sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Outro texto antigo, mas interessante do ponto de vista político e estético.


Site Trama Universitário

Sobre o filme  ''Guerra nas Estrelas''

Roberto Romano

Quem segue “A Flauta Mágica” nota que a peça de Mozart pertence de fato à era das Luzes. Nela, o jogo entre o lado sombrio (a rainha da Noite) e o solar (Sarastro) se resolve na guerra onde vence o brilho da nossa estrela. É o que entoam os versos finais da obra: “die Strahlen der Sonne vertreiben die Nacht,/Zernichten der Heuchler erschlichene Macht” (“Os raios do Sol afastam a Noite, destruindo o Poder maligno”). Graças são dadas ao casal divino, Osiris e Isis, porque eles permitiram que o bom poder, o luminoso, triunfasse, “premiando a beleza e a sabedoria com uma coroa eterna”.

O romantismo lutou contra o triunfo da Luz celebrado por Mozart em nome da Razão. Os românticos tentaram dizer que os humanos são dotados de forças mais amplas (entre elas, o sonho e o dom dos poemas) do que a racionalidade científica e tecnológica. A imaginação é um poder cujo ápice encontra-se na fantasia, segundo Friedrich Schlegel, importante romântico. Para ele, a razão só conhece o mundo físico, que é exterior ao homem. A imaginação, em sentido oposto, conduz ao divino. Ela não brota apenas do intelecto e da pura lógica matemática, e o seu momento mais livre de amarras lógicas, a fantasia, gera a força dos sonhos e a beleza anímica. O termo alemão para a força em questão é “das Wunder”, o maravilhoso que afasta o cotidiano prosaico, sem graça, “racional”. Os mitos entram na perspectiva romântica deste maravilhoso, em favor do lado noturno da alma. Na fantasia, não existem contrários ou contraditórios insolúveis, como ocorre na lógica puramente intelectual. Nela, afirma Maxime Alexandre, “uma princesa nasce de uma gota de sangue, as árvores cantam, ocorrem chuvas de vinho ou as rosas caem como neve, as correntes dos riachos são de puro leite”.

Ao contrário do pensamento mecânico que determinou a cultura moderna, no romantismo os homens não constituem um sistema de máquinas cuja alma, puro pensamento, seria exterior ao corpo. Uma filosofia assim, que separa corpo e consciência, foi produzida pela doutrinas cartesiana, seguida pelo racionalismo até o século 18. A Luz da estrela solar (metáfora da consciência pura, separada do corpo) na guerra cósmica, espanca eternamente o lado escuro. No lado oposto a este ideário racionalista, os românticos assumem que é impossível superar a polaridade entre luz e trevas e que resiste sempre uma passagem possível das trevas às luzes, e vice-versa, da alma ao intelecto, etc. O romantismo une-se à Noite e à Morte, sendo esta última tão apaixonante quanto a via racional luminosa. Diz Novalis, talvez o maior dos poetas românticos: “É na morte que o amor transforma-se em mais doce; para o amante, a morte é noite nupcial, segredo de suaves mistérios”.

Para o romantismo, o universo imaginado enquanto máquina e produzido pelo cálculo matemático (sobretudo no século 18) é pesadelo ameaçador. Não é verdade, dizem os românticos, que os animais e os homens sejam apenas mecanismos automáticos e sem liberdade. Os mecanicistas do século 17, por exemplo, causaram uma anedota que ilustra bem a idéia do animal e do homem mecânico: certo dia um filósofo mecanicista topa com uma cadela grávida. Dá-lhe um pontapé. Seu colega o acusa de maldade. Resposta: “trata-se apenas de uma bem agenciada máquina”. Se os animais são máquinas e os homens idem, pensavam os mecanicistas, as sociedades e os Estados também seriam mecânicos. Os românticos erguem-se contra Hobbes que comparava o Estado a um relógio bem ordenado. A sociedade e o Estado, no pensamento romântico, seriam organismos, não máquinas, e nos organismos da sociedade e do Estado se reúnem indivíduos capazes de sentimentos, afetos, solidariedade. Se fosse verdade, de outro lado, que a consciência lógica seria a única atividade além da operação corporal, e se o corpo fosse de fato apenas máquina, desapareceriam a poesia, o sonho, a liberdade, porque a máquina não possui sentimentos.

