segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Último trecho de minha entrevista ao IMIL.

Imil – Existe no país um clima de otimismo, Copa do Mundo, Olimpíadas, uma crise econômica que parece distante… Tal quadro dificulta o exercício e a repercussão do pensamento crítico no país?


Romano - Não podemos pensar que apenas a conjuntura poderia explicar semelhante apatia popular diante da corrupção. Devemos, antes de tudo, dizer que o alheamento não é absoluto, pois cerca de dois milhões de pessoas se movimentaram para conseguir a lei da Ficha Limpa. Esta, apesar de tudo, marca o desejo dos cidadãos de combater o processo corrosivo que anula o Estado de direito entre nós.

Para compreender o motivo da suposta passividade do povo brasileiro diante da corrupção, precisamos refletir sobre o peso da inflação na vida nacional, de 1954 até o Plano Real. Um processo inflacionário como o vivido em nossa terra corrompe valores, quebra resistências éticas, abre caminho para o desespero de indivíduos, grupos, classes.

Permitam que eu cite um dos autores mais relevantes na análise política e antropológica do século XX, Elias Canetti. Em sua obra lúcida e profunda chamada “Massa e poder”, existe um capítulo fundamental intitulado “A inflação como fenômeno de massa”. Em outros livros e textos ele comenta o impacto da inflação na ordem social e política. Tanto sua autobiografia (“Die Fackel im Ohr” ou “A torcha no ouvido”), quanto “Auto-da-fé” (“Die Blendung”) trazem situações vividas durante o tremendo processo inflacionário de Weimar. Como seu contemporâneo Georg Simmel, que publicou um monumento teórico chamado “Filosofia do Dinheiro” (“Philosophie des Geldes”, 1900, existe tradução inglesa da obra, “The Philosophy of Money”), Canetti presta atenção ao papel do dinheiro na ordem cultural moderna e na geração da identidade psicológica das pessoas.

Ele parte de um fato incontestável: “Pode-se afirmar que nas nossas civilizações modernas, excetuando-se as guerras e as revoluções, não existe nada que em sua envergadura seja comparável às inflações”. Canetti mostra como há um nexo entre o corpo do homem, a sua mão sobretudo, e a moeda. Com o enfraquecimento deste vínculo, após o papel moeda (embora o padrão ouro ainda garanta a confiabilidade de uma economia), ainda permaneceu um ponto de estabilidade e confiança nos governos democráticos. Trata-se da cifra que indica o “milhão”. Como designação de um número, o “milhão” tanto pode referir-se ao dinheiro como aos homens. E Canetti nos reconduz à íntima passagem entre a inflação verbal e a econômico-política. Milhão: “O caráter duplo da palavra pode ser analisado muito bem nos discursos políticos. O prazer voluptuoso do número que cresce repentinamente, por exemplo, é característico dos discursos de Hitler. Em geral, ele se refere aos milhões de alemães que ainda vivem no exterior do Reich que ainda precisam ser redimidos”.

Importa sublinhar: no mundo atual, massa e milhão relacionam-se imperativamente. No processo inflacionário, entretanto, “a unidade monetária perde repentinamente sua personalidade. Ela se transforma na massa crescente de unidades; estas possuem cada vez menos valor à medida que aumenta a massa. Os milhões, que tanto se quis possuir, estão repentinamente em nossas mãos, mas já não são mais milhões, apenas se chamam assim.

Na inflação, ocorre um elemento perverso e perversor: “O que cresce toma-se cada vez mais fraco. O que antes era um marco é agora dez mil, depois cem mil, depois um milhão. A identificação do homem individual com seu dinheiro é abolida desta forma”. O homem, que antes confiava na sua moeda ou bilhete, não “pode evitar sentir seu rebaixamento como um rebaixamento dele próprio. (…) A inflação não abala apenas tudo externamente; nada mais é seguro, nada permanece no mesmo local durante uma hora; em virtude da inflação, ele mesmo, o homem, diminui. Ele mesmo, ou o que ele foi, é nada; o milhão, que ele sempre desejou ter, também é nada. Todos o possuem. Mas cada um é nada”.

