quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Entrevista "antiga" para recordar o recente corte drástico de milhões e milhões no orçamento de C&T, pelo governo Dilma Roussef.

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Passado, presente e futuro
da universidade brasileira

Roberto Romano analisa o contexto em que surgiu essa instituição no país, sua evolução e cenáriose

Roberto Romano: “Até a Unicamp e a UnB, o Brasil continuava com um padrão universitário que repetia o europeu” (Foto: Neldo Cantanti)A história oficial registra o surgimento da primeira universidade brasileira em 1920: a atual Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Criada sem grandes debates e recebida sem maior interesse, conta a lenda que a instituição – que de 1937 a 1965 foi conhecida como Universidade do Brasil – era “para belga ver”, pois surgira, essencialmente, para que se pudesse conceder um título de Doutor Honoris Causa ao Rei da Bélgica, por ocasião de sua visita ao Brasil. Somente 14 anos mais tarde o país ganharia de fato sua primeira universidade, idealizada e criada como instituição integral: a Universidade de São Paulo (USP), que surge em meio a importantes transformações políticas, sociais e culturais. Desde então, a universidade brasileira vem consolidando uma relação direta com o desenvolvimento da sociedade e o fortalecimento do Estado. Na entrevista que segue, o filósofo Roberto Romano, professor titular de Ética e Filosofia Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, autor de obras como “O Caldeirão de Medéia”, analisa essa relação e traça cenários para o futuro.

Jornal da Unicamp – Embora a vinda da Corte Portuguesa, em 1808, tenha motivado os primeiros cursos superiores na colônia, as primeiras universidades de fato só começaram a surgir no Brasil no século 20, com a criação da Universidade de São Paulo em 1934. Quais as razões para esse surgimento tardio?

Roberto Romano – Em primeiro lugar, o fato de que a política de Portugal para as colônias foi extremamente restritiva ao desenvolvimento do saber, da técnica e sobretudo da cultura laica. Portugal foi um campeão da contra-reforma, que significou um atraso na Europa inteira. A relação só começou a mudar com o Marquês de Pombal (1699-1782), um adepto das luzes. Mesmo assim ele não modificou substancialmente a política em relação às colônias. Por outro lado, o saber no Brasil, como aliás em toda a América do Sul, tinha como núcleo principal as ordens religiosas. Os dominicanos no Peru e no México, e os jesuítas no Brasil. Eles tinham a política de fazer colégios. Estes colégios eram entendidos como eficazes transmissores de cultura. Claro que dentro do espírito da contra-reforma, o que fazia com que fossem passados apenas os conteúdos permitidos pela Igreja. Mas não eram totalmente ineficazes. Francis Bacon (1561-1626), por exemplo, o grande instaurador da pesquisa moderna na Inglaterra, fazia elogios à educação jesuítica. Entretanto, era uma educação muito restrita aos domínios permitidos pela Igreja. Então, ao longo da colônia, há uma grande responsabilidade dos jesuítas. Pode-se dizer, grosso modo, que certos colégios jesuítas, se houvessem sido criados no Peru, poderiam ser chamados de universidade. Há um pouco de mito sobre as universidades hispânicas na América. Eram, na verdade, grandes colégios, que não tinham todas as características das grandes universidades norte-americanas ou européias. Eram setores de ensino, com pesquisa limitada do ponto de vista de ciências da natureza.

JU – O surgimento tardio, portanto, se deve principalmente à postura de contra-reforma praticada por Portugal?

Romano – Exatamente. É bom lembrar que nos programas dos insurgentes contra o domínio de Portugal, sobretudo na Inconfidência Mineira, nos projetos para a instalação de uma república no Brasil, havia dois eixos essenciais: a indústria e a universidade. Os insurgentes queriam uma universidade e uma fábrica. Isso é bem emblemático do que significava o domínio português.
JU – Com o retardo cronológico da universidade brasileira, o Brasil foi um dos últimos países latino-americanos a contar com instituições universitárias congruentes. Basta pensar que o Peru, São Domingos e o México já contavam com universidades no século XIV e que em 1918 a Argentina já experimentava sua primeira reforma universitária. Apesar disso, pode-se afirmar que a universidade brasileira é hoje a mais sólida e produtiva da América Latina, sobretudo a partir da consolidação de sua pós-graduação. Como isso foi possível?

