terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

IHU Unisinos, entrevista.

Tradicionalismo e conservadorismo católicos: as ideologias em jogo. Entrevista especial com Rodrigo Coppe Caldeira

Retorno da missa em latim segundo o missal tridentino, revalorização da adoração ao Santíssimo, defesa de que a Comunhão deve ser recebida na boca e de joelhos. Sinais de tradicionalismo, conservadorismo, reacionarismo ou antimodernismo?
Para o historiador Rodrigo Coppe Caldeira, explicando as origens do tradicionalismo ("uma heresia relacionada com a questão da possibilidade do conhecimento de Deus") e suas diferenças com os demais conceitos, ambos os movimentos "se realizam em contraposição a outra concepção, a revolução, o progressismo".
No Brasil, o tradicionalismo católico teve seus principais nomes em Plínio Corrêa de Oliveira, fundador da Associação para a Defesa da Tradição, Família e Propriedade (a TFP), Orlando Fedeli, que constitui a Associação Cultural Montfort, e Clá Dias, fundador dos Arautos do Evangelho.
No entanto, "os estudos históricos sobre o catolicismo nestes anos foram marcados por certa militância política, o que deixou de fora, propositalmente, outras personagens importantes para se compreender o panorama católico no Brasil", aponta. Nesta entrevista, concedida por e-mail à IHU On-Line, Caldeira busca exatamente "compreender de forma mais acurada as ideologias que estão em jogo e, além disso, como o progressismo católico se aproxima de seu opositor em algumas falas e posições".
Rodrigo Coppe Caldeira é graduado em História pela PUC-Minas com mestrado e doutorado em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Neste ano, iniciou a graduação em Direito na PUC-Minas, onde é professor adjunto de Cultura Religiosa e Fenomenologia da Religião. É autor de Os baluartes da tradição: O conservadorismo católico brasileiro no Concílio Vaticano II (Ed. CRV, 2011). No segundo semestre deste ano, está previsto para ser publicado o seu novo livro, coorganizado por Gizele Zanotto, intitulado As facetas do tradicionalismo católico no Brasil.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O que podemos entender por tradicionalismo católico? Quais são suas principais características ao longo da história no contexto brasileiro?
Rodrigo Coppe Caldeira – Um primeiro ponto de que devemos estar cientes é que a palavra tradicionalismo, no contexto católico, significou outra coisa do que se entende contemporaneamente. Na verdade, na sua concepção primeira, no século XIX, tradicionalismo é uma heresia e está relacionado com a questão da possibilidade do conhecimento de Deus.
"O tradicionalismo, de matizes diversos, afirma a incapacidade da razão de conhecer verdadeiramente as realidades espirituais"

Esse tradicionalismo, assim, é um movimento filosófico-teológico de reação ao movimento racionalista que se impunha no período e que considera a fé ou a tradição como definitiva fonte de certeza, e de nenhum modo a razão humana. Por isso também sua aproximação com o chamado fideísmo. O tradicionalismo, de matizes diversos, afirma a incapacidade da razão de conhecer verdadeiramente as realidades espirituais.
A palavra aparece num documento pontifício que trata das "teses subscritadas por Louis-Eugène Bautain por ordem do seu bispo, 18 nov. 1835 e 8 set. 1840" (Denzinger, 2751-2756). Também aparece em um documento, um decreto da S. Congregação do índex de junho de 1855 contra as teses de Augustin Bonnetty, que sustentava um "tradicionalismo moderado". O Concílio Vaticano I o condenou, como também o fideísmo.
Atualmente, entende-se tradicionalismo como um tipo-ideal para caracterizar alguns grupos no orbe católico e que, especialmente, distanciam-se das determinações do Concílio Vaticano II, interpretado como ruptura com a tradição da Igreja Católica. Opõem-se ao Missal de Paulo VI (1969), negam a concepção conciliar sobre a questão da liberdade religiosa, tendo como principal apoio as encíclicas e documentos pontifícios do século XIX e início do XX, como o Syllabus Errorum Modernorum e as encíclicas Mirari vos arbitramun e Quanta Cura e defendem com fervor o primado do papa.
Se entendermos tradicionalismo como reação ao Vaticano II, podemos falar sobre ele apenas no momento posterior, obviamente, ao evento. Dessa forma, temos como um de seus principais baluartes a figura do bispo de Campos, D. Antônio de Castro Mayer, que, junto de Marcel Lefebvre, foi excomungado em 1988 por ter radicalizado o discurso contra as determinações do concílio e, especialmente, por ter sagrado quatro bispos sem a autorização de Roma.
