domingo, 23 de dezembro de 2012

Estado, domingo 23/12/2012

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Leões sob o trono, sobre o STF

23 de dezembro de 2012 | 2h 07

Roberto Romano* - O Estado de S.Paulo
Recente entrevista do ministro Luiz Fux ilumina algo pouco analisado: se o Supremo Tribunal Federal (STF) é a instância maior da Justiça, como são escolhidos, de fato, os seus integrantes? Cito as palavras de Fux: "Busquei apoio demais. Viajei para o Nordeste, achava que tinha que ter o maior apoio político possível. O que é um erro, porque o presidente não gostava desse tipo de abordagem. Quando nomeia, ele quer que seja um ato dele". O Palácio do Planalto tem primazia na escolha do candidato. Para chegar ao presidente existem os favores. "Alguém me disse: 'Olha, o Delfim é uma pessoa ouvida pelo governo'. Aí eu colei no pé dele'." E surge o socorro da esquerda. "Ele (Stédile) me apoia pelo seguinte: houve um grave confronto no Pontal do Paranapanema e eu fiz uma mesa de conciliação no STJ entre o proprietário e os sem-terra. Depois pedi a ele para mandar um fax me recomendando e tal. Ele mandou." O líder e a Corte (conservadora ou progressista) decidem longe dos "cidadãos comuns" ("leigos"...), que pagam impostos e quase nada recebem do Estado. Soberania popular é fábula no Brasil.

O ministro exibe a distorção republicana: a hegemonia presidencial absoluta, algo que o(a) chefe do Estado deve ressarcir de mil modos. Os pagamentos reiteram a ditadura do Executivo, garantida por favores orçamentários, cargos, benesses. Perto de tal sistema, o conteúdo da Ação Penal 470 é nonada. O balcão das trocas e o "é dando que se recebe" definem a vida política. No caso do STF, o "exame" do Senado produz náusea. É preciso mudar, para bem da autoridade pública, o modo como são indicados os ministros do Supremo.

Nos EUA, modelo de nossa prática, tensões e interesses econômicos, políticos, religiosos, partidários entram na liça pelas cadeiras do tribunal. Ali a escolha dos juízes tem origem em compromissos. Já o Plano Randolph, apresentado à Convenção da Filadélfia, adianta que o Legislativo nacional indicaria os membros da Corte. Mas os convencionais optam pela indicação do Executivo. Benjamin Franklin sugere o corpo dos advogados, que escolheria os mais hábeis dentre eles. Proposta vencida. Os choques vêm de antagonismos geográficos. Madison defende a indicação pelo Senado e depois recusa o modelo com receio de que a escolha favoreça "os Estados do norte".

Embora os convencionais afirmassem desejar para a Corte pessoas íntegras e peritas, ficou patente no debate a importância dos interesses que presidiram a forma de escolha. Mas todo o Legislativo assume responsabilidade na ordem dos tribunais, segundo o Judiciary Act de 1789.

Cabe ao Congresso definir o tamanho da Corte Suprema. Várias propostas foram apresentados aos legisladores para que a nomeação dos magistrados da Corte resultasse do voto popular. Foram 13 projetos em tal sentido entre 1889 e 1926. Em 11 deles os juízes deveriam ser escolhidos pelos eleitores e o presidente, eleito pelos seus pares. A proposta visava a fazer do Supremo uma instância mais responsável em face da vontade do povo. Das sugestões para mudar a escolha, a mais recente é de 1956. Nela os indicados deveriam ter pelo menos cinco anos de experiência judiciária em tribunais superiores do Estado ou federais.

Nos EUA, a escolha dos postulantes ao Supremo leva, não raro, à recusa de indicados. O Senado não impõe nomes. O presidente opta segundo alvos científicos, políticos, econômicos, ideológico. Interesses díspares exercem pressão sobre o comitê senatorial para o Judiciário (Senate Judiciary Committee) para que tal ou tal indicado seja escolhido.

