domingo, 16 de setembro de 2012

Repetindo...

Escola Superior do Ministério Público

Vinte Anos da lei de improbidade administrativa

Dr. Roberto Romano da Silva/Unicamp.

Sinto decepcionar as senhoras e senhores se esperam uma síntese dos eventos brasileiros que sucederam a lei em pauta. Direi algumas coisas pouco agradáveis. No final, trarei à lume a origem das palavras por mim empregadas. Penso que os senhores sabem sobre o tema bem mais do que eu. Nesta comemoração, pessoas mais gabaritadas falaram e falarão sobre os objetos a serem refletidos.

Uma lei. Uma lei muito boa. Mas, o que significa mesmo uma lei ? John Stuart Mill reconhecia que o bom governo depende das boas leis.  Mas acrescentava que as boas leis precisam de bons homens para serem aplicadas. “Para que servem”, pergunta ele, “as boas regras de procedimento, se as condições morais do povo são tais que as testemunhas mentem com muita frequência e os juízes se deixam corromper?”.  O que é a lei ?  Um texto onde a lingua se paralisa.  A lingua, tanto a dos gestos quanto a oral, segundo Platão, é impotente (ἀσθενές) para expressar e colher conceitos e realidade. Por tal motivo,  na Carta Sétima (343a) ele afirma : "quem reflete (e é provido de razão) nunca terá a ousadia de depositar na escrita os seus pensamentos (...) deles fazendo algo imutável, escrito."

Contra o fetichismo da escrita no saber e na lei, Platão enuncia : “quando observamos obras escritas, em forma de leis por algum legislador que considera tais coisas sérias, assim dispostas em escritos (…) saibam que os mortais arruinaram totalmente a sua razão". (Carta 7, 344c). Dessa descrença no texto da lei, surgem no diálogo Político o elogio da pessoa animada, racional, que exerce o governo. "A arte de legislar, evidentemente", diz o Estrangeiro ao jovem Sócrates, "pertence à arte real" (δῆλον ὅτι τῆς βασιλικῆς ἐστιν ἡ νομοθετική). O melhor está que a força não pertença às leis, mas ao  homem prudente (ἄνδρα τὸν μετὰ φρονήσεως βασιλικόν)". Frente ao espanto do jovem Sócrates, arremata Platão: "Nunca uma lei seria capaz de perceber  com acribia o que, para todos ao mesmo tempo é o melhor e o mais justo e prescrever para todos o que mais vale. Entre os homens, com efeito, como entre os atos, existem dissemelhanças, sem contar que nunca, por assim dizer, nenhuma das coisas humanas permanece em repouso, íntegra, o que não permite à arte, a nenhuma arte, formular nenhum princípio cuja simplicidade valha em toda matéria, em todos os pontos sem exceção e durante o tempo".

A lei, termina Platão, “parece um homem presunçoso e ignaro, que não deixa ninguém fazer algo fora do que ele regulou, e também não deixa que ninguém o questione, mesmo que uma idéia nova, exterior aos arranjos normativos por ele impostos, deva ter para o caso individual um resultado melhor”. (294a-c). Não entrarei na vexata questio milenar e no dilema: governam a lei ou os homens? Sou bem alerta para os usos modernos e anacrônicos da opção pelo indivíduo soberano, do absolutismo assumido por Tiago Primeiro na Inglaterra do século 17 até Carl Schmitt e a proposta de que o "Füher decide o direito". ([1])

Se os brasileiros seguem a lei de improbidade, eis um problema que não ser resolvido ontem e hoje. Se eles são melhores ou piores do que os representantes (e são representantes,  pois eles mesmos os escolhem) é uma pergunta ainda mais difícil. Sempre ouvimos que os piores são escolhidos e a culpa de semelhante óbice encontra-se na desigualdade econômica, no poderio de alguns partidos, nos ordenamentos jurídicos, na propaganda, etc. Todas essas vias explicativas têm virtudes. Mas recordo o dito de Erich Auerbach sobre a verdade. A cena do mundo, diz ele, possui muitos quadros simultâneos. Os sectários de um ou outro quadro jogam luz sobre eles, deixando os demais na sombra. Assim, cada quadro expõe a sua verdade, que não pode ser negada. E os assistentes se deixam convencer, pois o iluminado é verdadeiro. Mas da verdade, continua Auerbach, faz parte toda a verdade. Seria preciso jogar luz sobre as outras cenas. Mas a tarefa demanda tempo, o que nem a imprensa, nem as instituições aceitam gastar na investigação. Donde as fórmulas rápidas, o abreviamento do pensar e do agir. Para as mesmas colunas de opinião em que acadêmicos e pessoas públicas escreviam, há 30 anos atrás, se publicadas hoje, nos jornais e revistas, seriam precisos várias páginas. Houve um encolhimento do espaço gráfico da imprensa e, me perdoem dizer, um encolhimento argumentativo e de pensamento.