Porém, um tradicionalismo católico que se manteve na comunhão com Roma também se desenvolveu no Brasil, tendo como seus principais nomes Plínio Corrêa de Oliveira, fundador da Associação para a Defesa da Tradição, Família e Propriedade (a TFP), Orlando Fedeli, egresso da TFP e que constitui a Associação Cultural Montfort, e Clá Dias, também egresso da TFP e fundador dos Arautos do Evangelho. De fato, estes três grupos, adversários entre si, devido aos desentendimentos de seus fundadores, mesmo afirmando-se como em estrita obediência a Roma, deixam transparecer críticas contínuas ao Vaticano II em alguns de seus aspectos. Uns mais, como a Montfort, outros menos, como os Arautos. É importante dizer que estes grupos, mesmo se assemelhando em alguns pontos, divergem em tantos outros. Por isso a dificuldade de classificação.
Não podemos esquecer também, por exemplo, a Administração Apostólica São João Maria Vianney, que com D. Fernando Áreas Rifan, bispo e administrador apostólico, publicou uma Orientação em 2005 com o objetivo expresso, diz ele, de "purificar o nosso "tradicionalismo’, corrigindo distorções, imprecisões e até desvios doutrinários, para que, assim purificados, possamos realmente prestar serviço à Hierarquia da Igreja, combatendo eficazmente, ao lado dela e sob sua autoridade, a "autodemolição’ da Igreja" (p. 4). Nota-se que Rifan se vale de conceitos utilizados especialmente pelos tradicionalistas, mas visa afastar-se do cisma de Castro Mayer e Lefebvre, colocando-se sobre a égide romana.
"No século XIX, tradicionalismo é uma heresia e está relacionado com a questão da possibilidade do conhecimento de Deus"
IHU On-Line – Que paralelos podem ser feitos entre o tradicionalismo e os usos de conceitos como conservadorismo, reacionarismo e antimodernismo?
Rodrigo Coppe Caldeira – Karl Mannhein afirmava, em seu importante texto O significado do conservantismo, que tradicionalismo é uma tendência humana, um "conservadorismo natural" de todos os homens, já que todos eles visam conservar, o mínimo que seja, seu mundo de significados. O sociólogo conceitua o "tradicionalismo" como uma "atitude psicológica geral que se expressa em diferentes indivíduos como uma tendência a agarrarem-se ao passado e como um medo de inovações". Já o conservantismo, ou conservadorismo, seria um movimento consciente e reflexivo desde o início, surgindo como oposição a um movimento progressista sistemático e coerente, dotado de organização.
Para Mannheim o conservadorismo é um "tradicionalismo tornado consciente". Nota-se que a questão da taxonomia é complexa. O antimodernismo, assim, pode ser claramente compreendido como um movimento conservador na medida em que visa combater o modernismo. Sabe-se que o "inventor" do conceito "modernismo", de acordo com o historiador francês Jacques le Goff, foi Pio X, quando escreveu sua encíclica Pascendi Domenici Gregis, contra os erros modernistas, em 1907. Dessa forma, o antimodernismo surge como reação ao modernismo – movimento teológico de vanguarda do final do século XIX – podendo ser considerado como um movimento conservador.
Já o termo reação aparece nas falas dos revolucionários franceses esporadicamente e é, segundo Jean Starobinski, "a resposta, a ação no sentido contrário, de um partido precedentemente "oprimido’, ou de uma causa atacada, quaisquer que estes sejam". Contudo, com o passar do tempo, a "contrarrevolução", o oposto da revolução, desdobrou-se em "reação". A emergência do sentido moderno de reação, como intenção defensiva, está ligada à ideia de progresso nas instituições.
Assim, o termo passa por inúmeros significados durante o processo revolucionário francês, chegando então a significar a restauração do Antigo Regime. Foi Benjamin Constant que deu o significado à palavra que vigora ainda hoje. Na brochura de 1797, intitulada Des Réactions politiques, afirma que na falta de princípios, de um governo firmemente engajado em seus princípios, os sujeitos "se veem entregues ao arbítrio, ou seja, à violência, que suscita inevitavelmente as reações". Chegamos, então, na compreensão atual: reação consiste em querer restaurar alguma situação que não existe mais, uma "resposta suscitada por um excesso nas novas disposições estabelecidas".