Romano – Temos vários elementos compondo esse contexto. Apesar de serem contrários à universidade, os positivistas labutaram muito para divulgar o ensino e a prática científica no país. Em Luis Pereira Barreto (1840-1923), por exemplo, médico no interior de São Paulo, percebe-se a insistência nos ensinos tecnológicos e científicos. Os militares brasileiros, influenciados pelo positivismo, valorizavam muito o saber científico e tecnológico. As academias militares, com Benjamin Constant (1836-1891) à frente, eram um centro de produção de saber no campo da matemática, da engenharia, etc. Isso vai ocorrer de maneira paradigmática nos batalhões do marechal Cândido Rondon (1865-1958), que eram ao mesmo tempo de exploração do território indígena, estabelecimento de fronteiras e criação de estradas. Por outro lado, falando especificamente de São Paulo, temos uma situação muito conflitante, que foi a luta dos paulistas contra a ditadura de Getúlio Vargas (1882-1954). Ficou evidente para os paulistas a necessidade do saber politécnico e do saber científico. No brasão da USP, por exemplo, está escrito “A Ciência Vence”. Ou seja: “a ciência vence Getúlio Vargas”. Todo o impulso dado à formação da USP coincidiu com a intenção de criar em São Paulo um pólo de produção do saber que garantisse a autonomia do estado em relação à federação. Havia um sentimento separatista muito forte em São Paulo naquele período. A USP é o legítimo produto da oligarquia cafeeira, que tinha sua expressão no jornal O Estado de São Paulo e no Movimento Constitucionalista.

Vista aérea da USP e do Ciclo Básico da Unicamp na década de 1970: a primeira já alcançando os 40 anos e a segunda ainda em fase de instalação (Foto: Acervo Arquivo Central (Siarq) da Unicamp)

JU – Quais são as matrizes de pensamento da universidade brasileira? Em que as diferentes matrizes se distinguem?

Romano – São Múltiplas. Em primeiro lugar, as teses do Renascimento, acentuadas no século 18, espalhadas pelos insurgentes. Aqueles republicanos eram ávidos leitores das luzes, do pensamento inglês, liam Bacon com toda a sua proposta de reforma e instalação da ciência. Também liam os enciclopedistas franceses. Em Minas Gerais, no século 18, existiam bibliotecas públicas freqüentadas pela população, onde eram lidos livros de ciência, a enciclopédia publicada por Denis Diderot e jornais dos Estados Unidos e Europa. Portanto, havia um padrão civilizatório selvagemente perseguido pela censura de Portugal e mesmo depois do Império. Essa matriz do pensamento é indelével. Há uma forte presença do pensamento inglês, francês, alemão e italiano. Nos cursos de direito, por exemplo, em momentos alternados, há maior presença do pensamento inglês, francês ou italiano. Entretanto, estas matrizes são constantes. E, sempre, o exemplo dos Estados Unidos como grande fator de emulação. Houve um interesse permanente dos universitários brasileiros pelas universidades norte-americanas em todos os setores do saber.

JU – E a Unicamp, como se insere nesse contexto?

Romano – A Unicamp, assim como a Universidade de Brasília (UnB), seria o último florão da prática desenvolvimentista espalhada no período Juscelino Kubitschek (1902-1976). No começo daquele governo existiam alguns desafios estabelecidos no plano de metas. O primeiro deles era retirar o Brasil do litoral Atlântico e interiorizar a vida coletiva de uma forma eficaz. Para isso, o programa de estradas era um elemento fundamental. Logo, era preciso não apenas o saber dominado pelas escolas tradicionais de engenharia, mas também um conhecimento maior, porque as empreiteiras precisavam de pessoas tecnicamente bem formadas. Esse movimento de interiorização, somado ao plano de metas, deu um patamar de exigência de mercado de trabalho, em termos de ciência e tecnologia, que não podia ser coberto apenas pelo modelo anterior de universidade. Daí o grande incentivo, a partir desse momento, aos centros politécnicos especializados. É nesse plano que se dá a instalação da Unicamp e da UnB, como modelos diferentes. Até então, o Brasil continuava com um padrão universitário que repetia o europeu: havia as faculdades importantes – medicina, direito e teologia – e as outras especialidades eram satélites. A USP deu um passo adiante, consolidando uma dimensão mais horizontal às ciências e à pesquisa, não dando privilégios à teologia. Ela era laica. Os institutos de filosofia que surgiram no interior de São Paulo tinham departamentos de biologia, física, química, etc. Ou seja, já não se tratava de uma filosofia serva da teologia. Estes institutos de ensino deram um impulso imenso à vida científica e tecnológica no interior de São Paulo. Mas as demais universidades eram todas dominadas pelo espírito bacharelesco, mais beletrista e menos voltados para a biologia, a química, etc. Por outro lado, o saber da USP era um saber desenvolvido pelas elites e dirigido para as elites. Não era um saber dirigido para as massas. Já o modelo da UnB apresenta uma democratização do acesso ao saber, com o Estado brasileiro garantindo. A UnB trouxe uma modernização ainda maior na pesquisa e no ensino. A Unicamp é o último florão desse modelo. Um modelo voltado para a técnica, para a ciência de ponta, sem a hierarquia das faculdades, que caracterizava a idéia de universidade até os anos 30.