Nem sempre a fórmula breve significa percepção mais aguda do que se debate. Outro dia uma jornalista, gentil e nada arrogante como todos sabemos, me pediu que fosse objetivo e redigisse em quinhentos caraceteres uma apreciação dos problemas éticos brasileiros. Recusei a missão, para mim impossível. Com certeza alguém conseguiu escrever sobre aquele assunto, naquele número de caracteres. Um pensador da chamada Escola de Frankfurt perguntou um dia : “se os acontecimentos do mundo são quase infinitos, porque o jornal sempre tem quase sempre o mesmo número de páginas ?”. Com isso, ele sugeria que alguém lia os eventos os resumindo para o leitor, ou seja, selecionando a realidade para ele, deixando na sombra o que “não tem interesse jornalístico”. Assim também fazem os propagandistas totalitários. Hoje, o número de páginas encolhe, aumentam os espaços de publicidade. Sem falar na pletora de slogans e lugares comuns, próprios a convencer pela repetição. Recordo as famosas “lições de casa” exigidas pelas agências que medem os riscos de investimentos, contra países em nome dos larápios vestidos como executivos de Wall Street e agentes de governos. Agora uma brasileira: “o deficit da previdência”. Quando o assunto vem à baila, o jargão corre solto, sem contestações. Ficou famosa a entrevista de uma professora de economia em importante canal de televisão. A jornalista partiu, não de uma pergunta, mas da certeza sobre referido deficit. Ao receber resposta negativa, uma explicação técnica que atenua o valor da tese, ficou desarvorada. Afinal, tratava-se de um enunciado “evidente”. Boa parte do que dizem os  “analistas financeiros” entra nessa linha: formulam dogmas em prol de interesses financeiros, políticos, etc. E aí dos hereges que se insurgem contra tais dogmas. E isso tem muito a ver com a lei de improbidade administrativa.

É difícil responder se o povo é melhor ou pior do que os representantes. Se é melhor ou pior do que a imprensa que supostamente o informa, é tarefa árdua. Quando falamos de leis como a de improbidade precisamos saber o que fazem e querem os vários segmentos da vida pública que jamais são desinteressados no que vai entre a letra do diploma legal e a sua aplicação efetiva.

Voltemos ao trato entre eleitos e eleitores, estratégico quando se fala em probidade ou improbidade. O regime democrático é medido pelos votos. Mais voto, mais poder. Esta é a primeira parte. Depois, temos o lugar ocupado pelo partido nas alianças, que garantem verbas e verbo nos parlamentos. Ora, a maioria esmagadora dos partidos caça  votos e os aumentam, sem nenhuma preocupação com o problema ético ou moral. Eles silenciam o problema, ou indicam um ideal ético, porque não têm aquele valor. Eles prometem empregos, verbas, obras nas cidades, tudo o que pode ser arrancado dos cofres públicos para a prestação de “favores”aos administrados. E isso deve ser levado em conta, na apreciação da improbidade. No Brasil, diz a professora Maria Sylvia Carvalho Franco em Homens Livres na Ordem Escravocrata, o favor é a mediação universal. Ele integra o mais íntimo da ética na sociedade e no Estado. Estancar a corrente do favor é algo que exige bem mais do que uma lei, por melhor que ela seja.  Os políticos jogam perenemente com o medo do pior, o fim dos favores ou uma hecatombe econômica se “os outros”vencerem, ou com a ausência de verbas, obras, empregos. Basta ver a propaganda nestas eleições: se os munícipes votarem contra os indicados por Brasilia, programas importantes não virão. Caso votem no candidato do príncipe (ou da princesa), benesses fluirão em abundância.  Improbidade? Ou eles conhecem os eleitores, não os idealizados, mas os reais. Os princípios éticos não rendem favores, não rendem votos, não rendem obras, não rendem poder. É num terreno assim que a lei de improbidade deve ser aplicada.