O filósofo Emil Cioran também deixou algumas palavras sobre o fenômeno em seu Joseph de Maistre. Ensaio sobre o pensamento reacionário, reeditado pela Rocco para a comemoração dos 100 anos do filósofo romeno em "Exercícios de admiração. Ensaios e perfis". Nele, Cioran afirma que a "idolatria dos inícios, do paraíso já realizado, esta obsessão pelas origens é a própria marca do pensamento "reacionário’ ou, se preferir, "tradicional’". Dessa forma, o reacionário é aquele que se liga a um tempo pretérito idealizado e que a ele deseja retornar. O que o também aproxima, de certa forma, do revolucionário, que em vez do passado idealizado, pensa num futuro de beleza e harmonia, e que ambiciona construir.
"Conservadorismo e reação se realizam em contraposição a outra concepção, a revolução, o progressismo"
O que deve ficar dessa breve explanação é que seja o conservadorismo, seja a reação, ambos se realizam em contraposição a outra concepção, a revolução, o progressismo. Porém, no contexto atual, as duas primeiras são eivadas de sentido pejorativo, enquanto as duas últimas, corriqueiramente, são vistas positivamente, inclusive porque ligadas a "mudança", "evolução" e "progresso", palavras-chave da sensibilidade moderna.
IHU On-Line – Quais são os principais focos da pesquisa sobre o tradicionalismo católico brasileiro? Como esse estudo nos ajuda a compreender o contexto sócio-histórico do nosso país?
Rodrigo Coppe Caldeira – No Simpósio Temático organizado por mim e pela a professora Gizele Zanotto para o XXVI Simpósio Nacional de História - ANPUH realizado na USP, observou-se o interesse crescente suscitado por este filão de pesquisa. Surgem algumas pesquisas sobre a atuação de bispos e leigos conservadores, de jornais católicos e, especialmente, um interesse pelo anticomunismo católico.
De fato, estudar o tradicionalismo católico no Brasil não é fácil. Nota-se nos últimos 30 anos uma historiografia do catolicismo no país marcada pela chave interpretativa que vem da "Igreja da libertação" e sua "opção preferencial pelos pobres". Dessa forma, os estudos históricos sobre o catolicismo nestes anos foram marcados por certa militância política, o que deixou de fora, propositalmente, outras personagens importantes para se compreender o panorama católico no Brasil. Falou-se exaustivamente da "Igreja da libertação", das CEBs e de outros grupos ligados à dita "esquerda", não raramente em tom laudatório, calcado na crença de suas potencialidades revolucionárias advindos de sua tomada de "consciência de classe".
Como este tipo de estudo dominou as universidades, e ainda domina, mesmo que em menor grau, sempre que se fala em "tradicionalismo católico" ou "conservadorismo", mesmo em âmbito acadêmico, rapidamente se levantam espantados aqueles que gostariam que seus opositores no campo da militância fossem levados ao esquecimento. Geralmente deslegitimados em suas posições religiosas e políticas por seus opositores, estes grupos, com seus principais representantes, falam muito profundamente sobre a realidade eclesial brasileira e seus dilemas, e também, curiosamente, de seus opositores.
De fato, entendo que, ao se estudar o tradicionalismo e o conservadorismo católico, é possível se passar a compreender de forma mais acurada as ideologias que estão em jogo e, além disso, como o progressismo católico se aproxima de seu opositor em algumas falas e posições.
Assim, pergunto-me: como, por exemplo, apenas concentrar nossos esforços em compreender o papel de D. Hélder Câmara no Concílio Vaticano II sem também atentarmos para D. Geraldo de Proença Sigaud e sua importante atuação na organização da minoria conciliar, como tentei demonstrar de alguma forma em meu livro Os baluartes da tradição: o conservadorismo católico brasileiro no Concílio Vaticano II?
"Ao se estudar o tradicionalismo e o conservadorismo católicos, é possível compreender as ideologias que estão em jogo"
IHU On-Line – Qual a importância do conservadorismo católico na configuração teológica e litúrgica na Igreja do Brasil?
Rodrigo Coppe Caldeira – Difícil de responder. Tomando-se do Vaticano II para cá, quase nenhuma, já que, como se sabe, os grupos que conseguiram galgar maiores espaços foram aqueles ligados ou próximos à "Igreja da libertação". Parece que, no final dos anos 1980, com a reconfiguração política global devido ao fim do socialismo real, houve uma nova movimentação dos teólogos em relação aos seus temas. O pobre continua central, mas outras questões aparecem ou se firmam, como a ecologia e a pluralidade religiosa. Penso que agora, nessa primeira década do século XXI, é possível notar uma outra movimentação, e aí quero chamar atenção para a liturgia.
Com a Summorum Pontificum dizem alguns que estamos observando o nascimento de um Novus Motus Liturgicus, que tentará colocar as duas formas de celebrar em diálogo. Missas no rito antigo espalham-se por todo o Brasil, causando estupor em alguns bispos de tendências mais liberalizantes, que veem nesse movimento o signo do "retorno ao pré-Vaticano II".