JU – Alguns autores sustentam que a universidade brasileira estaria enfrentando hoje três crises: a financeira, a do elitismo e a do modelo. Qual a mais grave delas?

Romano – Na verdade, não acredito que a crise universitária seja de agora. Ela é mais antiga. Desde os anos 60 discute-se a reforma universitária justamente tendo em vista essa crise da universidade no mundo moderno. Boa parte dessa crise vem de uma distorção do ensino público no Brasil, no seu todo, a partir do regime militar. A ditadura intencionalmente minou o ensino público de primeiro e segundo graus. Há dados do Bird que mostram que até 1965 o ensino publico nessas faixas era o melhor da América do Sul. Houve uma privatização do ensino com o incentivo às escolas privadas para as elites financeiras. E a escola pública foi bombardeada. E mesmo que ela não houvesse sido intencionalmente bombardeada, haveria um problema vegetativo. Aumentou imensamente o público dessas escolas. Juntamente com o boom populacional ocorrido a partir dos anos 50, e com a interiorização urbanística, a quantidade de candidatos à escola oficial aumentou enormemente. Somado a isso, houve a reforma universitária, imposta de cima para baixo através do acordo MEC/Usaid. Aquele acordo definiu um padrão de universidade quase que servilmente copiado do modelo norte-americano. Aboliu-se o modelo da cátedra e assumiu-se o modelo dos departamentos, mas sem a tradição de pesquisa e o padrão de ensino norte-americanos. Burocratizou-se a universidade, mas não se nutriu a sua alma com novos conhecimentos. Essa crise perpassa o movimento estudantil dos anos 60, vai até os anos 70, e quando termina o regime militar, tem-se uma universidade pública freqüentada de preferência pela classe média alta e por filhos de ricos em determinadas escolas. Há quase que um enclausuramento da universidade na classe média. A partir desse momento, vem uma crise deflagrada pela crítica de grandes intelectuais, como Darcy Ribeiro (1922-1997) e Florestan Fernandes (1920-1995). Eles diziam que a universidade era uma “torre de marfim” voltada para a classe rica, sem nenhum enraizamento popular. O que é verdade, dada a origem da USP. Esse desconforto entre universidade e mundo político começou a se estabelecer. De tal modo que a própria universidade, aumentando no seu interior a importância dos movimentos docentes e do movimento estudantil, passou a politizar muito as suas decisões. Os catedráticos passaram a ser cada vez menos ouvidos, enquanto os movimentos de classe dentro da universidade ganharam força. Isso levou a um enfraquecimento político muito grande. Quando se perde a importância no Estado, também se perde o acesso aos recursos, abrindo espaço para a crise financeira. Me parece, porém, que o modelo não está em crise. É um modelo recentíssimo. A Unicamp tem 40 anos. Se pensarmos nas universidades norte-americanas, que têm séculos, ou nas européias, que nasceram há quase um milênio, percebe-se que elas têm, hoje, um problema muito mais sério de adequação ao mundo moderno. Nós suportamos uma série de reformas impostas, mas isso nos deu alguma agilidade que as outras não têm. Isso não significa que não tenhamos problemas. A interdisciplinaridade entre nós, por exemplo, é quase um programa e não uma realidade.