A tese filosófica puramente racional afasta o aspecto sensível dos homens – a fantasia – e também expulsa os mitos e as fábulas. Sem estes últimos, a alma humana resseca. O mundo racionalista se reduz a afirmar a existência de um amontoado de engenhos mecânicos sem coração, emoções, liberdade ou sentimentos. O grito de Novalis resume o programa romântico: “é preciso romantizar o mundo (...) introduzir alma na máquina”. O programa político do romantismo prega o retorno à Idade Média (chamada pelos racionalistas a idade das trevas), com seus heróis e cavaleiros, suas fábulas, seus milagres, sua Igreja Católica organizada de maneira hierárquica como um corpo e não como uma fria máquina burocrática. A Idade Média é a era da fantasia, não da racionalidade sem coração.

Lucas se apropria desse legado romântico imenso e o projeta num futuro incerto onde as fronteiras do sonho e da realidade são mais incertas ainda. Seu filme expõe a existência de entes mecânicos em profusão maravilhosa. Existem Estados máquina, garantidos por soldados máquinas, onde os governantes são máquinas ou homens que se transformaram em máquinas. Na saga filmada por Lucas, a técnica e a mecânica podem ser dirigidas em favor da alma e dos sentimentos, mas também produzem morte e insensibilidade. Note-se a diferença entre o romantismo de Lucas e o de Stanley Kubrick. Este, sobretudo em “2001, uma Odisséia no Espaço”, mostra os malefícios da cultura mecânica e os limites do ser humano. É antológica, neste sentido, a seqüência que vai da morte de um macaco por outro, com um instrumento mecânico, um osso que perde a função de integrador do corpo animal e se torna porrete. Aquele osso, jogado para o firmamento, continua movendo-se com o formato de nave espacial e termina seu itinerário revestido com a forma de uma caneta flutuante. A caneta acumula os significados de vida e morte porque é imagem que sintetiza a ciência, a literatura, o poder. Entre o porrete e a caneta, a evolução apenas refina a força corrosiva da técnica e da ciência mecânicas. Hall resume o problema: ele é super inteligente e quando surge uma “falha” (a paixão do orgulho) no seu funcionamento, torna-se assassino frio. Em Kubrick, não existe salvação pela fantasia nem pelos sentimentos.

Já em Lucas as máquinas podem ser vencidas pela inteligência a serviço do sensibilidade. Sem fantasia não resiste nenhum afeto, o homem decai e se torna máquina insensível que produz poder e morte. Anakin, orgulhoso e vingativo, torna-se uma entidade mecânica e impiedosa, pois opera sem nenhuma simpatia ou amor pelos outros. Ele perde a fraqueza humana (as paixões), mas regride ao plano de “máquina sem alma”. A trilogia inteira retoma o “das Wunder” romântico, com suas maravilhas e heroísmos que realizam façanhas impossíveis se os parâmetros para elas fossem dados apenas pela ordem puramente racional. Em todas as seqüências de Star Wars domina a atmosfera onírica com base num pesadelo perene, a luta entre o lado escuro e o luminoso. Ao contrário, portanto, d'A Flauta Mágica, não existe vitória da Luz sobre as Trevas na trepidante narrativa de Lucas. Os humanos podem seguir o rumo do amor e dos afetos (dirigidos pela sabedoria) ou caminhar para a morte escura. Uma suspeita generalizada se espalha pelas seqüências, anunciando a mais do que certa morte do universo, dos homens e de suas instituições. Não existe república que sempre dure, não existe império que nunca acabe. A lição, aqui, serve para todos os poderosos que usam máquinas para dominar seres humanos.