Quando surge uma quebra violenta da ordem legal, o costume é gritar : “escândalo, escândalo”.  Mas a corrupção que gera escândalo possui dois registros temporais, um diacrônico e outro, sincrônico. Num sistema necessáriamente corrupto, dada a concentração de recursos nas mão do poder federal, no executivo, sem os favores nada feito para alcaides e governadores. Assim,  os policiais, o ministério público, a justiça, a imprensa, tomam conhecimento dos fatos uns após outros. Mas no mesmo átimo em que um escândalo é denunciado, a rede corrupta opera no Estado e na sociedade na sua integritude. A polícia, a justiça, o ministério público quase sempre operam post festum. Mas o sistema, sincronicamente pratica as mesmas coisas supostamente punidas ao serem descobertas. É nesse terreno que deve ser aplicada a lei de improbidade administrativa. A nossa prática é a de iluminar um quadro de cada vez, mas os demais ficam na sombra….até que sejam iluminados. Enxugamos gelo com toalha quente.

Os escândalos não constituem monopólio dos políticos. Eles não raro têm raízes no mercado, na sociedade civil, instituições sociais. Pensemos apenas nos esportes oficializados: boa parte deles é gerida segundo técnicas de causar inveja aos apadrinhados de Don Corleone. Mesmo igrejas conhecem o uso privado de seus recursos e não me refiro apenas às seitas eletrônicas. A católica Conferencia dos Religiosos do Brasil, nos anos 70 do século passado quase foi a falência por golpes aplicados aos seus cofres pelos administradores. Os casos são múltiplos. Talvez seja mais grave que um operador do Estado seja pego em corrupção, do que um cartola. Mas as pessoas se habituam ao fenômeno nos dois setores. E isso tem muito a ver com a lei da improbidade.

Tais reflexões são amargas.  Alguém as poderia dizer injustas. Ainda não somos um país de cínicos ou de conformistas. Existem energias éticas das quais não tomamos ainda consciência entre nós. Mas no campo político elas não mostram sinais. Lembremos a lição dos pensadores políticos segundo a qual um Estado (é mais verdadeiro para o democrático) pode ser assassinado por forças externas violentas, mas também morre por consunção interna. A lição maior vem dos textos platônicos : o Estado, um organismo vivo, pode se desagregar se nele os membros não respeitam a justiça e a moral. No Estado assim doente, o improbo, sobretudo se no comando, é uma peste (νόσος πόλεως). O Estado adoece quando mal gerido ou entregue à discórdia. Ele sofre uma inflamação que aumenta sempre, enfraquecendo mais e mais (República, 556e). O bom governante  cuida da saúde do Estado e da sociedade.

Mas como agem os nossos governantes? Certamente não são médicos do corpo político, mas adoecidos como os administrados. No Brasil podemos dizer que não é possível contar com os governos usando apenas meios legais e honestos. Quem não quer ser vítima das máfias, precisa aceitar regras não escritas, mafiosas. Tal situação é alheia ao sistema representativo parlamentar ? Quem busca o favor do voto, retribui com favores ao próprio eleitor, direta ou indiretamente. O sistema representativo tem advogados como James Madison. Este último sustentava que a delegação aos eleitos, número pequeno, dera vida a “um corpo seleto de cidadãos cuja provada sabedoria tinha podido melhor discernir o interesse efetivo do próprio país, e cujo patriotismo e sede de justiça teria tornado menos provável o sacrifício do bem do país em favor de considerações particularíssima e transitórias”. Como fugir das “considerações particularissimas”, os interesses dos eleitores ricos ou pobres na representação? Os senhores conhecem o remédio : impedir mandatos imperativos. Sabemos que tal veto começa na Constituição francêsa de 1791: “os representantes nomeados nos departamentos não serão representantes de um departamento particular, mas da nação inteira, e eles não terão nenhum mandato”. Afastados os males da representação corporativa, o eleito se livraria de prestar favores a um ou outro setor social. A nossa Camara dos Deputados  respira pelo duto que ocorre entre deputados com  regiões e com os seus interesses “particularíssimos”. Boa parte dos representantes passam  nas regiões grande tempo ou instalam “escritórios informais” onde alocam assessores para ouvir os pedidos particulares ou particularíssimos dos eleitores. E é em tal solo que deve ser aplicada a lei de improbidade administrativa.

