sábado, 5 de fevereiro de 2011

Quando se fala tanto em ditadura, é bom lembrar uma ditadura que gerou frutos na imaginação da "esquerda", a ditadura segundo Lenine.

Lenine e a Ditadura
Roberto Romano

Lenine tinha pronta a doutrina, que logo se efetivou na prática, da ditadura proletária. Para ele, as leis fundamentais do marxismo são do mesmo tipo das naturais, elas são necessárias. Não seria preciso, por exemplo, para impor a ditadura proletária, nenhuma legitimidade institucional ou das massas. A sua preocupação era mostrar que a política bolchevista seguia leis científicas. Se tal era o seu fito no plano ideológico, no prático ele seguiu à risca a teoria.

Em julho de 1918 ele manda fuzilar ou deportar centenas de prostitutas que levam os marinheiros para os bares e antigos oficiais, para prevenir uma sublevação em Nijni Novgorod. (1) Em agosto, ele exige a abertura de um campo de concentração para aplicar “o terror de massa” sobre padres, guardas brancos, kulakes. (2). Em dezembro do mesmo ano ele se queixa de Maria Spiridonova, líder dos socialistas revolucionários de esquerda, o que resulta na internação psiquiátrica daquela pessoa, talvez uma das primeiras da longa lista de internados pelo regime, até a sua falência. (3) Lenine assimila o civismo e o policialesco : “o bom comunista é também o bom techkista”.(4) E também a elabora o a. 58 do Código Penal que justifica o terror, em 1922 (5) E vem a censura da imprensa, os vetos à associação, às reuniões. “A ditadura é um poder que se apoia diretamente na violência e não é ligada por nenhuma lei. A ditadura revolucionária do proletariado é um poder conquistado e mantido pela violência, que o proletariado exerce sobre a burguesia, poder que não é ligado por nenhuma lei”. (6) A ditadura teria o condão de compensar o atraso das forças produtivas russas. Assim o golpe de Estado se justifica, não se legitima : porque "esperar o Congresso dos Sovietes é uma ilusão constitucional”. (7) Comenta D. Colas : “A maioria do povo seguirá e segue os bolcheviques. Pois o partido cria a legitimidade que lhe convêm ao transformar o espírito das massas, não pelo discurso mas pela passagem ao ato. ´A resolução inflexível ´do partido modifica o que pensam os indecisos”. (8) A solução correta e científica, segundo Lenine, encontra-se na força: “seria nossa perda, seria puro formalismo esperar o voto indeciso de 21 de outubro; o povo tem o direito e o dever de decidir tais questões não por votos mas pela força; o povo tem o direito e o dever, nos momentos críticos da revolução, de guiar seus representantes, até os melhores, em lugar de os esperar”. (9)

E analisa D. Colas, “o modo de acesso ao poder comanda o seu modo de exercício”. A repressão violenta dos “inimigos” internos se baseia na premissa de que todo regime político tem como base a opressão dos vencidos. Em O Estado e a Revolução, a antiga máquina opressiva do Estado burguês é desmantelada pela ditadura proletária. Mas com a instalação ditatorial, o Estado não tende a ser dissolvido, pelo contrário. A culpa? O proletariado está preso nas malhas do atraso feudal, das camadas pequeno burguesas, cuja figura maior é o kulak, vampiro que esfaima as cidades e que é preciso eliminar. (10) Em 1918 ainda, ele responde as críticas dos mencheviques e comunistas de esquerda sobre o seu autoritarismo ditatorial, críticas nas quais recordam César e Napoleão 3º. No texto “As tarefas imediatas do poder dos sovietes” (11) ele mostra que não há incompatibilidade entre ditadura pessoal, mesmo em política, e a natureza do poder soviético. A ditadura pessoal, com frequência, foi na história “a expressão, o veículo, o agente da ditadura das classes revolucionárias”. A ditadura jacobina foi compatível com a democracia burguesa. E chega a negativa do que afirmara O Estado e a Revolução: como não se definem como anarquistas, os soviéticos aceitam os constrangimentos do Estado para ir do capitalismo ao socialismo. Não há, pois, contradição alguma entre a democracia soviética e a ditadura com recurso ao poder pessoal, ditatorial. (12)

A tese sobre a ditadura pessoal se baseia, por sua vez, na premissa do controle volitivo sobre todo e qualquer processo de ação coletiva. A ditadura é uma técnica e organiza o político de maneira eficaz. A ditadura continua, no Estado, o que se efetiva nas fábricas : “é preciso dizer que toda grande indústria mecânica, que constitui justamente a fonte e a base material de produção socialista exige uma unidade rigorosa de vontade, absoluta, que regula o trabalho comum de centenas, de milhares e dezenas de milhares de homens” (13) A fábrica, com sua disciplina centralizadora, é modelo proposto por Lenine para o partido e para Estado ditatorial. Trata-se do imaginário mecânico que opera no pensamento de Lenine, a todo vapor. (14) Segundo ele, a organização multiplica a força. Ao se organizar e organizar o social, o militante “adquire uma vontade única do milhar, da centena de milhares ou do milhão de militantes de vanguarda, que se torna a vontade da classe”. (15) Ainda em O Estado e a Revolução, a ditadura teria por alvo, nos primeiros tempos, fazer da sociedade “um só escritório, uma só fábrica”. Ela deve ser exercitada pelo partido que tem o mesmo fim, o funcionamento de uma usina política. (16)

