quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Revista Interesse Nacional Ano 3, número 12, janeiro-março de 2011. p. 52 e ss.

Eleições, Igrejas e seitas.


O artigo tem como alvo indicar a necessidade imperiosa de se entender a lógica que move os movimentos religiosos diversos e o Estado laico. Por falta de análises criteriosas de semelhantes prismas políticos, jornalistas e mesmo acadêmicos são surpreendidos sempre que, em períodos eleitorais, aparecem verdadeiros ultimatos das forças religiosas, exigindo obediência a preceitos éticos, morais e mesmo dogmáticos das igrejas. Como instrumento heurístico, o autor compara, em grandes linhas, a lógica que rege a vida religiosa e política nos EUA e no Brasil. No final, o autor deixa claro que a efetiva (e não apenas nominal) separação de assuntos civis e religiosos, pode garantir a democracia no Brasil.


Roberto Romano-Unicamp. ([1])


Ao discutir eleições e religião, o hábito é imaginar que as primeiras sofrem a força da segunda de maneira rapsódica. Nas campanhas para escolher governantes civis e legisladores parece surgir algo que “não deveria ocorrer”, quebrando as barreiras entre os campos teológico e político. Tal perspectiva subestima os elos históricos e antropológicos entre o Estado, Igrejas ou seitas. Na verdade, eleições apenas radicalizam modos de pensar e agir imperante nos templos que, ao mesmo tempo, acolhem cidadadãos políticos. Em nenhum momento quem acredita em valores religiosos aceita tranqüilamente fronteiras entre ordem estatal e circulo da fé. Jamais as autoridades religiosas, desta ou daquela confissão, abandonam o imperativo de indicar à comunidade mais ampla as suas teses sobre a natureza e os homens. Religião que não luta para se expandir, desaparece. O mesmo ocorre na ordem pública, interna e internacional. Agrupamentos religiosos, políticos ou Estados estão submetidos a identicos, mas diversificados, choques de forças. E, como ensina Maquiavel interpretado pelo alemão J.G. Fichte, no mundo inteiro “quem não cresce, diminui enquanto outros crescem”. ([2]) Religião e política nunca foram domínios “desinteressados e objetivos”. É preciso examinar de modo realista aqueles agrupamentos humanos. O que segue abaixo tenta contribuir para o entendimento de semelhante quebra-cabeças, que já consumiu muita tinta no mundo acadêmico e na ordem prática.


Um país fascinante para o exame dos intrincados elos entre poder civil e igrejas é a federação norte-americana. Ali se apresentam cristãos e judeus, estratos islâmicos, budistas, induístas, xintoístas e outros. Difícil residir naquele coletivo sem precisar dizer aos vizinhos qual a sede do próprio culto. Não pertencer a nenhuma igreja causa no mínimo estranheza. E no entanto, a separação de Igreja e Estado é posta na Primeira Emenda e definida ao longo da história política e institucional. Tais diretivas nunca foram pacíficas ou plenamente consensuais. ([3]) Desde os primeiros instantes daquele Estado surgiram tensões entre as leis e as diferentes linhas teológicas. Os choques ocorrem no cotidiano, mas se tornam mais evidentes em períodos eleitorais. Não existe alí um partido de certa igreja ou seita. As duas agremiações proeminentes integram em seus quadros pessoas dos mais diversos credos, em especial cristãos. No Partido Republicano, no entanto, militam atualmente os mais fortes defensores do conservadorismo religioso (um integrismo fundamentalista). Os adeptos da vida fundamentalista estão presentes no Partido Democrático, mas com menor peso. ([4])


No Brasil também não existe um partido confessional católico ou protestante. Nada aqui se compara à Democrazia Cristiana, de conspícuo desempenho na Itália. Nascida à sombra do catolicismo e tendo os setores protestantes instalados em data recente (sobretudo a partir do século 19) ([5]) a estrutura nacional de poder viveu a Colônia e o Império sob o elo do altar e do trono, tangida por instrumentos como o Padroado. Tal status jurídico prejudicou a própria Igreja, conforme reconheceram os bispos brasileiros ao ser proclamada a República. O Padroado era visto por eles como a “Gaiola de Ouro” que impedia o desenvolvimento da Igreja sob a monarquia. ([6])


Em nossa terra a “proteção” do trono trouxe ao catolicismo um perigo duplo. Primeiro, o desaparecimento físico dos meios de mobilização popular, como as ordens religiosas. Com o instituto da mão morta e a proibição de ingressos de noviços e de estrangeiros, conventos eram fechados, uns após outros. Em segundo, existiu a impossibilidade de qualquer mudança doutrinária que atingisse os alicerces das relações entre Igreja e Império. Tal é o fundamento da Questão Religiosa que abalou o trato das duas instituições. Segundo os mentores da monarquia os bispos, em vez de se orientarem por um projeto autônomo, deveriam sujeitar-se aos fins do Estado. Com o Ultramontanismo surge a reação governamental contra a Igreja. Os políticos laicos, conservadores ou jacobinos, tentaram reduzi-la ao plano particular das consciências. ([7])


