sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Fronteiras do Pensamento. E aí chega o militante e crau, mente com despudor, para "servir a causa". É assim e sempre será assim, desde os tempos das "Santas Inquisições".

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Mentiras
(*) Roberto Romano
Correio Popular de Campinas.


Estive no Rio Grande do Sul, terra de civismo e cultura, além da fina gentileza, para integrar o seminário internacional “Fronteiras do Pensamento”, em companhia do excelente Jon Elster. Discuti a mentira nas eleições,  na Justiça e na política.  A mais conhecida definição ocidental da mentira encontra-se no platônico Agostinho. Todos recordam a censura, na República, dirigida aos mendazes deuses homéricos e define os atores divinos como inocentes. A nossa vontade, ainda no Paraíso escolheu o mal, pensa Agostinho. No mundo finito tudo é pervertido. O Estado existe devido ao primeiro ato maléfico e mentiroso, que consiste em “dizer o contrário do que se pensa, com a intenção de enganar”. (De mendacio). 

A mentira é um ato de fala. Estes dependem, segundo J.L. Austin (How to do things with Words: Oxford, Clarendon, 1962) do ajuste de quem enuncia a um “procedimento convencional aceito (…) que inclui a emissão de certas palavras, por parte de certas pessoas em certas circunstâncias”. Tal aspecto é determinado como ilocução (o que fazemos ao dizer algo), mas não como perlocução (o que fazemos pelo fato de dizer algo). A perlocução é o efeito de um ato lingüístico, o objeto ou a simples seqüela daquele ato. A perlocução pode ser intencional ou inintencional. A perlocução não é convencional e se produz, ou deixa de ocorrer, independentemente da correta efetivação do ilocutivo. Exemplo: “mate-o” é locutivo. “Ordenou-me que o matasse”, ilocutivo. “Persuadiu-me a matá-lo”, perlocutivo. 

“Persuadir”, “convencer”, “assustar”, “alarmar” são perlocutivos que não dependem do fato de usar certas expressões ou situá-las em contexto adequado, mas da astúcia do falante, fraqueza ou vulnerabilidade do ouvinte, circunstâncias nem sempre previsíveis ou controláveis pelos próprios sujeitos do ato de fala. Austin afirma que um juiz decide, pela oitiva de testemunhas, quais locutivos ou ilocutivos foram empregados no delito, mas não sabe quais foram os perlocutivos por não ter provas para tal exame. O ilocutivo consiste em dizer algo. O perlocutivo resulta do ter dito algo, não consiste em outro ato de dizer. Ele não é convencional e isto se verifica no fato de que ele não pode ser explícito, caso contrário perde eficácia. Não se diz: “eu te persuado”, ou “eu te assusto” quando se deseja persuadir ou assustar. O perlocutivo pode ser intencional ou inintencional, um fim querido, ou seqüela do ilocutivo. 

Se a mentira é “dizer o contrário do que se pensa com a intenção de enganar”, como considerá-la? Falar  mentira, para Austin, é transgredir a condição dos atos de fala, a sinceridade. No ilocutivo, a mentira está em não cumprir a regra que exige dos partícipes, numa troca de enunciados, que eles possuam os pensamentos e sentimentos expressos, tenham a intenção de falar em conseqüência. Os partícipes do xadrez devem ter a competência e o intento de jogar xadrez, não dominó. A sinceridade, assim entendida, é a base da conversa. A mentira  nega a  comunicação e não é  ilocutiva, mas perlocutiva. Se falarmos “ao dizer X, eu o enganei”, o intento e a conseqüência se amparam na falta de explicitação, a inconexão encoberta entre o dito e o pretendido, sem que o outro o perceba, pois se trata de enganá-lo. 

Na Razão de Estado ocorre a inconexão entre quem fala pelo poder e quem obedece. O político mente para ganhar eleições; o desempregado mente para conseguir emprego, e até existe quem minta exclusivamente para chamar a atenção. Mentir é recurso próximo da manipulação: eu engano e ele não deve perceber (C. Castilla del Pino: El discurso de la mentira. Madrid, Alianza, 1988) . A razão de Estado reduz a fala à manipulação dos dirigidos, neles cria a aceitação temporária do que se diz e se faz. A adesão ao governante é fabricada com astúcia. A mentira é abuso da linguagem: se descoberta, precisa de escusas. A verdade não requer desculpas, salvo diante da razão de Estado, como nos julgamentos de Vichy ou Moscou e nas farsas encenadas para enganar multidões.