segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Eugenia à brasileira, Jornal da Unicamp

Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 20 de agosto de 2012 a 26 de agosto de 2012 – ANO 2012 – Nº 536

Tese da área da educação revela práticas de
inspiração nazista no país antes da 2ª Guerra

Historiador recupera história de 50 meninos que foram
transferidos de educandário no Rio para fazenda em SP

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Políticas eugenistas de inspiração nazista foram perpetradas no Brasil no período anterior à Segunda Guerra Mundial. A afirmação é do historiador Sidney Aguilar Filho, que defendeu recentemente tese de doutorado na Faculdade de Educação (FE) da Unicamp com o tema “Educação, Autoritarismo e Eugenia: Exploração do trabalho e violência à infância desamparada no Brasil (1930-45)”. No trabalho, orientado pela professora Ediógenes Aragão Santos, o autor recupera a história de 50 meninos órfãos ou abandonados – a maioria negra e com idades variando de nove a 11 anos –, que foram transferidos de um educandário do Rio de Janeiro para uma fazenda no interior de São Paulo, onde foram submetidos, sob os auspícios da legislação da época, a trabalhos forçados, castigos físicos e humilhações. O estudo está dando origem a um documentário, tem proposta para ser transformado em livro e foi indicado pela FE para representar a unidade no Prêmio Capes de Teses.
O tema do estudo, conta Aguilar, caiu repentinamente no seu colo. Ele dava uma aula sobre a Segunda Guerra para uma turma do ensino médio, quando uma de suas alunas afirmou que a suástica, o símbolo utilizado pelo nazismo, estava inscrito em tijolos de casarios demolidos na fazenda do pai dela, situada na cidade de Campina do Monte Alegre (SP). “Aquela informação ficou adormecida por anos. Cheguei a repassá-la para alguns centros de pesquisa, mas ninguém se interessou. Quando finalmente comecei a investigar o assunto, percebi que as dimensões eram infinitamente maiores do que eu imaginava. O que mais me chamou a atenção nem foi tanto a simbologia nazista encontrada na propriedade, mas a coincidência dela com evidências da forte presença integralista no mesmo local”, relata.
Esta justaposição, diz Aguilar, já justificaria um estudo mais aprofundado. Ocorre, porém, que ele deparou com um fato, nas palavras dele, ainda mais chocante. “Descobri que aquela e outras fazendas da região haviam sido utilizadas para abrigar 50 meninos órfãos ou abandonados, que foram retirados, a partir de 1933, do Educandário Romão de Mattos Duarte, mantido pela Irmandade de Misericórdia do Rio de Janeiro. No local, eles eram submetidos a trabalhos forçados, a castigos físicos, a humilhações e a toda sorte de violação de direitos. Todas essas propriedades pertenciam à família Rocha Miranda, uma das mais ricas do Brasil na época, que era dona de bancos, empresas de transportes e hotéis de luxo”, afirma. 
Filantropia
Um aspecto que chamou a atenção do autor da tese foi o fato de a transferência das crianças ter sido feita com a concordância da Igreja, o patrocínio da elite empresarial e a anuência da Justiça, tudo sob a justificativa de que a medida teria caráter educativo e filantrópico. Ao consultar documentos da época do Educandário Romão de Mattos Duarte, da Irmandade de Misericórdia, do Ministério da Agricultura e do Arquivo Público do Estado de São Paulo, o pesquisador constatou que a remoção dos meninos – 48 negros e pardos e somente dois brancos – foi autorizada pelo titular do Juizado de Menores do Rio de Janeiro, José Cândido de Albuquerque Mello Mattos, que concebeu o primeiro Código do Menor do país. 
Segundo o autor da tese, os membros da família Rocha Miranda participavam da cúpula da Ação Integralista Brasileira (AIB), grupo de ultradireita com inspirações fascistas, cujo nome de maior destaque foi Plínio Salgado. “Um dos membros dessa família, Renato Rocha Miranda, presidia uma grande empresa de carvão de Santa Catarina. Através de fontes documentais, eu consegui recuperar dados sobre negócios que ele manteve, tanto antes quanto depois da Segunda Guerra, com a família Krupp, dona de uma poderosa siderúrgica alemã produtora de armas e equipamentos bélicos. Nunca é demais lembrar que um dos membros do clã alemão foi Alfried Krupp, ministro da Economia de Guerra de Adolf Hitler, condenado pelo Tribunal de Nuremberg pelo uso de trabalho escravo de judeu”, assinala Aguilar.