Maquiavel,  nos Discorsi, afirma que “todos os escritores da vida civil [vivere civile] indicaram que ao constituir e legislar para uma república é preciso supor que todos os homens são péssimos (…) e que os homens só fazem o bem quando a necessidade os dirige para ele. Fala-se também que a fome e a pobreza torna os homens industriosos e as leis os torna bons”.  Ele considera a vida civil baseada no governo das leis o mais elevado bem. A correta política se baseia na igualdade diante da lei (aequum ius) e acesso igual aos cargos com fundamento na virtude (aequa libertas).  O governante deve respeitar a lei, o melhor meio para assegurar o poder.

 Marcello Gigante, em Nomos Basileus  apresenta um tratamento clássico do tema. “Hoje”, diz ele,  o interesse econômico elevou a nomos novíssimo uma história inglória, com a violência do mais forte sobre os mais fracos. Sobram apenas as teorias ‘intimistas’  do desfalecimento da consciência moral, e cuja ação inclui os procedimentos tortuosos e de bajulação”. Gigante escreve após a IIa Guerra Mundial, com o fascismo vencido, bem como o nazismo. A pergunta sobre o político, o republicano, o justo, permanece, bem como a questão dos saber se obedecemos leis ou somos servos de outros homens. Aqui, poderemos recordar as invectivas de Etienne de la Boétie, no Discurso da Servidão Voluntária. Somos cidadãos dignos deste nome, ou apenas objeto do poder?

Como entender a simbiose pouco virtuosa entre eleitos e eleitores? Usemos a metáfora. Como o mercado econômico, o político foge ao controle que se queira impor a ele do alto. Nele impera o do ut des entre vendedores e compradores. O eleitor dá ao partido ou à pessoa o bem político capacidade de conseguir efeitos desejados. Ele espera que o poder conferido venha em sua vantagem.  Mas, à diferença do mercado econômico, o eleitor não conhece de antemão o efeito de sua escolha porque o maior ou menor poder do partido ou candidato a quem deu seu voto depende do maior ou menor número de votos  recebidos de outros eleitores e sobre os quais ele, eleitor, não exerce influência. No sistema majoritário, onde um ganha e outro perde, quem vota pelo perdedor perdeu seu voto, suas esperanças dificilmente serão realizadas. Mesmo num sistema proporcional, onde todo voto é contado, o maior ou menor efeito de meu voto como base de consenso depende dos demais votantes, ou seja, da circunstância das quais nenhum eleitor pode ter um conhecimento pleno.

Mesmo quando seu candidato e partido saem vitoriosos, o eleitor não pode estar certo do retorno, o pagamento ao seu voto. E se você vota no prefeito e o partido dele, em âmbito estadual ou federal, é oposição ? Uma roubada fatal ocorrida pelos Brasis afora. Como sabemos, verbas e verbo cabem à base aliada e, mesmo nela, aos partidos que garantem a “governabilidade”, ou, o do ut des cuja tradução é “dando que se recebe”. Entregue, a mercadoria voto tem valor diminuído, como os produtos eletrôncos que, ao sair da loja, perdem no preço diante dos que ficam na prateleira. Assim, o voto na espera do retorno, em vez da metáfora mercadológica, exige para ser entendido a metáfora do jogo, ou melhor, da loteria. A melhor prova que se trata de loteria é a curiosidade que cerca as apurações das urnas, que hoje exige algumas horas. Antes, o afã levava dias ou meses.

