quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Reinaldo Azevedo.

Nem uma lágrima pelo governante Kadafi. Lágrima nenhuma! Já pelo futuro…

Muamar Kadafi está morto.
Muamar Kadafi foi capturado com vida, seviciado, exposto à execração pública, humilhado e executado por um tribunal extrajudicial. É a moral do novo poder. Muamar Kadafi foi assassinado pelos métodos tornados célebres por… Muamar Kadafi. O homem ligeiro há de pensar: “Provou do próprio veneno”. Ou, como costuma dizer a escória petralha quando envia insultos pra cá, sentindo-se vitoriosa por alguma razão: “Chuuupa (eles são obcecados por isso…) Kadafi!”. O homem sensato há de dizer: triunfou, no fim, o pior Kadafi! Eu não celebro a morte de ninguém, embora não derrube nem uma lágrima pelo governante Kadafi. Lágrima nenhuma! Já pelo futuro…

(...) Eu não tenho o que fazer com a morte. Eu só tenho o que fazer com a vida. Escrevi um dia: “Eu acho que a morte está aquém e além de qualquer contenda. Que moral pode existir na morte? Que ética? Como pode nos sugerir o que quer que seja quem é tão íntimo do absoluto? Como é que um juiz consegue escolher o que comer ou a cor da própria cueca depois de decidir que alguém deve morrer? Se eu arbitrasse sobre a vida, não aceitaria nada além do absoluto”. Por isso não arbitro. Vejam este vídeo sobre os últimos momentos do ex-ditador líbio. Volto em seguida.

Voltei
Como pode alguém assistir a essas cenas e articular palavras de esperança no futuro? Quem senão a linhagem dos carnívoros selvagens, das aves de rapina, vê bons auspícios no sangue e se excita com ele? As celebrações e as divisões dos despojos de guerra me enojam bastante. A luta sempre será mais decorosa do que a vitória. Nesse sentido, aplaudo a presidente Dilma Rousseff, a quem não costumo aplaudir, como sabem: “Não se deve comemorar a morte de ninguém”. Palavras sensatas em meio à falta geral de comedimento.

Não me aterei só ao terreno dos horrores humanos e dos sentimentos, não! Entro, sim, no mérito da questão, como entrei tantas vezes. Os leitores sabem que não tenho o menor receio de comprar brigas, de ser objeto de correntes na Internet, de ser alvo de vagabundos e desocupados, que pensam — ou melhor: não pensam — em bando, como as hienas. Não pertenço a grupo, não pertenço a bando ou partido. Não há um só homem nesta Terra com quem eu concorde integralmente. Os meus amigos sabem que jamais digo “sim” para parecer simpático, progressista, inteligente ou “de companhia” se a minha vontade é dizer “não” — e também o contrário.

Ilegalidade e desordem internacional
Dispersei-me de novo. Volto ao ponto. A invasão da Líbia por Obama, Sarkozy e David Cameron foi ilegal. Nem mesmo houve uma declaração formal de guerra, o que esses países só poderiam ter feito com a autorização de seus respectivos Parlamentos. A ação da Otan desrespeitou a resolução da ONU que autorizava a “intervenção humanitária” (a íntegra está aqui). Já era um texto cheio de absurdos e contradições, uma vez que considerava que só as tropas de Kadafi violavam direitos humanos, o que é uma mentira comprovada.

Sob o silêncio cúmplice da ONU, a Otan decidiu entrar em um dos lados de uma guerra civil. As forças que se uniram contra Kadafi também reúnem carniceiros de diversos matizes, inclusive terroristas que ele próprio recrutara no passado. Ele era brutal? Sem dúvida!, mas estava longe de ser único. Há tirania logo ali em Teerã; há tirania um pouco mais além, em Pequim. Não creio que o trio sonhe apoiar a desestabilização da Arábia Saudita, não é mesmo? Que boa ordem mundial pode surgir do flagrante desrespeito a uma resolução da ONU? Os rebeldes receberam armas dos países ocidentais, contrariando a resolução! O objetivo não era matar Kadafi — mataram, e sem julgamento!, ainda que fosse uma mímica, uma fajutice! A Otan deveria ter-se limitado a proteger civis, mas se concentrou em bombardeios aéreos para que as forças terrestres “rebeldes” avançassem. Mesmo depois de Kadafi estar sitiado, mesmo com o novo governo reconhecido mundo afora e pela ONU, a Otan continuou a atuar como força de ataque. Anteontem, com uma falta de decoro ímpar, Hillary Clinton, a “progressista”, mandando mais uma vez a resolução às favas, fez votos pela morte do ex-ditador.

Novo mundo? Nova Líbia?
Fosse George W. Bush, aquele dos delírios de Arnaldo Jabor, o presidente do EUA, estaria tomando pancada de todo lado. Kadafi nem era, como Saddam, um fator de desestabilização regional e um risco potencial para o mundo. Mas Obama??? Ah, as ilegalidades que patrocinou são vistas como verdadeiros poemas da civilização. Atenção! Bush foi à guerra com autorização do Congresso americano; o Demiurgo, sem ela — recorrendo à falácia de que não era guerra aquilo que promovia. Bush não obteve a resolução da ONU para atacar — e, pois, não atacou em nome das Nações Unidas, e isso quer dizer que não violou resolução nenhuma! O Santo das Esferas, o grande democrata, o estimado líder, bem, este patrocinou um texto para rasgá-lo em seguida. Na campanha eleitoral, já pode incluir em seu currículo: “Ganhei uma guerra!” Um republicano corajoso, se houver, saberá provar que tornou o mundo mais inseguro e mais poroso ao extremismo islâmico — que é, de fato, o que está avançando no Oriente Médio (incluindo o norte da África).

Nem uma lágrima pelo governante Kadafi! Lágrima nenhuma! Mas algumas, sim, pelo futuro.

Da forma como as coisas se deram, EUA, França e Reino Unido se tornaram os responsáveis pela “democracia” na Líbia. Um país estável — ditatorial, como todos os países árabes —, parceiro do Ocidente na luta contra o terror, foi despedaçado. Terão de responder por sua reconstrução.

Quanto ao espetáculo final, a “deglutição” de um Kadafi banhado em sangue, dizer o quê? Ele eliminava seus inimigos em processos extrajudiciais. O mundo o condenava por isso. Ele foi executado num processo extrajudicial por seus inimigos. E o mundo os aplaude por isso.

As minhas condolências! A este “novo mundo”!

Não me peçam para celebrar a morte de um homem sem qualquer julgamento. Eu sinto vergonha.

Por Reinaldo Azevedo