Após o conflito mundial, continua o historiador, Alfried Krupp comprou uma das fazendas de Renato Rocha Miranda, para onde enviou o seu único herdeiro, Arndt von Bohlen und Halbach. As duas famílias tinham interesse em implantar uma siderúrgica no Brasil. “Ou seja, no meio dessas relações empresariais internacionais envolvendo adeptos do integralismo e do nazismo, havia um grupo de 50 crianças submetidas a toda sorte de violência. O caminho que adotei para tratar todo esse episódio foi estudar a história da educação desses meninos. O que eu acabei encontrando, depois de analisar inúmeros documentos, foi uma legislação abertamente eugenista nessa área”, sustenta o pesquisador.
Ao se debruçar sobre documentos produzidos pela Assembleia Constituinte promulgada em 1934, por exemplo, o autor da tese diz ter identificado uma bancada formada por mais de 20 constituintes que defendia práticas eugenistas e afins em propostas voltadas às políticas educacionais, migratórias e sanitárias, entre outras. “Na época, não havia o conceito do politicamente correto, tão presente nos dias atuais. Muitos legisladores não usavam meias-palavras para fazer manifestações homofóbicas, machistas e segregacionistas. Tanto é assim que o artigo 138 daquela Constituição estabelece ser função do Estado nacional incentivar a educação eugênica. Isso coincide com o momento em que os meninos eram retirados do Rio e transferidos para a fazenda em Campina do Monte Alegre”, reforça.
Aguilar revela que teve muita dificuldade em trabalhar com um tema tão espinhoso e doloroso. “Confesso que fiquei exaurido por incontáveis vezes ao ler os textos e as manifestações dos ultradireitistas, dos racistas. Trabalhei com a dúvida até o fim da pesquisa. Vivia me questionando se tudo aquilo realmente acontecera. Mas, o fato é que todas as evidências funcionaram como fios que se entrelaçavam num tecido inquestionável. De fato, as práticas autoritárias e eugenistas foram transformadas em políticas de Estado no Brasil”, assevera. 


Balas amargas
Além de basear a sua investigação em farta documentação, Aguilar também entrevistou muitas pessoas que tiveram envolvimento direto ou indireto com o episódio dos meninos, inclusive três sobreviventes, que hoje estão com idades beirando os 90 anos. O depoimento mais marcante foi de Aloísio Silva, que integrou a primeira turma a ser transferida do Rio para o interior de São Paulo – as crianças vieram em três levas. Ainda morador de Campina do Monte Alegre, onde constituiu família, ele inicialmente se recusou a falar sobre a experiência. “Primeiro, pensei que fosse medo. Depois, entendi que a recusa tinha a ver com trauma. Falar sobre o que sofreu naquela época seria muito dolorido para ele”, explica o historiador.
Estrategicamente, Aguilar resolveu se aproximar dos filhos dos sobreviventes, como forma de mostrar a seriedade da pesquisa. “Essa decisão de mostrou acertada. Aos poucos, e através deles, fui me aproximando dos personagens principais da história. Um aspecto que percebi foi que, assim que eu apresentava aos sobreviventes os documentos que havia colhido, eles iam se mostrando mais receptivos. O primeiro a falar foi o senhor Aloísio. Ou seja, a memória documental incentivou a memória oral. Assim que ele começou a contar tudo o que viu e viveu, outras pessoas, inclusive moradores da cidade, também concordaram em contribuir com depoimentos”. 
Segundo o autor da tese, as narrativas feitas pelo senhor Aloísio confirmaram que os meninos foram submetidos a trabalhos exaustivos, sem qualquer remuneração. Aqueles que não cumpriam as tarefas ou desobedeciam às ordens dos “cuidadores”, que o sobrevivente classificou como “feitores”, eram espancados e, não raro, impedidos de comer. “Um relato do senhor Aloísio que me marcou bastante foi sobre a forma como as 50 crianças foram escolhidas para serem retiradas do educandário carioca. Segundo ele, um homem, posicionado numa espécie de passadiço, jogava balas coloridas ao chão. Os meninos que pegavam primeiro as guloseimas eram selecionados, por serem considerados mais ágeis e espertos, e apartados dos demais”. 
Até onde o historiador conseguiu apurar, poucos daqueles órfãos e desvalidos ainda estão vivos. Alguns morreram ainda no cárcere, outros conseguiram fugir e os demais foram “libertados” anos depois, já na fase adulta. Desses, pouco se sabe. Ao falar sobre o que espera em termos de repercussão da sua tese, Aguilar afirma desejar que ela provoque incômodo a todos aqueles que tiveram acesso ao texto. “A tese também é um convite aos atuais educadores, para que reflitam sobre a sobrevivência ou não desses princípios autoritários e racistas no pensamento e na prática cotidianos. Em termos de discurso, me parece que isso foi, em boa medida, corrigido. No que toca à prática, porém, não tenho tanta certeza”.
Ainda conforme Aguilar, o seu trabalho de doutorado também está servindo de base para uma ação judicial reparadora que o senhor Aloísio está movendo contra o Estado brasileiro. “Vamos esperar o resultado do julgamento. Uma consequência positiva, porém, a pesquisa já proporcionou a ele. Atualmente, o senhor Aloísio circula por Campina do Monte Alegre com a cabeça muito mais erguida”, garante o historiador, acrescentando que o apoio que recebeu por parte da sua orientadora, da FE, da Capes e da Unicamp foi fundamental para que conseguisse concluir seu estudo.


Publicações
Tese: “Educação, autoritarismo e eugenia: exploração do trabalho e violência à infância desamparada no Brasil (1930-1945)”
Fonte: Sidney Aguilar Filho
Orientadora: Ediógenes Aragão Santos
Unidade: Faculdade de Educação (FE)