sábado, 21 de abril de 2012

Estado. Caderno Sabático.

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Paris, a arte da ocupação

A omissão dos artistas diante da presença nazista na capital francesa é tema do jornalista Alan Riding; já o diário de Ruth Andreas-Friedrich conta como os intelectuais alemães resistiram a Adolf Hitler

20 de abril de 2012 | 21h 14

Antonio Gonçalves Filho - O Estado de S.Paulo
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Riding acredita que 'os franceses foram vítimas da paixão pela teoria'  - Reprodução
Reprodução
 
Riding acredita que 'os franceses foram vítimas da paixão pela teoria' 
 
A vida cultural durante a Ocupação nazista em Paris não parou. Pelo contrário. Nada menos que 220 filmes foram produzidos nos quatro anos (1940-1944) de ostensiva presença alemã na capital francesa. É certo que só alguns são memoráveis, como lembra o autor de Paris, a Festa Continuou, o jornalista Alan Riding, mas chama a atenção que a indústria cinematográfica francesa, a primeira atingida pelo antissemitismo do regime de Vichy, tenha produzido com tal intensidade em plena guerra. Filho de ingleses nascido no Rio de Janeiro há 68 anos, Riding vive hoje em Paris e concedeu uma entrevista, por telefone, ao Sabático, em que explica como os artistas e intelectuais franceses reagiram - ou melhor, não reagiram - diante dos acontecimentos políticos decorrentes da entrada do Exército alemão em Paris, no dia 14 de junho de 1940. Simultaneamente, é lançado outro livro que trata da vida cotidiana na capital alemã quando a guerra acabou, Diário de Berlim Ocupada - 1945/1948, de Ruth Andreas-Friedrich, mostrando como a população germânica reagiu aos estrangeiros, especialmente aos soldados soviéticos, que entravam nas casas pilhando objetos e estuprando as mulheres.

O livro de Alan Riding faz pela história da cultura o que o clássico do cientista político norte-americano Robert O. Paxton, Vichy France: Old Guard and New Order (1940- 1944) fez pela história política, colocando por terra o mito da resistência francesa - Paxton, aliás, foi conselheiro e até revisor de Paris, a Festa Continuou. Não foram só os oportunistas da ultradireita francesa que se aproveitaram do antissemitismo do regime de Vichy, segundo o livro de Riding. Surpreende, segundo o autor, que muitos “heróis da Resistência” - Sartre incluído - tenham sido publicados durante a Ocupação sem que a censura alemã se ocupasse de suas obras. 

O filósofo não apoiou Pétain nem colaborou com os invasores, como o líder da Action Française, Charles Maurras, mas é difícil entender, segundo Riding, como o comitê de propaganda alemão ou o governo de Vichy se mostraram tolerantes com as peças de Sartre escritas durante a Ocupação. E não são peças de tema fácil: As Moscas (Les Mouches) faz uma releitura da tragédia clássica que narra a entrada de Orestes em Argos, sua cidade natal invadida pelas moscas; Entre Quatro Paredes (Huis Clos) trata de três almas condenadas ao inferno à espera de torturas - textos mais tarde vendidos como parábolas do período então vivido.

Se os produtores, diretores e roteiristas de cinema francês se aproveitaram do êxodo dos profissionais judeus para os EUA, produzindo filmes segundo a receita do Reich (comédias leves ou dramas sem conteúdo ideológico), os escritores agiram de forma semelhante. Poucos correram riscos - de detenção e deportação. Veteranos como André Gide ou Paul Valéry estavam velhos demais para combater e preferiram ficar à sombra. Outros aproximaram-se de oficiais alemães intelectuais, como Ernst Jünger, autor de Nos Penhascos de Mármore. Ou do governo de Vichy, em busca de um bom cargo. Riding cita Bernard Fay, monarquista católico, tradutor de Gertrude Stein, que, ao assumir a direção da Bibliothèque Nationale, justamente por suas boas relações com Vichy, disse que o fazia pela confiança que o marechal Pétain e os alemães depositavam nele. Jean-Paul Sartre chegou a ser preso por publicações clandestinas, mas depois viveu muito bem no Hôtel La Louisiane, além de frequentar as “fiestas” em que a bebida rolava como água da torneira. Segundo o livro, no Dia D, durante o desembarque aliado, Sartre, Simone de Beauvoir, Albert Camus, Michel Leiris e Raymond Queneau se divertiam à beça numa dessas “fiestas”.

A premissa de Riding é a de que artistas e intelectuais deveriam ter maior responsabilidade em tempos difíceis. Sartre, que mais tarde defenderia causas como a independência da Argélia e o movimento estudantil de 1968, atraiu para si créditos de “resistente cultural” durante a Ocupação num exercício cínico de autoglorificação, segundo Riding. Em contrapartida, o poeta e cineasta Jean Cocteau, o homem de teatro Sacha Guitry e o popular cantor Maurice Chevalier não tiveram a mesma sorte quando os comités d’épuration foram autorizados a investigar e interrogar artistas e escritores colaboracionistas após Paris ser libertada pelos aliados. 

“Sartre teve um comportamento muito oportunista”, diz Riding, concluindo que tanto Cocteau como Guitry podem ter sido injustiçados por continuar a produzir e manter vínculos com os invasores - Chevalier cantou na Alemanha, Cocteau elogiou publicamente o escultor Arno Breker, o favorito de Hitler, em 1942, e Guitry, apesar de ter usado sua influência para libertar o dramaturgo judeu Tristan Bernard, em 1943, foi acusado de manter amizade com oficiais alemães.