A inflação, desse modo, pensa Canetti, é uma “desvalorização dupla (…), o indivíduo sente-se desvalorizado, porque a unidade na qual confiou, que ele respeitava tanto como a si mesmo, começou a deslizar para baixo. A massa sente-se desvalorizada. (…) Como pouco se vale sozinho, igualmente pouco se vale unido aos demais. Quando os milhões aumentam, todo um povo de milhões se converte em nada”.

A massa, entretanto, não se esquece de sua desvalorização. “A tendência natural, a partir daí, é a de encontrar algo que valha ainda menos do que a própria pessoa, algo que possa ser desprezado da mesma forma como se foi desprezado antes.” A massa, digamos, busca um bode expiatório onde descarregar o sentimento de ser nada. Canetti aponta para o vínculo entre a inflação alemã e os milhões de judeus, supostamente inferiores aos arianos empobrecidos pela inflação, mortos nos campos de extermínio.

A lição trazida pelo processo inflacionário de Weimar não foi aprendida o bastante pelas sociedades ocidentais. O descontrole da economia traz inflação e, com ela, massas dispostas a seguir os mais diversos Messias, cobrando de supostos culpados toda a insegurança e humilhação vividas. Basta ver o que se passa na suposta União Européia nos últimos tempos. Recomendaria modestamente a leitura de um livro relevante para os nossos políticos, magistrados, universitários, jornalistas. Penso no volume publicado por Bernd Widdig (“Culture and inflation in Weimar Republic”), onde inclusive existe um capítulo inteiro dedicado às análises de Elias Canetti.

No caso brasileiro a população, desacostumada aos procedimentos democráticos (no século XIX, os nossos governantes dificilmente poderiam ser postos entre os campeões da democracia), algo piorado por dois regimes de exceção no século XX, e também afeita aos favores que espera dos que operam o Estado, não teve oportunidade de exercitar ativamente a crítica e a cidadania. Se na Alemanha, onde o nível da participação política das multidões foi elevado, sobretudo após 1848 (a era das revoluções) aconteceu um descontrole econômico e político desastroso como a inflação, conduzindo à fé cega num redentor, no caso Adolf Hitler, não é de espantar que no Brasil tenham medrado arremedos messiânicos como o de Jânio Quadros, José Sarney (recordemos a histeria dos “fiscais do presidente” que invadiam supermercados, prendiam gerentes, penetravam em fazendas na caça aos bois gordos, com base na lei delegada etc), Fernando Collor… A cada nova onda de fé no salvador presidencial, seguia uma onda de humilhação, perda da autoestima, desespero diante do presente e do futuro.

Com o Plano Real, se estabelece a racionalidade política que atenuou a inflação, conduzindo-a a níveis suportáveis. De imediato, veio a popularidade imensa de Fernando Henrique Cardoso que o levou ao Planalto e o elegeu novamente. Na mesma onda de fé no Salvador, foi eleito Luis Inácio da Silva que, à diferença de Fernando Henrique Cardoso, não apenas se adequou ao papel de redentor, como o exacerbou com poderosa ajuda de Duda Mendonça e João Santana. “Nunca antes neste país”, é o slogan que une a salvação da economia à pessoa do Presidente providencial. “Marolinha” é o modo pelo qual o próprio governante procurou exorcizar um impasse do qual ainda desconhecemos o real perigo. E apesar dos exorcismos, a inflação cresce a olhos vistos.

A apatia que hoje se observa nas massas urbanas brasileiras tem várias faces, sendo que a primeira é justamente a segurança econômica, da qual fala a propaganda oficial necessariamente.

Protestar contra a corrupção parece ser algo menor, se comparado ao pesadelo vivido antes do Plano Real. Acrescente-se que a mesma propaganda “sequestrou” o peso dos governos Itamar Franco e Fernando Henrique na construção daquela segurança: “nunca, antes neste país…”. A segunda face, mais triste, é o conúbio dos eleitores com os corruptos que lhes fazem “favores” pessoais ou coletivos (trazem obras para as cidades etc). A terceira é o controle quase absoluto do governo federal sobre as obras públicas no país inteiro, facilmente transformando-as em instrumento político eleitoral. E temos várias outras faces.

Mas digamos, para encerrar esta longa resposta, que um povo que viveu sob a inflação e foi humilhado ao máximo por ela, se dispõe à entrega total a um líder populista. E tal fato traz muitas preocupações com o futuro da democracia.