Acuada no mundo pelos movimentos liberais, positivistas e socialistas, a Igreja reagiu com agressiva política para reconquistar os estratos populares, assumindo propaganda cerrada contra a “modernidade”, reavivando ideários românticos e conservadores sobre a Idade Média, criticando acerbamente os “pecados do capitalismo”. Ela, no entanto, sempre buscou a estabilidade social e política, sendo aliada preciosa dos poderes civis. Desde que fosse reconhecida sua preeminência em matérias éticas e religiosas, a Igreja deixou de se perguntar em demasia sobre a fonte legítima ou ilegítima dos poderes nacionais. Já na Encíclica Immortale Dei (1885) Leão 13 afirma de modo inequívoco sua indiferença em face das formas de governo, com a condição de que a liberdade eclesiástica fosse respeitada. “A soberania não é em si mesma e necessariamente ligada a nenhuma forma política; ela pode muito bem se adaptar a esta ou aquela, desde que seja apta ao que é útil para o bem comum”. ( [8] ) A norma foi mantida pelos demais Pontífices.


A duração e a força do Estado conseguiram o apoio da Igreja, com legitimações de regimes, não raro ad hoc. Tal perfil marcou o trato das instituições até o Concilio Vaticano 2. A doutrina reserva ao mando religioso o campo dos valores éticos e deixa ao Estado a tarefa de seguir o paradigma idealizado pela Santa Sé : “é incontestável a competência da Igreja nesta parte da ordem social que entra em contato com a moral para julgar se as bases de uma organização social dada são conformes à ordem imutável das coisas” ([9])


A Igreja católica, no mundo e no Brasil durante o século 20, buscou manter para si a competência maior na definição dos caminhos éticos recomendáveis aos povos e aos Estados. ([10]) Em nossa terra ela encontrou a firme resistência dos setores liberais, positivistas, anarquistas e socialistas. E sua política de estreita colaboração com todos os regimes, mesmo os ditatoriais, seguiu de maneira constante e coerente. A Hierarquia apoiou Vargas (recebendo em troca o alijamento dos liberais da cena política) ([11]) A LEC (Liga Eleitoral Católica) funcionou no período como técnica de pressão eclesiástica, tendo em vista a adoção dos princípios católicos nas leis. ([12]) O que foi conseguido: incorporou-se na Carta Magna a sacralidade da família e, no plano educacional, a instrução religiosa em escolas públicas. Foi para dar eficácia a tais conquistas que os bispos impediram a fundação de partidos católicos, o que viria dividir as fileiras religiosas e ameaçar a direção monolítica da Hierarquia, na época sob o controle do Cardeal Leme. Aliás, o catolicismo nunca teve, no Brasil, um partido forte que o representasse. ([13]) A agremiação que durante certo tempo recebeu o nome de “cristã” deixou de prosperar no intervalo entre a ditadura Vargas e a de 1964. Ela reuniu e formou algumas lideranças significativas, mas não teve impacto maior nas massas urbanas ou rurais. ([14])


Um ensaio de movimento político com origem católica, nos inícios do anos 60 do século 20, foi a AP (Ação Popular). Mas ela abandonou a sua marca de nascimento religiosa ao se fragmentar durante o regime autoritário. A quebra interna da organização veio da linha assumida por setores dominantes em seu interior, que romperam com o paradigma cristão para assumir o pensamento e programas marxistas e guerrilheiros. ([15]) Tal fato ajuda a entender o grande apoio ao Partido dos Trabalhadores no seu início, por parte da Hierarquia e dos militantes católicos de esquerda. ([16]) O PT poderia ser, para o setor, o partido que os religiosos nunca conseguiram constituir no Brasil. Isto também pode explicar a querela ocorrida nos primeiros tempos do PT, sobre as “duas camisas” : os católicos do PT acusavam os outros segmentos de usarem a camisa petista e, sob ela, a dos seus movimentos (marxistas sobretudo) de origem. O ardor por fazer do PT um partido afinado com a Igreja só diminuiu com o primeiro mandato presidencial de Luis Inácio da Silva, sobretudo após o episódio vulgarmente denominado “mensalão”. É muito provável que o refluxo de intenções de votos, que levou ao segundo turno nas eleições presidenciais de 2010, da parte católica, não se deva apenas a razões éticas de fundamento dogmático, como o aborto. Os fatos que abalaram a Casa Civil, sob a direção da Ministra Erenice Guerra, tiveram seu papel naquele esfriamento católico diante do governo e da sua candidatura. Mas é preciso sublinhar o papel ativo dos bispos em todas as ocasiões.


A Hierarquia católica também ajudou a iniciar e apoiou o regime de 1964. Desafiada em sua idéia de ordem natural da sociedade, tolhida a disciplina hierárquica com frequência inquietante, e vendo as massas dirigirem-se para setores secularizados, com o perigo socialista, ou mesmo —lembremos que estamos em plena colheita da Guerra Fria— comunista, surgem sob a direção de hierarcas a Cruzada do Rosário, do Padre Peyton, as marchas da Família, com Deus, pela Liberdade, os movimentos católicos conservadores que passam a disputar espaço com a Ação Católica especializada, em especial a juventude estudantil e universitária, que rumavam para opções políticas e até mesmo ideológicas opostas às da hierarquia (é o caso da já mencionada Ação Popular, liderada por Betinho, cujo teórico, de extração filosófica hegeliana, foi o jesuíta Padre Vaz) todos esses movimentos responderam às ameaças, reais ou supostas, à Igreja.

Veja o restante em http://interessenacional.com/artigos.asp