Como analisar os juízes na Corte Suprema? O ideal do governo onde a lei é soberana define a democracia. Trata-se de um paradigma. John Schmidhauser (The Supreme Court: Its Politics, Personalities and Procedures) usa um truísmo: as leis são feitas e interpretadas por seres humanos. A exegese legal traz a estampa dos que a fazem. A Corte norte-americana reuniu, na maior parte, estadistas, e não fantoches dos interesses civis e dos governos. Além do saber jurídico, a nação deles recebe o impacto de sua pessoa, o maior ou menor grau de autoridade e decoro. Eles, pelo menos desde 1937, defendem minorias contra o arbítrio da maioria. Advertência de Schmidhauser: "É preciso analisar a moderna tendência judiciária e sua ênfase nos direitos não econômicos" assumida pelo Supremo estadunidense.

E no Brasil? A história não é tão edificante. Na era Vargas, o onipotente perseguiu oposicionistas (Luís Carlos Prestes, João Mangabeira, Julio de Mesquita e outros), afastando a Justiça comum. Ele expõe à Câmara dos Deputados o projeto de um tribunal de exceção, vetado pela Carta Magna ("Não haverá foro privilegiado nem Tribunais de exceção"). A frase seguinte do texto ("Admitem-se, porém, Juízos especiais em razão da natureza das causas") favorece o poder. O golpe é bem-sucedido e em 24/08/1936 surge o Tribunal de Segurança Nacional. Por unanimidade a Corte Suprema o declara "em perfeito acordo com a Constituição da República". Entre os atos do tribunal, um arruína o Direito: com o empate no julgamento de João Mangabeira, o presidente, desembargador Barros Barreto, vota... contra o réu (para outros aspectos do pretório, Reynaldo Pompeu de Campos, Repressão Judicial no Estado Novo, 1982). Disse o padre Laberthonnière: "Não julgo a vítima, mas apenas os juízes"...

É tempo de mudar a forma de indicação para o STF e impedir o absolutismo do Executivo. Se o desprezo pelos "leigos" afasta o voto dos eleitores, que ao menos a comunidade jurídica indique os magistrados em escolha ampla e transparente. Tenham eles prática em tribunais superiores e não devam o cargo ao Executivo ou ao subserviente Legislativo nacional, nem aos oligarcas dos partidos. Sejam poupados aos juízes os peditórios e outros recursos cortesãos. Que se negue a tese de Francis Bacon sobre eles, o seu triste papel de "leões sob o trono".   

* Filósofo, professor de ética e filosofia na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), é autor, entre outros livros, de 'O Caldeirão de Medeia' (Perspectiva)

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E um texto "antigo"sobre o mesmo tema. RR
 
 
Correio Popular de Campinas, 06/12/2005, na coluna de Roberto Romano
Publicada em 6/12/2005


EVANDRO LINS E SILVA


Roberto Romano


O texto abaixo é a homenagem que me foi solicitada pela Associação Juízes para a Democracia e lida no seu Congresso de Recife (2/12/2005). Eu o escrevi com tristeza, diante do ataque de um juiz ocasional aos não juristas, insultados por ele como “idiotas”. Falta suprema do essencial decorum. Triste país que possui juízes semelhantes.

Um conselheiro disse a Napoleão que o seu Código Civil não autorizaria certo ato, ideado em benefício próprio do ditador. “O Código Napoleão foi feito para a salvação do povo, e se tal salvação exige outras medidas, é preciso tomá-las”. E no Brasil ? Um escrito gerou monstros: “A Revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constitucional. Este se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais expressiva e radical do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como o Poder Constituinte, se legitima a si mesma (…) Ela edita normas jurídicas, sem que nisto esteja limitada pela normatividade anterior à sua vitória (…) Fica, assim, bem claro que a revolução não procura legitimar-se através do Congresso. Este é que recebe deste Ato Institucional, resultante do exercício do Poder Constituinte, inerente a todas as revoluções, a sua legitimação”. (AI-1).