Talvez tenha exagerado no símile mercado/ eleição. Talvez aquele vínculo seja plenamente verdadeiro apenas para o voto de clientela. No cálculo de probabilidades clientelístico as coisas são menos obscuras: voto se meu filho ganhar a concessão de tal ou qual serviço, voto se uma pensão for dada para fulano, voto se o eleito trouxer creches para minha cidade, voto se….pouco importa a dimensão do cliente, se é um indivíduo, se um grupo econômico, se uma cidade ou região.

Existe o voto de opinião, não vendido ou comprado : os setores sociais e indivíduos  ligados aos programas e ideologias dos partidos que no voto sublinha os valores (liberais, socialistas, religiosos) do que os interesses materiais ou culturais. Quem vota contra o aborto e contra o casamento gay, procura um alvo não imediatamente  preso ao mercado. Mas mesmo tais eleitores, com a repetição do gesto eleitoral, ficam mais e mais próximos dos eleitos, surgindo os seus interesses particulares como superiores aos ideais anteriormente defendidos. Afinal, ninguém vive apenas do idealismo e um cargo, uma assessoria, uma ajuda para a própria ONG, tudo atenua o voto de opinião anterior em prol de uma troca, de um do ut des. O voto de opinião, a partir desse ponto, se refugia nos que…não votam, os que protestam, anulam o voto.

Tocqueville se insurge contra o mercado eleitoral em 1848 e lamenta a degeneração dos costumes pela qual opiniões e sentimentos são trocados por alvos particulares  (particularissimos, como diz Madison). Ele invectiva a moral baixa e vulgar segundo a qual o eleitor leva em conta a si mesmo, os filhos, a mulher, os pais.

E  temos o problema lógico e real:  o poder dos governantes depende do número de votos e que estes dependem da maior ou menor capacidade dos políticos para satisfazer as exigências dos eleitores. Há uma dependência recíproca entre os lados da cadeia : para conseguir recursos, o eleito deve manter a fidelidade dos eleitores, deve controlá-los. E quem deveria controlar, o eleitor, passa a ser controlado (voltemos aos “escritórios informais” que os representantes mantêm no curral, desculpem, nas bases eleitorais. A coisa é tão “comum” que já entrou para a semântica política “Quantos votos controla tal deputado, tal vereador, tal líder político?”. Tocqueville acredita numa elevação da moralidade pública. Stuart Mill, pragmático, acredita em especialistas do direito que preparem as leis, para depois elas serem oficializadas pelos representantes e aplicadas pelo governo. Mill divide os cidadãos em passivos e ativos. Os governos autoritários se baseiam no apoio dos primeiros, os democráticos, nos segundos. Face à corrupção os primeiros dizem : “ tenhamos paciência”,  os segundos gritam  “que vergonha!”.

As eleições mostram que os eleitores, na maioria, são quase insensíveis à “questão moral”. Os partidos que defendem a “ética na política”  perdem eleições e começam a praticar o “que todos os demais fazem”, e são premiados por tal afastamento do programa ético. Mas se assim pensam e agem é porque conhecem o eleitor. Ora, mesmo Maquiavel, que não era moralista, diz que ninguém convence o povo a eleger “um homem infame e de costumes corrompidos” numa república, ao contrário do que ocorre na monarquia.Maquiavel era republicano. Mas até defensores da monarquia temperada, como Montesquieu, dizem que o povo escolhe “de modo admirável aos que devem confiar parte de sua autoridade”. Admirável…Tenho um colega que, ao falar de pessoas cujo discurso é sem sentido, comenta : “o que ele diz não é verdeiro, nem falso, nem belo nem feio. É admirável”…

