sábado, 19 de fevereiro de 2011

(II) O autor julgou o caso de tortura contra um jovem, aplicando nos agentes da lei...a lei. Trata-se de um dos mais dignos magistrados do Brasil.

A Obsessão pela Verdade


Nivaldo Mulatinho Filho


O pernambucano ÁLVARO LINS, nome absoluto da crítica literária do seu tempo, irritava-se com a expressão “arte educativa”. Dizia que o papel da arte não é educar. Seu caráter fica bem longe do que se considera prático ou utilitário. O uso do termo “educação”, como sendo uma das finalidades da arte, cria uma terminologia equívoca e perigosa. Política, se o quiserem, no pior sentido da palavra. E o que resulta, então, da literatura ou do cinema? Nada mais do que isso (ou tudo isso): um enriquecimento da nossa experiência vital. A arte pode ampliar e aprofundar a nossa visão da realidade humana, tanto no sentido subjetivo (até no mais íntimo de nós) como no sentido social.


“Hurricane”, o Furacão, de NORMAN JEWINSON, é um filme capaz de lavar a nossa alma. Um trabalho de mestre em matéria de crítica social, da luta ou da busca obsessiva da verdade – a meta dos que desejam a justiça em cada caso concreto.


O personagem da história, baseada em fatos reais, Ruben “Hurricane” Carter, o pugilista negro, é uma dessas vítimas da justiça dos Estados Unidos, país que, na época do lançamento do filme (2001), início do sofrível Governo Bush II, considerava-se campeão dos direitos humanos. E os Governos anteriores, nos seus relatórios anuais, na década final do Século XX, acusavam o Poder Judiciário do Brasil e de outras Nações Latinas de sofrerem a influência dos grupos econômicos e dos políticos, como se os magistrados norte-americanos estivessem fora do mundo real e da manipulação dos poderosos.


A luta anti-racista do Ruben Furacão – o ator DENZEL WASHINGTON encarna magnificamente o personagem – e do grupo canadense que o ajudou a se libertar de uma prisão injusta, de muitos anos, apesar dos recursos judiciais, é um retrato claro, doloroso, das falhas possíveis em qualquer Sistema Judiciário, por mais estruturado e transparente que ele seja ou possa ser.


Quantos policiais, juízes e promotores não se promoveram, como bem lembra o filme, com aquela ação ajuizada contra um negro, acusado, em 1966, da morte violenta de três pessoas brancas? Depois de 20 anos, um Juiz Federal – sempre mais independente que um Juiz Estadual, na realidade norte-americana – alheio aos formalismos, aos “precedentes judiciais” do Sistema e, principalmente, despreocupado em agradar ou desagradar à chamada opinião pública, libertou o Furacão.


A saga da vida do ex-boxeador é também a de todos os que lutam pela Justiça, em qualquer país do mundo, como o adolescente LESRA MARTIN, que, ao ler o livro autobiográfico de “Hurricane”, intitulado “O 16º Round”, apaixonou-se pela causa daquele homem, violentado pelas falhas humanas e culturais (o racismo) dos chamados Homens da Lei. Derrubou todas as barreiras existentes entre o preso e a sociedade, inclusive as que o pugilista, desiludido e cheio de rancor, tinha criado em torno de si mesmo. O adolescente LESRA (vivido no filme pelo também magnífico VICELLOUS REON SHANNON) foi a primeira pessoa que libertou o Furacão, como ele próprio, belamente, reconheceu. Libertou-o do ódio.


No meu Gabinete, no Fórum Thomaz de Aquino, antigo Grande Hotel, no espaço onde, dizem, hospedou-se ORSON WELLES, tenho um cartaz do “Hurricane”, ao lado de um outro, o do filme “O Caso dos Irmãos Naves”, de Luis Sérgio Person, lançado em 1967, em pleno regime militar, um corajoso grito contra a tortura, baseado no monstruoso erro Judiciário ocorrido durante o Estado Novo (1937) – a suposta vítima reapareceu quinze anos depois.


Para lembrar o quanto nós, Operadores do Direito, podemos errar.


Recife, 17 de maio de 2010.