JU – Excetuando as estaduais paulistas, nunca as universidades públicas brasileiras gozaram de autonomia administrativa e financeira, ainda que estas estejam previstas na Constituição de 1988. Quais as conseqüências desse quadro para o ensino e a pesquisa?
Romano –
É danoso. Nós não temos a tradição européia e norte-americana de incentivar os institutos de pesquisa. A pesquisa científica e tecnológica é na sua maioria feita na universidade. Isso demanda em grande quantidade recursos e muito material humano. Portanto, é difícil manter um patamar de inovação tecnológica sem investimentos pesados na universidade. Como a universidade enfrenta essas barreiras todas, fica claro que o Estado brasileiro, federal, e mesmo os estados, tendem a não entender a importância estratégica dos campi. O atual presidente da República [Luiz Inácio Lula da Silva], quando tomou posse, disse que até o final de 2006, quatro por cento do PIB estariam sendo aplicados em ciência e tecnologia. Já estamos na metade de 2006 e o índice aplicado não ultrapassa o patamar histórico, menor do que dois por cento. Nesse caso, a universidade pública é uma espécie de bastião avançado da pesquisa, da tecnologia, do ensino de ponta. Mas é bom lembrar que vivemos numa república excessivamente centralizada no poder executivo federal, e que esse poder só se mantém graças aos acordos com as oligarquias regionais. Por mais desagradável que seja dizer isso, boa parte das nossas universidades federais são o resultado do trato das oligarquias locais com o governo federal. Elas são muito mais uma relação de poder político do que propriamente centros voltados para a pesquisa científica e tecnológica. Essa é uma verdade muito dura.

JU – Não seria uma distorção?
Romano –
Sim, é uma distorção. Quando você tem esse modelo, oligarquias/governo federal, é evidente que não interessa às oligarquias locais e muitas vezes às próprias universidades, a conquista da autonomia. Porque autonomia significa que você teria recursos que não seriam passíveis de alteração de acordo com as tratativas na boca do caixa. Num país onde o “é dando que se recebe” é a norma, fica evidente que as universidades federais muitas vezes dependem das oligarquias regionais. Uma universidade autônoma seria um perigo para a oligarquia e um perigo para o governo federal.

JU – Como sair disso?
Romano –
É um problema sério. A autonomia universitária só se dará com a resolução do falso federalismo brasileiro. Certos estudos são muito interessantes. O professor Armando Bovo, do Departamento de Economia da Unesp de Araraquara, estuda o impacto do retorno dos impostos nos municípios que têm os campi da Unesp. O comércio se beneficia, a indústria se beneficia, o setor de serviços se beneficia. A cidade conta seguramente com o retorno daqueles impostos. A Unesp, com a sua presença, garante o retorno daqueles impostos. Numa cidade que tem uma universidade federal sem alocação de recursos garantidos, há menos retorno de impostos. Se não há maior autonomia financeira do município e do estado, ambos ficam entregues à negociação na boca do caixa do orçamento federal. Portanto, aquelas universidades não podem fazer planos de investimentos no ensino e na pesquisa. O fato de as estaduais paulistas terem recursos garantidos também lhes assegura um patamar para aplicação nos vários campos do saber.

Harvard, a primeira universidade dos EUA, em foto de 1875, e um aluno do IFCH estudando ao ar livre, hoje

JU – Estimuladas pelos governos militares, as instituições privadas cresceram de forma acelerada em três décadas, passando de 40% das matrículas no ensino superior para cerca de 75% do total, apesar de 90% da pesquisa científica e tecnológica continuar sendo realizada pelo sistema público. Na sua opinião, a rede privada ainda continuará aumentando ou chegamos ao seu esgotamento?
Romano –
Estamos chegando ao esgotamento. Os empresários do ensino não abrem mão de seus lucros. Mesmo com um programa altamente questionável como o ProUne, a inadimplência dos estudantes está muito alta. Por outro lado, salvo raríssimas exceções, eles não aplicam recursos em ciência e tecnologia. São verdadeiros “escolões”. Eles aplicam recursos em prédios, imóveis e tudo o mais que lhes garanta o capital. É uma situação paradoxal. Há o ensino privado que tende a oferecer quase nada aos seus formandos, e há as universidades públicas que são culpabilizadas porque são excelentes. A demagogia paira solta. Numa universidade privada, um mestre ainda tem emprego, mas o doutor perde o emprego porque o salário é maior. É uma lógica perversa. É uma opção declarada pela má qualidade e pela não-pesquisa. Mas, volto a insistir: salvo pequenas e honrosas exceções. E também não devemos confundir com as universidades comunitárias, como a PUC, a Metodista, etc.

