domingo, 20 de janeiro de 2013

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Mujica, um uruguaio austero na presidência

O legado controvertido do homem que, entre um mate e outro, colocou o Uruguai entre os países mais liberais do continente depois de ficar 14 anos na cadeia

18 de janeiro de 2013 | 2h 04

SIMON ROMERO - THE NEW YORK TIMES - O Estado de S.Paulo
 
Alguns líderes mundiais vivem em palácios. Outros desfrutam de uma vida privilegiada, com um mordomo discreto, uma frota de iates e uma adega de vinhos com Champagne de safras especiais. E há também José Mujica, o ex-guerrilheiro que é o atual presidente do Uruguai. Ele mora numa casa simples nos arredores de Montevidéu sem nenhum empregado. Como seguranças, tem dois policiais à paisana estacionados numa rua de terra.

Numa declaração à nação, famosa exportadora de carne de gado, com uma população de 3,3 milhões de habitantes, Mujica, de 77 anos, recusou a opulenta mansão presidencial de Suárez y Reyes, com nada menos que 42 funcionários, e preferiu permanecer na casa onde ele e a esposa vivem há anos, numa pequena fazenda onde plantam crisântemos que vendem nos mercados locais.

Chega-se à austera habitação de Mujica depois de percorrer a rodovia O'Higgins, passando por bosques de limoeiros. Ao assumir a presidência, em 2010, seu patrimônio era de aproximadamente US$ 1.800 - o valor do fusca 1987 estacionado na garagem. Jamais usa uma gravata e doa cerca de 90% do salário, em grande parte a um programa de expansão de moradias para os pobres.

Sua atual versão de radicalismo discreto - uma mudança acentuada em relação aos dias nos quais ele pegou em armas para tentar derrubar o governo - exemplifica a emergência do Uruguai como talvez o país mais liberal do ponto de vista social da América Latina.

Sob o governo de Mujica, que tomou posse em 2010, o Uruguai chamou a atenção por tentar legalizar a maconha e o casamento de gays, e ao mesmo tempo implementar uma legislação das mais abrangentes de toda a região sobre o direito ao aborto, estimulando consideravelmente a utilização de fontes de energia renovável, como os ventos e a biomassa.

Enquanto a doença afasta o presidente Hugo Chávez da Venezuela do cenário político, deixando repentinamente o continente sem a figura exagerada que tanto influenciou a esquerda, o ascetismo praticado por Mujica é um estudo de contrastes. Segundo ele, para que a democracia funcione devidamente, os líderes eleitos deveriam se adequar mais à realidade. 

"Fizemos todo o possível para tornar a presidência um cargo menos venerado", disse Mujica depois de preparar o mate para todos na cozinha de sua casa, numa recente entrevista.

Enquanto passava a cuia de mão em mão, ele admitiu que seu tranquilo estilo presidencial pode parecer inusitado. No entanto, afirmou que se trata de uma escolha consciente para evitar as armadilhas do poder e da riqueza. Citando o filósofo romano Sêneca, Mujica disse: "O pobre não é o homem que tem pouco demais, mas o homem que anseia por mais".

O líder diante frente das mudanças do Uruguai, conhecido por seus inúmeros detratores e partidários como Pepe, é uma pessoa que poucos achariam em condições de ascender a essa posição. Antes que Mujica se tornasse produtor de crisântemos, era um dos líderes dos tupamaros, os guerrilheiros urbanos que se inspiraram na revolução cubana, realizavam roubos à mão armada a bancos e sequestros nas ruas de Montevidéu.

Em sua luta contra o Estado uruguaio, os tupamaros ganharam notoriedade pela violência. O diretor Constantin Costa-Gavras inspirou-se neles para o seu filme de 1972 Estado de Sítio, sobre o sequestro e execução, em 1970, de Daniel Mitrione, assessor americano da polícia uruguaia. Mujica disse que o grupo "tentava por todos os meios evitar matanças", mas também admitiu eufemisticamente seus "desvios militares".

Uma operação brutal conseguiu por fim dominar os tupamaros e a polícia capturou Mujica em 1972. Ele passou 14 anos na cadeia, mais de 10 numa solitária, frequentemente num buraco no chão. Neste período, o deixaram mais de um ano sem tomar banho, e seus únicos companheiros, contou, eram uma perereca e os ratos com os quais compartilhava migalhas de pão.

Alguns dos outros tupamaros que ficaram durante anos confinados em solitárias não tiveram o benefício da companhia de roedores amigos. Um deles, Henry Engler, um estudante de medicina, sofreu um grave esgotamento mental antes de ser libertado em 1985.