Dessa forma, no campo litúrgico, algo de novo acontece. Seria, inclusive, muito interessante um levantamento sobre essas missas no Brasil e quais os motivos por observarmos tantos jovens se interessando por elas.
IHU On-Line – Uma tese clássica publicada nos anos 1980 defendia que as Comunidades Eclesiais de Base – CEBs eram tributárias do conservadorismo católico (Trata-se da tese de doutorado de Roberto Romano, hoje professor na Unicamp). Qual é a sua posição em relação a este tema?
Rodrigo Coppe Caldeira – Acho bastante interessante a abordagem do Roberto Romano nesta importante obra. Toda reflexão que possa demonstrar a complexidade – especialmente a partir do dissenso – do que estamos tratando é sempre bem vinda, já que existe um barateamento da discussão ao percebermos que estes conceitos são corriqueiramente levantados em sua mais rasa compreensão, se não em total incompreensão. Bem, Romano, no momento que escrevia seu trabalho, vivia o período auge da Teologia da Libertação e, por conseguinte, das CEBs.
Se li corretamente a tese, a ideia defendida pelo professor é que este grupo do catolicismo, ao se utilizar amplamente de conceitos como "pobres e oprimidos", estavam falando a partir de um registro populista e mais: de uma tradição que remontava a De Maistre, De Bonald e Donoso Cortés, alguns dos principais nomes do conservadorismo do século XIX e que viravam suas baterias contra a liberdade burguesa.
Assim, para Romano, a polêmica antiburguesa daquele período oferece elementos de reforço do catolicismo do século XX e, afirma, "enquista, ainda hoje, no pensamento da vanguarda teológica da Igreja [...]", o que tenta demonstrar em um de seus capítulos. De fato, tanto a "Igreja da libertação" brasileira do século XX quanto a Igreja Ultramontana do século XIX utilizaram-se da palavra "povo" contra o mundo burguês, estando assim, ligadas, em tese, pelo registro do romantismo e, como fala Roberto Romano, "sempre buscando alimento na alma popular, escondida na noite dos tempos".
"Os estudos históricos sobre o catolicismo foram marcados por certa militância política, o que deixou de fora outras personagens"
Faço minhas as palavras da escritora portuguesa Agustina Bessa-Luís em um de seus ensaios: "Quando se pretende comover o campo das ações humanas ao nível mais simplista, utiliza-se a palavra povo".
IHU On-Line – Qual o impacto político e social do conservadorismo católico no atual contexto social e cultural brasileiro?
Rodrigo Coppe Caldeira – Acho que o impacto, se ele existe, é mínimo. De fato, sabe-se que a cultura brasileira, mesmo rica em diversidade e marcada por inúmeras raízes religiosas e por marcante trânsito religioso, passa por um aprofundamento do processo de secularização em algumas camadas sociais, o que leva a certo indiferentismo religioso. Certo é que, mesmo no âmbito político, não existem aqueles que se declaram expressamente como "conservadores", pois, como dito acima, na conjuntura política e cultural brasileira isso é "palavrão".
No geral, pensar no próximo e ser altruísta é ser de "esquerda". Esquerda relaciona-se com "povo" e suas demandas, direita com elite e seus "mesquinhos interesses". Uma equação maniqueísta corriqueira, mas nada plausível quando lemos os teóricos e nos atentamos para a realidade circundante. Palavras como conservadorismo e direita são relacionadas usualmente no país com os representantes mais retrógrados de certo coronelismo que insiste em permanecer ativo no cenário político.
Por outro lado, se tomamos a emergência de grupos organizados como os "evangélicos" e alguns setores católicos, notamos a emergência e a consolidação de um embate cada vez mais claro entre estes e forças progressistas – aquelas que defendem a união civil de pessoas do mesmo sexo, a descriminalização do aborto, a retirada de símbolos religiosos do espaço público...
IHU On-Line – Quais são as figuras históricas típicas, além de Gustavo Corção e Plínio Correa de Oliveira, fundador da TFP, que representam o conservadorismo católico brasileiro?
Rodrigo Coppe Caldeira – Poderíamos dizer que o primeiro representante do chamado conservadorismo católico brasileiro foi o leigo Jackson de Figueiredo. Além, claro, dos bispos Antônio de Castro Mayer e Geraldo de Proença Sigaud, entre outros poucos bispos, e dos já citados Plínio Corrêa de Oliveira e Gustavo Corção, os grandes representantes dessa corrente no Brasil.