Especula-se muito sobre o “recado” político do filme, se ele critica o império norte-americano ou faz a sua apologia. As duas hipóteses não indicam algo mais fundamental que se manifesta no filme. República e império são formas políticas derivadas, repetem o Estado enquanto um sistema mecânico superposto aos organismos dos seus cidadãos. Os regimes são cascas duras que emolduram as vidas individuais e coletivas. A tese romântica, claramente exposta por Lucas, recusa as formas derivadas do Estado, império ou república. Elas são instáveis, efêmeras, exteriores aos corações, caducas e só permanecem com o uso da força física, a guerra e o contínuo aperfeiçoamento das armas. A família, pelo contrário, é mantida por laços afetivos originais e não derivados. Ela resiste mesmo quando os regimes políticos estão em frangalhos. A família é o centro de sentido orgânico da vida coletiva e nela o afeto, os sentimentos, o amor, são os elos que unem indivíduos e grupos. Daí que os políticos procurem controlar, manipular ou mesmo extinguir os laços familiares. A obra prima da política imperial é a ruptura entre Anakin/Vader e seu filho, o que subverte todos os laços familiares e inviabiliza a família como fundamento de unidade societária. Esta tese sobre a família é o centro mais estratégico do romantismo, contra o Estado e a sociedade modernos, desde o começo do século 19.

Para dizer as coisas bem diretamente: pouco importa se o Estado aparece hoje na figura de uma república democrática, como seriam os EUA antes de se definir como a potência hegemônica ou se ele assume a função imperial, sob o comando conservador instalado na linhagem Reagan-Bush. Para Lucas, as duas formas são violentas, contrárias à vida orgânica, promovem a guerra e o avanço científico e tecnológico tendo em vista apenas a morte. O Estado, republicano ou imperial, é o inimigo da família, a única fonte da vida e dos afetos. Entre os regimes estabelecidos e a família, a irmandade Jedi ocupa um espaço intermediário. Nela, como nas ordens religiosas medievais, todos são “irmãos” e nela os afetos existem, temperados pela força que, por sua vez, é dosada pela sabedoria. Mesmo os jedis, no entanto, precisam das famílias para regenerar a sua organização. Embora vivam séculos, eles morrem e devem ser substituídos. A família cumpre o papel de renovar a fraternidade com indivíduos afetivos, pensantes, dispostos ao bem coletivo. Os jedis guardam a sabedoria tradicional e a força legítima, a família é a sua fonte de rejuvenescimento.

E dizendo as coisas mais diretamente ainda: Lucas não apóia a república ou o império norte-americano, mas reaviva o ideário conservador e romântico que lutou e luta contra a modernidade. Seus heróis viveriam perfeitamente adequados nos moldes de associações fraternas como a TFP. Esta última, na sua fala, ritos e gestos, é fóssil guardado no escrínio da memória e da imaginação. Nela pode-se enxergar o que foi o ideal romântico-conservador dos séculos 19 e 20. O filme de Lucas mostra, no entanto, que longe de se limitar ao folclore ultrapassado, como na TFP, o romantismo instalou-se na alma das massas, como resultado de uma propaganda que moveu poetas, romancistas, filósofos, antropólogos e, com o cinema e a TV, atingiu escala planetária. Star Wars é uma das versões românticas, talvez a mais popular, de nossos dias. Como disse acima, cineastas também românticos como Kubrick criticam o mundo do Estado mecânico que se mantêm apenas com a força das armas e com instrumentos tecnológicos que produzem morte. Basta assistir o magnífico Dr. Strangelove para perceber este ponto. Mas em Kubrick não existe nenhuma mensagem de salvação, como em Lucas. Este último apresenta a família e os afetos como o último recurso dos humanos contra o Estado guerreiro. A saga é um evangelho que anuncia uma notícia antiga como a crítica da modernidade ocidental, atualizando o sonho e o pesadelo anunciados pelos românticos.