Mujica raramente fala da época que passou na prisão. Sentado diante de uma mesa no jardim, bebericando o seu mate, ele diz que teve tempo para refletir. "Aprendi que sempre se pode começar de novo", afirmou.

Ele optou por recomeçar ingressando na política. Eleito deputado, chocou os funcionários do estacionamento do Parlamento ao chegar a bordo de uma Vespa. Depois da ascensão da Frente Ampla ao poder em 2004, uma coligação de partidos de esquerda e de social democratas mais centristas, foi nomeado ministro da Pecuária, Agricultura e Pesca.

Antes que Mujica vencesse as eleições de 2009 por ampla margem, seu adversário, Luis Alberto Lacalle, menosprezou sua casinha chamando-a de "caverna". Depois disso, Mujica também provocou uma agitação nos meios políticos do Uruguai vendendo uma residência presidencial numa estância balneária, por considerá-la "inútil".

As doações o deixam com US$ 800 por mês do seu salário. Como declarou, ele e sua mulher, Lucia Topolanski, ex-guerrilheira que também foi presa e hoje é senadora, não precisam de muita coisa para viver. Em uma nova declaração em 2012, Mujica disse que compartilha da propriedade dos bens que antes estavam no nome da esposa, incluindo a casa e os implementos agrícolas, que contribuem para aumentar sua renda.

Ele destacou que seu antecessor da Frente Ampla na presidência, Tabaré Vázquez, também permaneceu na sua casa (embora Vázquez, oncologista de profissão, more no bairro da classe alta de El Prado), e José Batlle y Ordóñez, o presidente do início do século 20 que criou o estado do bem-estar uruguaio, ajudou a forjar uma tradição na qual "não existe distância entre o presidente e qualquer um dos seus vizinhos".

Na realidade, se há um país na América do Sul em que um presidente pode dirigir um fusca e viver sem um exército de seguranças será o Uruguai, que figura entre as nações da região com menos corrupção e menos desigualdade social. Embora a criminalidade comece a se tornar preocupante, o Uruguai continua um dos países mais seguros da região.

No entanto, o estilo de governo do presidente não agrada a todos os cidadãos. A proposta de legalizar a maconha, particularmente, provocou um violento debate e as pesquisas mostram que a maioria da população é contrária à medida. Em dezembro, Mujica pediu aos parlamentares que adiassem a votação sobre a regulação do mercado da maconha, embora ele pressione para que o projeto de lei seja debatido mais uma vez em breve.

"É uma vergonha ter como presidente um homem como ele", disse Luz Díaz, uma empregada doméstica aposentada de 78 anos que mora perto de Mujica e votou nele em 2009. Ela afirmou que não votaria mais nele se tivesse a chance. "Esse negócio da maconha é um absurdo", acrescentou. "Pepe deveria voltar a vender suas flores."

As pesquisas mostram que seus índices de aprovação estão caindo, mas Mujica diz não se importar. "Não ligo a mínima", disse, enfatizando que considera "monarquista" a possibilidade de se reeleger para mandatos consecutivos, proibidos pela Constituição uruguaia. "Se me preocupasse com as pesquisas, não seria presidente", afirmou.

Faltando dois anos para o fim do mandato, Mujica parece apreciar a liberdade de falar o que pensa. Quanto às suas crenças religiosas, disse que ainda está em busca de Deus.

Ele lamenta que tantas sociedades tenham a expansão econômica como prioridade, definindo-a "um problema para a nossa civilização" em razão das exigências feitas aos recursos do planeta. (O interessante é que a economia do Uruguai anda crescendo a uma taxa confortável anual estimada em 3,6%. Quando a cuia de mate ficou vazia, Mujica desapareceu na cozinha e voltou com um sorriso malicioso e uma garrafa de Espinillar, uma bebida alcoólica feita com a cana de açúcar. Ainda não era meio-dia, mas enchemos os copos e brindamos.

Depois disso, o presidente falou de vários assuntos: antropologia, ciclismo e a paixão dos uruguaios pela carne bovina. Ele disse que nem sonha em se aposentar, mas espera poder dedicar-se novamente à agricultura em tempo integral no final do mandato.

Finalmente, os olhos do presidente se iluminaram quando lembrou de um trecho do Dom Quixote, no qual o cavaleiro andante bebe vinho de um chifre e janta carne de ovelha com os pastores seus anfitriões, pronunciando um discurso sobre a "peste da cavalaria".

"Os pastores eram as pessoas mais pobres da Espanha", disse Mujica. "Provavelmente, eram os mais ricos", acrescentou.

 / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA
* É JORNALISTA