IHU On-Line – Alguns movimentos fundados no Brasil, como os Arautos do Evangelho, podem ser considerados como expressão do conservadorismo católico brasileiro? Quais são as principais características deste e de outros movimentos conservadores?
Rodrigo Coppe Caldeira – Sim. Os Arautos do Evangelho são um típico movimento conservador católico, porém, não mais da forma como se apresentava no movimento que se espelhou e nasceu, a TFP. De fato, os Arautos estão atualmente muito mais envolvidos com questões religiosas do que com questões de âmbito político, como era o caso de sua congênere nas décadas de 1960, 70 e 80, que desempenhava papel político evidente e marcante.
"Pensar no próximo e ser altruísta é ser de `esquerda`. Uma equação maniqueísta corriqueira, mas nada plausível"
Uma das características dos Arautos relaciona-se ao grau de fidelidade ao papa. Preocupam-se bastante com isso e afirmam esta fidelidade sempre quando podem, ainda mais que foram erigidos como "Associação Internacional de Fiéis de Direito Pontifício" em fevereiro de 2001.
Além disso, um certo tom escatológico e persecutório também é possível de ser notado, o que leva o grupo a se autocompreender como imbuído de uma missão especial em defesa da Igreja, interpretada como ameaçada pelo mundo circundante (bem parecido com a TFP, no caso). Tal perspectiva esteve sempre presente nos grupos católicos mais conservadores.
Já se notou que, mesmo entre estudiosos do catolicismo, há uma confusão em torno desse tipo de grupo. Observa-se, por exemplo, alguns se referindo a Opus Dei, Comunhão e Libertação, FSSPX [Fraternidade Sacerdotal São Pio X] e Toca de Assis como se falassem de um mesmo tipo de grupo, o que não é verossímil. Podemos dizer que, mesmo que estes grupos tenham alguns elementos que denominamos conservadores ou tradicionalistas, não é permitido colocarmos todos num mesmo saco.
Vemos, por exemplo, a Opus Dei, que tem uma relação de estrita obediência ao papa, sendo Prelazia Pessoal, mas não se preocupa tanto com a questão litúrgica como outros grupos, como a FSSPX e alguns de seus desertores, muito menos coloca em xeque as decisões do Vaticano II, mas as aceitam e as propagam.
IHU On-Line – Que outros sinais e movimentos podem ser percebidos na Igreja mundial e brasileira de hoje possíveis de serem entendidos à luz do conceito de tradicionalismo?
Rodrigo Coppe Caldeira – Bento XVI liberou a "missa antiga" com o motu proprio Summorum Pontificum. Muitos interpretam essa atitude do papa como conservadora, e mesmo reacionária. Além, claro, de "tradicionalista". Não entendo assim.
Como já disse outra vez, penso que Ratzinger visa sanar o cisma de 1988, e isso a partir da liturgia, um dos pontos nodais para os tradicionalistas, além de reequilibrar as forças no interior do catolicismo contemporâneo. Penso ser uma posição lícita – mesmo porque está no exercício de seu cargo –, além de um aceno convidativo para os radicais estarem novamente em plena comunhão com Roma. Os diálogos continuam, levados a cabo pela Comissão Pontifícia Ecclesia Dei, porém, sem muito sucesso.
"No campo litúrgico, algo de novo acontece. Seria interessante um levantamento sobre quais os motivos de tantos jovens se interessarem por elas"

Por outro lado, nota-se que a possibilidade aberta pelo motu proprio está sendo utilizada por alguns grupos tradicionalistas como uma brecha na arquitetura vaticana para se continuar a lançar críticas deslegitimadoras ao Concílio Vaticano II e suas determinações. Assim, alguns destes grupos mais intransigentes em seus posicionamentos, como é o caso da FSSPX, parecem não estar satisfeitos com a possibilidade oferecida pelo papa, mas ainda exigem que o Vaticano II seja totalmente cancelado e suprimido. O que parece ser inadmissível para Bento XVI.
IHU On-Line – Prospectivamente, pode-se dizer que o conservadorismo católico brasileiro tem chances de crescimento no âmbito eclesial e/ou no contexto político e cultural brasileiro?
Rodrigo Coppe Caldeira – Acredito que sim, já que, como afirmei acima, o conservadorismo é uma reação a qualquer força, especialmente as mais pró-ativas que visem transformar um cenário consolidado. Sabemos que estas forças estão em movimento no Brasil e, como toda ação gera uma reação, nada mais natural do que a emergência de certo conservadorismo.
(Por Moisés Sbardelotto)