Para os ditadores a lei pode ser negada, desde que o golpe ajude o seu partido. Às vezes os governantes nem precisam forjar falácias. O artigo 48 da Constituição de Weimar garantiu a sorte de Hitler : “Caso a segurança e a ordem públicas sejam seriamente (erheblich) perturbadas ou feridas no Reich alemão, o presidente do Reich deve tomar as medidas necessárias para restabelecer a segurança e a ordem públicas, com ajuda se necessário das Forças Armadas. Para este fim ele deve total ou parcialmente suspender os direitos fundamentais (Grundrechte) definidos nos artigos 114, 115, 117, 118, 123, 124, and 153."

No Brasil, com os resquícios das prerrogativas imperiais, o Executivo federal fere a plena autonomia da Justiça, ao mesmo passo em que adquire votos no Parlamento com trinta dinheiros, a traição do mandato popular em troca de recursos orçamentários e outras benesses. Na balança dos poderes, o peso maior pertence à presidência da República. Os chamados a preservar a Carta Magna agem como simples políticos na Realpolitik que suportou a Carta de 1937, os Atos Institucionais, a Carta de 1967, as agressões à Carta de 88.

Nossos presidentes, se pudessem, repetiriam a fala de James I em 1616 : o governante “tem poder de vida e morte; julga acima de todos os súditos em todos os casos e só deve prestar contas a Deus”. Francis Bacon dizia que os juízes devem ser leões sob o trono do rei Salomão. A violência do Executivo foi exasperada depois do Termidor. E vivemos, no Brasil, em perene Termidor.

Evandro Lins e Silva foi juiz e nunca se acomodou sob o trono, não se calou diante da majestade divina reivindicada pelos poderosos, nunca titubeou ao defender o fraco. Os homens concederam-lhe títulos e galardões. Os mais brilhantes encontram-se em seus próprios atos. Ele não se acovardou diante das tiranias que desgraçaram o século XX. Ao contrário dos “democratas” que odeiam a imprensa, ele defendeu jornalistas de 1934 até os momentos finais de existência. Seu nome, ao lado de Sobral Pinto, penetrou a alma brasileira ao defender perseguidos políticos desde 1932. Ele nunca teve receio de estender a proteção da lei, na sua bela figura de advogado, aos que assumiram atitudes contrárias ao poder.

Evandro Lins e Silva foi um homem reto. No Supremo, participou dos julgamentos de mais de uma centena de casos de presos políticos, Mauro Borges, Plínio Coelho, Seixas Dória, Miguel Arraes, Vieira Neto, Sérgio Rezende, Caio Prado Júnior, Niomar Muniz Sodré, Enio Silveira. Quantos juizes, na sua condição, fizeram o mesmo? Os ditadores deram-lhe o mais alto prêmio ao arrancá-lo do STF. Desse modo, eles confessaram que ele era um homem livre. Poucos receberam esta homenagem, que o aproxima de Sócrates.

Evandro Lins e Silva foi Juiz. O poder brasileiro sempre procurou domesticar juízes, no Império e ditaduras. Enquanto existirem no Executivo as pretensões de manter, contra os juízes independentes, a Constituição sob tutela, não teremos Estado de direito. Todos se recordam da anedota alemã sobre os juízes, na réplica do moleiro de Potsdam a Frederico II: “Existem juizes em Berlim”. O rei não conseguiu se opor ao direito do moleiro, mesmo que o moinho em litígio fosse barulhento e incomodasse o soberano. Em nossa pátria, os tribunais próximos dos cidadãos permitem que os brasileiros afirmem: “existem juízes no Brasil”. Esperemos que essa realidade se expanda para o alto, de modo que possamos dizer, com o mesmo júbilo: “Existem juízes em Brasilia”.

Evandro Lins e Silva foi juiz, ao contrário dos arrogantes que usam a toga para seus fins pessoais e pisam o direito dos contribuintes. A Associação Juízes para a Democracia, seguidora do grande exemplo oferecido por ele, merece receber em seu nome as homenagens do povo brasileiro.


Roberto Romano é professor de Ética e Filosofia Política da Unicamp