A organização é tudo. A massa e o proletariado são movidos pelo partido. É o que se diz, mais propriamente: massa de manobra. “Sem a organização a classe operária é zero”, afirma Lenine para quem quiser ouvir, inclusive os filósofos da Rive Gauche parisiense. (17) E comenta ainda Colas : “O partido encontra-se assim na posição de um demiurgo em relação à classe”. É natural, para aquele tipo de pensamento a equação seguinte : classe proletária=Partido=poder soviético.(18) Um pequeno problema: que fazer com os operários opostos ao golpe de outubro ? Como a ditadura não é feita para reunir os inimigos em aliança, mas para os eliminar, a mesma receita vale para os refratários, mesmo que eles pertençam ao proletariado, em nome de quem a ditadura foi instituída. Trata-se de elevar o operário empírico ao conceito, à teoria elaborada por Lenine, o ditador. Se os tipógrafos se erguem contra o “seu” poder, eles devem ser eliminados como...insetos.

E vem o pior, o que une Lenine e os fascismos nas suas campanhas pela “depuração”. O nazismo queria depurar a raça branca dos supostos parasitas (judeus, ciganos, homossexuais e outros). No caso de Lenine trata-se de depurar a classe em si, a empírica, de todos os que a impedem de se tornar “para si”, submetida à disciplina e à liderança dos ditadores, os camaradas dirigentes, e do ditador supremo. Assim, os tipógrafos que se levantaram contra o partido são ditos, por Lenine, “insetos nocivos” a serem eliminados da Rússia. No texto “Como organizar a emulação?” ele lista todos os piolhos e assemelhados que devem desaparecer : os ricos, os vagabundos, os operários que não se submetem ao partido, os intelectuais histéricos. Todos esses setores são apenas sujeira que deve ser limpa. O meio de fazer tal limpeza encontra-se nos fuzilamentos, deportações, trabalhos degradantes. A ditadura deve limpar (cistka) as instituições feudais. A ditadura leninista repousa sobre a destruição do outro, ela pretende possuir o monopólio da verdade. A “legitimação” é fornecida pela força, pelo terror institucionalizado em proveito do partido.

Notas

1) D. Colas, “Lénine et la dictature de parti unique” in M. Duverger (Ed.) Dictatures et Légitimité (Paris, PUF, 1982), pp. 309 e ss. Uso a edição francesa das Oeuvres de Lenine (Paris, Ed. Sociales, 1959. No caso dos fuzilamentos e deportações citados, o documento encontra-se na p. 108, do T. 44.
2) Oeuvres, Tomo 36, p. 504.
3) Oeuvres, T. 44, pp. 149 e 509.
4) Oeuvres, T. 30, p. 495. Tchekista, de Tcheka, criada para contrabalançar o poder do Comissariado do Povo para Assuntos Internos. Durante toda a guerra civil as duas organizações coexistiram, de maneira autônoma, como rivais. Lenine sugeriu a criação de um outro orgão para controle e retribuição, o Rabkrin (Controle do Povo), para controlar a elite bolchevista, a Tcheka e o Comissariado para os Assuntos Internos. Cf. 43 T. 33, p. 365.
5) Tomo 28, p. 244.
6) Tomo 26, p. 142.
7) Colas, D. op. cit. p. 314.
8) Tomo 26, p. 241.
9) Tomo 28, pp. 53, 75, 285.
10) Tomo 27, p. 243.
11) Tomo 27, p. 278.
12) Tomo 27, p. 279.
13) Uma análise percuciente desse imaginário encontra-se em Heller, M. : La machine et les rouages: la formation de l ´homme soviétique (Paris, Calman Levy, 1985).
14) Tomo 19, p. 437.
15) A temática vem da crítica romântica e idealista às luzes. Lenine pensa contra o idealismo e o romantismo, e assume o modelo da máquina recusado pelos pensadores europeus na virada do século 18 para o 19 . O jovem Hegel, crítico da concepção mecânica de Fichte sobre o Estado, pensa que “a liberdade humana pode ser compatível com a natureza mas não com o Estado. (…) uma idéia de máquina seria algo profundamente contraditório : é rejeitada por tal razão a idéia de um Estado, porque Hegel parte do pressuposto de que o Estado é ´algo mecânico´. A comparação do Estado à máquina desumana e a oposição entre máquina e organismo livre, é um lugar comum da época (…) como a físíca, por seu modelo mecanicista e determinista afasta o homem do mundo, também o Estado, por seu mecanicismo determinista afasta o homem de si mesmo. Como a física, que divide o mundo com seus procedimento quantitativo, o Estado divide a humanidade reduzindo os indivíduos à condição de engrenagem, constrangidos a desempenhar num contexto de ausência de liberdade o papel limitado que lhes é atribuido. Estado e liberdade são incompatíveis. (…) O Estado deve desaparecer”. Panagiotis Thanassas (Universidade Aristóteles de Tessalônica) : “Mythologie de la raison. Un manifeste hégélien de jeunesse” in Methodos, savoirs et textes. 5 (2005), La subjectivité, no site http://methodos.revues.org/document341.html O que indica Thanassas foi efetivado por mim em Conservadorismo romântico, origem do totalitarismo (SP, Ed. Unesp, 1997, 1a. ed. 1981). O contexto do pensamento russo sobre o Estado, com base no idealismo alemão, pode ser discutido a partir do livro Hegel en Russie de Planty- Bonjour (La Haye, Martinus Nijhoff, 1978).
16) Lenine, Oeuvres cit. tomo 19, p. 528.
17) Tomo 44, p. 456.