia e o liberalismo.

Hitler e Mussolini ameaçam: “Tudo no Estado, nada contra o Estado, nada fora do Estado”. Eles querem usar a Igreja, mas o papa os vê como braço armado. Realpolitik é arte de concessões. Pio 11 agradece o contributo fascista à Igreja (“Non Abbiamo Bisogno”) e reitera a Bula Unam Sanctam. Na Concordata com Mussolini, afirma, existem duas soberanias plenas, “cada uma na sua ordem, a qual é necessáriamente determinada pelos respectivos fins”, mas insiste na “absoluta superioridade da Igreja”. Aumenta, desde bom tempo, o trato com países laicos. Bento 15 canoniza Joana D´Arc.7

João Paulo 2 e Ratzinger retomam a “soberania religiosa”, oposta à democracia laica. Sem exércitos, usam da razão estatal européia e norte-americana, e a ela servem. Recursos do Irã/contras e serviços secretos ajudam o Vaticano como “instrumentum regni”.8 Na Igreja,impõem seu arbítrio a liberais, esquerdistas, conservadores. Ao morrer, o polonês angaria multidões, cativadas pelo seu carisma midiático. Muitos padres, religiosos, leigos são reprimidos. Sem eles, a Santa Sé é quartel político isolado, sem pastoral eficaz.

Bento 16 vem ao Brasil como estadista, monarca e religioso. Quem segue os problemas éticos brasileiros, nota que ele usa as nossas contradições para reforçar o poder católico. Uma Concordata entre Brasil e Vaticano, negada pelos dois lados, pode surpreender. Como as referidas acima, frutos amargos dela surgirão, minando a democracia. Acautelem-se cientistas, mulheres, minorias sexuais, educadores, movimentos republicanos.

Roberto Romano
Professor de Filosofia Política/Unicamp

1Erasmo de Rotterdam: “Julio, a quem São Pedro negou o céu”.
2 T. Aquino: Summa contra Gentiles lib.3, cap. 80-82;lib.4,cap.76.
3 Denys l ´Aréopagite: La hiérarchie céleste; La hiérachie ecclésiastique, bilingüe, trad. M. Gandillac.
4 Watt, J.A. : The theory of Papal Monarchy in the Thirteenth century.
5 Ullmann, W. : The growth of papal government in the Middle Ages; Robinson, I.S. : The Papacy 1073-1198.
6 Bettenson, H. : Documents of the Christian Church.
7 Utz, A.F. : La doctrine sociale de l´Église à travers les siècles.
8 Berstein, C. e Politi, M. : Sua Santidade.