terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Gentilmente enviado pelo amigo Alvaro Caputo...




Revista Época 


As irmãs Cajazeiras entraram para a história da telenovela brasileira em  1973, com O Bem-Amado, uma das criações geniais de Dias Gomes. As Cajazeiras eram três solteironas mal-amadas e reprimidas que andavam emboladas, como um ente mitológico de seis pernas e três cabeças, esgueirando-se pelas calçadas estreitas da fictícia Sucupira. As três, Dorotéia (Ida Gomes), Dulcinéia (Dorinha Durval) e Judicéia (Dirce Migliaccio), perambulavam aos fuxicos íntimos, praguejando contra os outros personagens e declarando seu amor ardente, louco e platônico (quedepois enveredaria pelas vias de fato) ao “coroné” que mandava na prefeitura, o impagável Odorico Paraguaçu (Paulo Gracindo). Elas bem que remoíam seus ressentimentos contra os desmandos de Odorico - desmandos amorosos, inclusive - mas, fiéis como cachorras, não o criticavam publicamente. Jamais.

Agora, o espírito desgarrado das irmãs Cajazeiras parece querer sair da história da telenovela e ingressar na história do Brasil real. Os adoradores e as adoradoras que circundam a aura de Luiz Inácio Lula da Silva, como guardadores de uma imagem estacionada no meio-fio da política, carregam em silêncio eventuais dores e dissabores.

Nunca ousam expressar em público uma letra, uma vírgula de discordância, mesmo que num discreto e mudo repuxar de sobrancelhas. A lealdade irracional e fervorosa desses (e dessas) tomadores (e tomadoras) de conta não cede. Todos e todas, possuídos e possuídas por sua devoção incondicional, numa idolatria que arrebata ateus e crédulos indistintamente, não deixam que se veja em seu ídolo um único lapso de um único desvio. O cenário é francamente grotesco. Blindaram Lula a tal ponto que o ex-presidente começa a lembrar, inadvertidamente, a figura caricata do bem-amado de Dias Gomes. Como um Odorico involuntário, cercado de elegias e apologias tão fa-natizantes quanto patéticas, vê-se prisioneiro do culto de si mesmo. Tão refém que não tem o que dizer. Ou: não tem como dizer o que deveria dizer.

De tudo o que vem explodindo em matéria de escândalos que arranham ou evisceram a reputação do PT e do governo federal, de mensalão a Rosemary, o que mais chama a atenção é exatamente isso: ninguém, ou quase ninguém, virtualmente ninguém no campo do lulismo esboça uma crítica aberta e de boa-fé. No máximo, quando muito, um ou outro considera que seria positivo se o supremo guia se pronunciasse, quem sabe?, mas ninguém parte para o debate franco, destemido, verdadeiro, em público. É como se, aos olhos da nova religião dos idólatras, a opinião pública fosse território inimigo. É como se, fora das hostes do partido, ninguém mais tivesse direito à verdade.

O cajazeirismo vai se impondo como a doença senil do lulismo. Figuras públicas até outro dia respeitáveis por seu espírito livre e por sua inteligência ferina vão se rendendo ao silêncio que faz corar os mais ferrenhos adversários. Seria cômico se não fosse melancólico.

O Odorico da ficção errava na ética e na gramática (era dado a expressões como “talqualmente” e “emborasmente”, além de “apenasmente”, evidentemente), mas tudo na maior empáfia, com empolação e galanteios. Demagogo e autoritário (pois servia de sátira contra o regime militar), fazia da pose o critério da verdade e da moral. Quando precisava acobertar suas trapalhadas, tinha até um assessor de nome Dirceu, o Dirceuzinho Borboleta, borboleteante demais para se prestar a qualquer semelhança com personagens dos tempos presentes. Odorico, em dupla com Dirceu Borboleta, encarnava a esculhambação em feitio de realismo fantástico. Bendita esculhambação. Desclassificado e vaidoso, demagogo e ignaro, fez muito bem aos telespectadores dos anos 1970: ajudou-os a rir dos opressores.

Agora, a cena é distinta. Não há mais ditadura militar no país. Hoje, a assombração de Odorico retorna para zombar não mais de um tirano, mas de um formidável expoente do período democrático, seqüestrado pelo culto à personalidade. O Lula real é muito, mas muito superior à adulação alienante que o sufoca. De líder metalúrgico a presidente da República, deixou uma obra que, em grande parte, orgulha todos os brasileiros. Teria tudo para enfrentar com grandeza as denúncias que dele se aproximam, sobretudo as mais recentes. Em vez disso, prefere se refugiar no mito de si próprio, um mito que, convenhamos, além de precocemente instalado, é oco.

Lula, abduzido pelo cajazeirismo, dá sinais de fraqueza. Quanto às irmãs Cajazeiras, que fizeram o Brasil se dobrar de rir, talvez ainda façam o PT chorar.