A república foi louvada em contraponto à monarquia, porque a última, segundo os historiadores, representa um dos regimes mais corrompidos. O nobre, para ser alguém, procura patronos na corte. Este servem ao rei. Este último, para não ser morto e ser legitimado, compra apoio do clero e da nobreza, vende cargos para os burgueses. Tudo é comprado, tudo vendido. Como diz Hegel na Fenomenologia do Espírito, na monarquia a honra perde vez para a riqueza, cuja circulação passa pelo rei. Na república, o centro distribuidor se amplia em detrimento do alvo pessoal dos que se ocupam da riqueza coletiva. Na república, escreve o socialista Napoleone Colajanni, dos primeiros a lutar contra a Máfia num livrinho denominado A Corrupção Política, temos o governo que acabaria com os escândalos da monarquia. Nela “a grande vitalidade e força moral, latente,no povo, não encontram obstáculos insuperáveis, eliminam os males com processos naturais e pacíficos, renovam o Estado”. O mesmo Napoleone, no entanto, critica os conselheiros municipais que, “para se eleger em tempo certo, não deixam sem tentar nenhum meio, não excluídos os desonestos, e correm, voam, pregam e colocam em movimento todas as relações diretas e indiretas, possíveis e imagináveis (…) alí onde existe uma igreja ou teatro,  culto religioso ou espetáculo público; onde existe a festa de um santo ou carnaval, aqui um subsídio, uma pensão, uma gratificação, um cargo útil, criado expresamente para favorecer uma pessoa; alí a estrada de interesse privado, uma obra qualquer, uma instituição para agradar um grupo de conselheiros ou eleitores. Assim são feitas e desfeitas nos conselhos municipais as maiorias e as minorias, dirigidas por fins particulares; o critério único que deveria ser soberano, o do bem geral e indistinto, se perde”. (in Giuseppe Gagemi, Arbitrio ammistrativo e corruzione politica. La linea municipalista italiana di ispirazione anglosassone (Gangemi Editore, p. 145 e ss). Isto foi escrito em 1888. Se colocássemos os nomes de Campinas, Limeira, Hortolândia, Vinhedo, para ficar apenas em São Paulo, e depois da lei de improbidade administrativa, estaríamos em 1888? Não, estaríamos no século XXI.

No elo entre eleito corrupto e eleitor idem existe um horror e um fascínio, reprovação e aprovação. Um analista francês publicou na revista Poderes artigo onde afirma que “um episódio de corrupção, mesmo com provas, aumenta a venda do Canard Enchaîné, pode assegurar o sucesso de um livro, mas não faz a república tremer”. S. Belligni, em artigo denominado “Corruzione e scienza politica, una riflessione agli inizi (Revista Teoria Politica, 1987, n. 1. Pp. 61-88) abre o ponto para a pergunta: por que a corrupção ? Algumas pistas:

1) a corrupção política se deve em grande parte ao financiamento dos partidos. Em outras situações, perfeitamente tipificadas na lei que discutimos hoje, vinte anos após sua promulgação,  temos em alguns agentes investidos de poder público ou político, o direito de exercer o poder de decidir em nome e por conta da coletividade nacional.

Modo geral, temos dois jeitos de ver a corrupção. O primeiro, quando o sujeito político age para adquirir ou conservar o poder. O segundo, uma vez o poder conquistado, ele o tem nas mãos, bem firme, usando-o para adquirir vantagens privadas. Os dois jeitos são  conectados no mercado democrático: o poder se conquista com votos, um dos modos de conseguir votos e não ter despesas é servir-se do poder para ganhar vantagens mesmo pecuniárias. O poder custa muito, mas rende. Se custa, deve render. Jogo arriscado, às vezes ele custa mais do que rende se o candidato perde as eleições. Mesmo assim, ele rende mais do que custa. No primeiro jeito, o político age como corruptor, no segundo, como corrupto. No primeiro momento ele aparece como comprador de votos e no segundo como vendedor de vantagens (dos recursos públicos que, graças aos votos, ele é o dispensador). Para operar de modo corrupto, o político precisa do segredo. Eis um ponto essencial.

Começo a terminar.

O que é a lei? Oportuna advertência platônica: ela pode ser vista como inflexível pessoa autoritária que não permite a ninguém fazer algo que ela não mandou. (Político, 294 b, c). Mas sem ela o corpo político se desfaz, sendo ela, inclusive, digna de respeito filial (Críton, 50 d). A lei, no entanto, não é obedecida naturalmente pelos homens. É preciso, diz Platão, que eles sejam educados para seguir  normas. É preciso tingir os indivíduos, desde a mais tenra infância, com  a boa tintura das leis, para que elas estejam dentro deles, não em livros ou monumentos que podem ser elididos ou burlados. (República,  429 d, 430 a).  Naquele terreno deve ser cultivada a semente da lei. Não estamos na escola platônica, pois a corrupção dos costumes e do Estado chegaram a um ponto tal que surgem, de vez em quando e cada vez mais frequentemente, apelos ao líder que não depende de leis para impor a justiça. Tal apelo não se encontra apenas nos eleitores comuns, mas ressurge em doutrinas autoritárias, acarinhadas inclusive por antigos militantes progressistas, que pregam o poder de decisão do presidente, em prejuízo das intermináveis discussões e da corrupção endêmica dos Parlamentos. Esses são os caminhos rápidos para a suposta salus populi, sempre acarinhados pelas almas de extração totalitária.

