sábado, 25 de fevereiro de 2012

O Globo

Entre transparência e privacidade: doença impõe dilema a presidentes

Problemas de saúde de chefes de Estado testam os limites sobre danos à democracia

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O presidente da Venezuela, Hugo Chávez, que tratou câncer com secretismo
Foto: AFP
O presidente da Venezuela, Hugo Chávez, que tratou câncer com secretismo AFP
RIO - Em junho do ano passado, quando fez uma cirurgia para a retirada de um tumor, o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, tratava a doença em segredo. Em Caracas e mesmo fora do país, circulavam diversos rumores sobre seu estado de saúde, inclusive o de que ele não teria condições de retornar ao Palácio Miraflores. A única notícia confirmada pelas autoridades locais era a de que Chávez teria feito uma cirurgia de urgência para drenar um abscesso pélvico. Ele, que frequentemente reclamava de dores no joelho, justificou o silêncio, em parte, quando afirmou que era descuidado com sua saúde. A confirmação da doença só foi transmitida pela rede de TV nacional semanas depois da cirurgia em Havana.

Nove meses depois, o venezuelano volta a se submeter a uma cirurgia para tratar uma lesão no mesmo local de onde retirou o tumor. Em vez do profundo silêncio que cercava a primeira operação, desta vez o líder de 57 anos deu alguns detalhes sobre o problema de saúde. Depois de o blogueiro Nelson Bocaranda antecipar que o estado do presidente teria piorado, o próprio Chávez afirmou que o novo tumor tem grande possibilidade de ser maligno. Ele também pediu à Assembleia para se ausentar durante cinco dias a partir de hoje, com o objetivo de realizar a “necessária e inadiável” operação em Havana.

A falta de transparência do governo venezuelano em relação à doença do líder é, no mínimo, um contraponto ao que aconteceu recentemente em outros países da própria América Latina, cujos presidentes também fizeram (ou fazem) tratamento contra o câncer. Desde o início, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva; a atual presidente, Dilma Rousseff; o paraguaio Fernando Lugo e a presidente da Argentina, Cristina Kirchner — que teve um tumor maligno na tireoide desmentido , em um dos episódios mais embaraçosos pelos quais já passou a Casa Rosada — não esconderam da população a gravidade da doença.

Segundo especialistas ouvidos pelo ‘Globo a Mais’, a atitude mais sensata esperada dos governantes é informar a sociedade sobre o problema que enfrentam — e isso só tem acontecido com mais frequência nos tempos atuais devido a avanços democráticos.

O cientista político e consultor de empresas Paulo Kramer explica que, até a segunda metade do século XX, falar de doença era sinal de fraqueza do homem público. Divulgar o mal sinalizava, sobretudo para os opositores, que o político talvez não concretizasse seus projetos.

— Essa postura de ocultar doenças começou a ser deixada de lado quando os americanos passaram a ser servidos todo dia, na hora do jantar, com as imagens da Guerra do Vietnã. Foi a difusão da TV. Hoje em dia, as pessoas estão mais expostas devido aos avanços dos meios de comunicação e ao estímulo das redes sociais. Os políticos não escapam disso — salienta Kramer.

O cientista político cita como exemplo negativo o presidente americano Franklin Delano Roosevelt (1882-1945), que contraiu poliomielite aos 39 anos, mas se esforçava ao máximo para esconder a dificuldade de se movimentar. Ele frequentemente aparecia apoiado em guarda-costas para permanecer de pé e chegou a andar de cadeira de rodas, embora haja pouquíssimos registros fotográficos dessa segunda situação. Ocultar a fragilidade era uma estratégia ainda mais importante para Roosevelt porque ele governou durante um período de turbulências, enfrentando a Grande Depressão e a Segunda Guerra Mundial.

O francês François Mitterand (1916-1996) foi outro exemplo de chefe de Estado que ocultou sua doença. Ele teve câncer de próstata pela maior parte de seu governo, mas conseguiu escondê-lo do público. Presidente francês que por mais tempo permaneceu no cargo, ele morreu poucos meses após deixar o posto, em 1995. Pouco tempo depois, o médico de Mitterand publicou o livro “O Grande Segredo”, no qual diz que o líder fora diagnosticado com câncer poucos meses depois de se eleger, em 1981. O autor alega que Mitterand falsificava os boletins médicos, o que é contestado por ex-colegas e familiares.

O professor de Relações Internacionais e coordenador do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo, Oliver Stuenkel, pondera que, se por um lado é preciso respeitar a privacidade, por outro, a importância do cargo-chave obriga os líderes a informar à sociedade sobre uma eventual doença grave. Se o governante não tem condições de exercer o mandato, o eleitor precisa saber, diz, e ocultar um fato grave como esse seria antidemocrático.

— Em países ditatoriais, quase nunca se fala sobre o estado de saúde do governante. São exemplos a Coreia do Norte, a antiga União Soviética e a Venezuela — afirma Stuenkel.

No entanto, se conhecer o estado de saúde do governante é o que se espera de uma democracia, é necessário bastante cuidado com a exploração política da doença, aponta o professor de Ética e Filosofia da Unicamp Roberto Romano. Para ele, o recomendável é agir com discrição. Um exemplo positivo, segundo Romano, foi a presidente Dilma Rousseff, que “se cuidou sem se expor aos holofotes”.

— Governantes com perfil populista, como Lula, Cristina e Chávez, são acostumados a exibir um personagem para as multidões. Então, exibem também as suas doenças. Essa postura é reprovável. É necessário que as pessoas acreditem que as políticas públicas não mudarão de repente, em caso de morte dos governantes. Explorar a doença pode trazer instabilidade para os investimentos econômicos e para a diplomacia — frisa.

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