“O certo é que esse mito da resistência criado por De Gaulle - o discurso do ‘nós resistimos e libertamos Paris’ - não se mantém, porque os alemães já tinham ido embora antes.” Para muitos franceses, observa Riding, a Ocupação continua a ser um tabu. Ele foi alertado por amigos que iria encontrar resistência das testemunhas vivas e que suas perguntas seriam recebidas com desconfiança e até paranoia. “Entrevistei um historiador francês com mais de 90 anos e ele me disse que a divisão intelectual na França daquela época era tão forte que você tinha apenas duas opções diante de Vichy: ser fascista ou comunista.” Os franceses, naturalmente inclinados ao intelectualismo, teriam respondido à invasão não com atitudes, mas teorias. “Está certo, os comunistas não podiam fazer muito diante de Pétain, porém o fato é que os franceses sentem uma atração irresistível pela teoria, pelos ‘ismos’”, ironiza Riding, lembrando sua condição de descendente de ingleses, naturais “inimigos” dos franceses e mais pragmáticos.

Apesar da obsessão teórica, as instituições culturais francesas continuaram a funcionar. No entanto, a Ocupação significou para a França o começo do fim de seu domínio cultural. Riding cita o êxito do expressionismo abstrato nos EUA (Jackson Pollock e companhia), que representou um baque para o mercado de arte francês. A França ficou vazia. Os colaboracionistas Vlaminck e Derain aproveitaram, mas os surrealistas fugiram para Nova York. Ainda assim, diz Riding, o país manteve seu domínio no comércio de artigos de luxo - moda, principalmente, mesmo que figuras como Chanel tenham saído arranhadas pelo contato (íntimo, no caso) com oficiais alemães. Picasso, que poderia ter levantado a voz, ficou calado até mesmo quando seu amigo judeu Max Jacob foi preso. “Dizem que ele até recebia carvão dos alemães para aquecer seu apartamento”, lembra Riding. O fato é que até o mercado de arte, estagnado nos anos 1930, prosperou na Paris ocupada, segundo ele. Graças às obras roubadas dos judeus. Picasso comprou uma delas, expropriada do banqueiro Pierre Wertheimer, sócio de Chanel. Na volta do exílio em Nova York, sua mulher Germaine estrilou e pediu o quadro de volta. Não esperava um comportamento desses de quem deveria ser um guia moral.

ENCONTROS

Na segunda-feira, às 19h30, Alan Riding participa de um debate sobre seu livro com o professor e acadêmico (da ABL) Celso Lafer na Livraria da Vila (Al. Lorena, 1.731, Jardins, tel. 3062-1063). Na quinta, dia 26, às 19h30, ele debate com Fernando Gabeira na Livraria da Travessa (Av. Afrânio de Melo Franco, 290, Leblon, tel. 21/3138-9600). Início do conteúdo

Berlim entre os escombros

O testemunho de como foi amanhecer sem o Führer, mas com soldados soviéticos na cidade

20 de abril de 2012 | 21h 25

Antonio Gonçalves Filho - O Estado de S.Paulo
 
As atrocidades do pós-guerra foram testemunhadas pela jornalista alemã Ruth Andreas-Friedrich (1901-1977) que, no comovente Diário de Berlim Ocupada 1945-1948 descreve o cenário infernal da capital alemã destruída e tomada por soldados estrangeiros após o suicídio de Hitler. Durante a guerra, a jornalista fazia parte do grupo de resistência Onkel Emil, de Berlim, tendo ajudado muitos judeus a conseguir documentos falsos para fugir da Alemanha sob domínio nazista. Quando a guerra acabou, em 1945, ela e mais outros amigos integrantes do Onkel Emil saíram do porão onde se escondiam para ver na superfície um horror comparável ao que combatiam: no lugar dos nazistas, encontraram soldados soviéticos pilhando sem pudor objetos das casas dos alemães e estuprando adolescentes, depois obrigadas pelo pai a se matar para “salvar a honra” da família.

Sem água, sem luz, sem rádio e em ruínas, Berlim amanheceu num domingo, 20 de abril de 1945, com aviões de mergulho atacando, granadas explodindo e soldados russos avançando sobre os escombros e cadáveres em estado de decomposição. A jornalista começa sua narrativa nesse dia, relembrando como um maestro, um editor, um médico, uma atriz, uma secretária e uma editora - a própria- trabalharam clandestinamente contra o Reich, ao contrário do que aconteceu na Paris ocupada, de intelectuais omissos, descritos no livro de Alan Riding.

Na Berlim ocupada pelos soldados russos, os que foram afiliados ao Partido Nacional-Socialista de Hitler eram convocados para retirar entulhos, desenterrar corpos e limpar galerias de esgotos. Os “imaculados”, que se mantiveram a distância dos nazistas, eram recompensados com cartões de racionamento: escritores, músicos e atores, no entanto, tinham de conseguir um atestado de “boa conduta”, preencher formulários e asseverar inocência. “É difícil pleitear tratamento humano quando a miséria, a ganância e o caos tornam secundários todos os escrúpulos”, escreve a jornalista em setembro de 1946.

Ruth Andreas-Friedrich conclui seu diário em 1948, quando trocou Berlim por Munique e continuou a exercer sua atividade jornalística. Escreveu apenas dois livros: o primeiro, Diário de Berlim Clandestina (1938-1945), conta de que modo se formaram os grupos de resistência como o Onkel Emil e a militância daqueles alemães que poderiam ter emigrado, mas preferiram ficar e ajudar pessoas perseguidas pelo regime nazista. Um belo contraponto ao comportamento omisso de alguns reconhecidos intelectuais franceses citados por Alan Riding em seu precioso Paris, a Festa Continuou.