A democracia é um processo. Nele, não existem garantias de vitórias sem amarguras. Cada costume melhorado incentiva a luta em prol do bem público. A lei de improbidade administrativa foi reforçada, após sua promulgação, por outros ordenamentos dentre os quais a chamada lei da ficha limpa, a lei de acesso à informação, etc. Quando tais leis começarem a dar seus frutos poderemos dizer se cumpriram o seu papel, ou se permaneceram enrigecidas. Como processo, a democracia edita leis que surgem para trazer saúde ao corpo político. Após a lei de improbidade, ainda precisamos de uma lei que normatize os lobbies no Brasil. Por sua falta, deputados e senadores, para não falar de outros operadores do Estado, agem como lobistas. Suspeito que a obstrução aos vários projetos que normatizam o lobby vem do fato de serem os representantes em primeiro plano lobbistas, depois representantes do povo. Quando se ouve falar em bancada ruralista, bancada dos defensores da universidade particular, etc. o que temos são lobistas que atuam em prol de interesses particularissimos. Outra providência é a extinção da prerrogativa de foro, lei em favor dos improbos. Leis dessa ordem reforçam umas as outras, criam um sistema legal que pode contrabalançar o sistema corrupto. Apenas quando as leis puderem prever, de modo sincrônico, os atos cometidos contra o erário e a fé publica poderemos respirar dos escândalos que surgem diacrônicamente, causando apenas maior corrosão no elo entre sociedade e Estado.

“A Lei de Improbidade administrativa é uma lei revolucionária, porque modifica para melhor a nossa cultura. Afinal, é preciso rimar erário com sacrário, o que é o propósito dessa lei (…) estamos combatendo com muito mais eficácia os desvios de conduta e o enriquecimento ilícito às custas do poder público, a partir da priorização da pauta de julgamentos de ações de combate a esse tipo de assalto ao erário”. São benvindas as palavras do presidente do STF, ministro Ayres Britto. Mas que não fiquemos na poesia, a revolução da lei deve ser reforçada por outras leis e outros procedimentos. Sem populismo que enxergue nos cidadãos apenas vítimas inocentes, sem transformar políticos em demônios, sempre cobrando o fim do segredo e o advento da transparência.

 Acabando: a maior parte das provocações feitas aqui, por mim, não são de minha lavra. As extraí, quase literalmente, de Norberto Bobbio na magnífica e amaríssima coletânea intitulada L ‘Utopia Capovolta (Torino, La Stampa, 1990). Achei de bom alvitre retomar sua palavra porque, ao descrever os costumes corrompidos da Itália, era como se ele dissesse para nós, brasileiros : “Qui rides? Mutato nomine, de te fabula narratur”. (Horácio, Sátiras, livro I, 69-70).







[1] Cf. Meuter, Günter: Carl Schmitts ‘Nomos basileus’ oder: Der Wille des Führers ist Gesetz. Über den Versuch, die konkrete Ordnung als Erlösung vom Übel des Positivismus zu denken, (Institut für Staatswissenschaften  Fakultät für Sozialwissenschaften Universität der Bundeswehr München: Neubiberg, 2000), em  http://www.rz.unibw-muenchen.de/~s11bsowi/pdf/IfSWerkstatt5.pdf, S. 8, 35. E também Scheuerman, William E. : Carl Schmitt, the end of law (Rowman & Littlefield, London/New York, 1999). Um trabalho excelente é o de Fernando Bianchini, tese de mestrado em Filosofia na Unicamp, sobre Schmitt e a crise do sistema parlamentar.