A saga recolhe elementos das lendas medievais e do Oriente (outro traço do romantismo é a valorização da sabedoria do Oriente, em detrimento da seca racionalidade ocidental) e das poesias guerreiras (aristocráticas) elaboradas na Grécia. O herói de Homero implora à divindade: “Grande Zeus, dissipa a obscuridade que esconde os gregos; devolve-nos a luz; e se é preciso que pereçamos, se tal é a tua vontade suprema, faz com que pereçamos à luz dos céus”. Esta prece se repete nos mínimos gestos e falas dos jedis e de outros personagens valorosos expostos no filme. Todos eles temem o lado escuro da força, procuram ampliar o lado claro. A vitória da luz, ou das trevas, é sempre provisória, jamais garantida.

Nas sagas medievais o herói comete infrações éticas, viola as leis e os costumes, tendo em vista valores maiores que definem os seus alvos como a luta pela justiça, o resgate de uma donzela, a recuperação de um reino usurpado. Não se deve projetar nele a forma que impera depois do século 19, a do personagem segundo os termos de Carlyle, para quem o herói “é uma fonte vida de luz, junto a qual e agradável estar perto. A luz que ilumina e que iluminou a escuridão do mundo; e isto não apenas como uma espécie de lâmpada apenas, mas em vez disto como uma luminária natural brilhando por graça celeste; uma fonte fluente de luz (...) de uma intuição nativa e original, de masculina e heróica nobreza; —em cujo brilho todas as almas sentem-se bem”. No universo grego não se encontra nenhum sujeito assim.

Uma das marcas do herói grego é a metis (astúcia) que permite enganar os inimigos no momento exato (o kayrós). Como explica o antropólogo Jean-Pierre Vernant, em livro especialmente dedicado à noção de astúcia na Grécia, para um grego todos os seres naturais (e o homem integra a natureza) possuem a sua astúcia. O polvo a usa quando joga a tinta negra que o disfarça. O camaleão é todo ele astucioso. O pescador precisa de muita ardilosidade para apanhar o peixe no exato momento em que o animal passa no rio. Se ele não sabe jogar o arpão no momento exato (kayrós), perde o peixe. O político tem sua astúcia, etc. Ulisses seria, se pensado pelos padrões morais posteriores ao século 19, um perfeito salafrário, nunca um “herói”. Tanto na Grécia quanto na Idade Média há, sim, uma idealização dos heróis. Mas eles seriam tão formidáveis, generosos, destemidos etc, que os defeitos se integram no todo de seu caráter. Ulisses, na jornada de retorno ao lar, usa inúmeras trapaças. Agamenon é um covarde com sede de poder (não pisca ao condenar à morte a sua própria filha, Ifigênia, para garantir o controle dos gregos) e assim por diante. No teatro grego, Antigona é acusada de traidora porque enterrou seu irmão, Polinice, contra as ordens do governante. Polinice tomou as armas contra a sua cidade, tornando-se um traidor. Como o governante era um tirano, o gesto de Polinice é ao mesmo tempo bom e mau, ele é ao mesmo tempo herói e traidor.

No mundo dramático moderno, em Shakespeare encontramos um personagem heróico que se transforma em vilão. Trata-se do guerreiro Coriolano. Corajoso, leal, cheio de virtudes, aquele soldado defende os valores aristocráticos e se revolta contra a demagogia (que gerou o império). Coriolano é o guerreiro que salva Roma, mas se transforma em inimigo do povo romano. Ele, que estava para atingir o consulado, foi banido e se uniu aos inimigos da cidade. Trata-se de uma longa história de vingança.  O lado trágico de muitos heróis deve-se justamente à sua passagem do estatuto de homem “bom” para o de “renegado”. É o caso de Macbeth e, ainda na Grécia, de Édipo. O romantismo trouxe muitos exemplos deste tipo, como o caso de Michael Kohlhaas que lutou pela justiça e pouco a pouco degradou-se ao papel de vilão e sanguinário.