JU – Diferentemente do Brasil, que tem 75% dos estudantes em instituições privadas, nos Estados Unidos somente 3 milhões dos 14 milhões de universitários estão vinculados a organizações particulares. A política de universalizar o acesso aos primeiros dois anos do nível superior (uma espécie de licenciatura curta) vem se tornando realidade através não só da ampliação dos vários programas de bolsas e de crédito educativo tradicionais, mas sobretudo pela criação de dois novos programas em nível nacional, o Hope Scholarship e o Tax Deduction, que estariam garantindo, atualmente, gratuidade completa nos colleges (primeira etapa da graduação) de pelo menos 37 dos 50 estados norte-americanos. O senhor considera essa política um modelo a ser seguido pelo Brasil?
Romano –
Sigo sempre a proposta do etnólogo André Leroi-Gourhan (1911-1986). Ele diz que uma sociedade não sobrevive sem ciência e técnica, e que essa técnica paradoxalmente tem de vir de dois movimentos contraditórios: o empréstimo e a invenção. Segundo ele, uma sociedade só consegue inventar se ela emprestou, e só consegue emprestar se ela inventa. Nesse sentido, não existe nenhuma sociedade que possa se vangloriar de ser puramente inventiva de modelos novos ou não possa se submeter a um empréstimo estrangeiro. Me parece que os modelos universitários norte-americanos e europeus podem servir como empréstimo, desde que aqui seja desenvolvida a capacidade inventiva. E aí não é possível ignorar a história do país. Os Estados Unidos são uma federação verdadeira. Há uma grande centralização do poder em Washington, mas há também uma efetiva autonomia dos municípios e dos estados para todas as políticas públicas. O que eles conseguem fazer, positiva ou negativamente, pode servir como modelo, mas tem de ser pensado sempre no critério de que não pode existir apenas uma cópia, como aconteceu com a reforma universitária da ditadura. Daquela vez importamos o modelo norte-americano sem a correspondente tradição de pesquisa e de autonomia. Produziu-se uma formidável burocracia universitária que atrasou muito a produção científica. A UnB e a Unicamp são o oposto disso. Há, porém, outro complicador. Vamos supor que os colleges nos Estados Unidos fiquem o mais barato possível. As únicas universidades que contam com investimentos maciços do governo são aquelas que se voltam principalmente para a produção científica e tecnológica, inclusive aquela ligada à indústria armamentista. Isso sugere que o investimento naqueles campi seja direcionado. Os estudantes que desejam cursar essas universidades pagam atualmente de 120 mil a 150 mil dólares. Isso é inviável para a classe média.

JU – O modelo inglês é apresentado por alguns especialistas como uma possível inspiração para os chamados “países emergentes”, dentre os quais se incluiria o Brasil. As reformas empreendidas durante o período Thatcher orientaram-se fundamentalmente pelo enfoque mercadológico. Se antes cabia às universidades privadas definir a forma de emprego dos fundos governamentais, inclusive os destinados à pesquisa, com as novas políticas de incentivos financeiros foram utilizados para induzir as instituições a aplicarem a maior parte dos recursos nas áreas consideradas estratégicas pelo governo. Quais os aspectos positivos e negativos dessa política?
Romano –
Essa briga de Oxford e Cambridge com o governo inglês vem desde a época de Francis Bacon no século 16. O governo Thatcher foi apenas mais um round. É difícil dizer que esse round foi vencido pelo governo. Não temos dados confiáveis para saber quanto de recursos, de fato, foi retirado de Cambridge e Oxford para aquilo que a própria universidade considera essencial. A imposição do governo Thatcher veio com o sistema de avaliação. Quem, na avaliação, cumpre os pressupostos estabelecidos pelo governo, recebe os recursos. Mas será que essa é uma realidade só inglesa? Na França e na Alemanha a situação é mais ou menos a mesma. Dado que aumenta cada vez mais a fraqueza dos estados nacionais e dado que entramos numa relação internacional via mercado, todos os países dependem cada vez mais da alocação de recursos para produzir e vender no mercado internacional. Sobretudo os países europeus têm três grandes concorrências: a americana, a russa e a chinesa. Essa tradicional autonomia da universidade européia tende a se esmaecer cada vez mais. O aspecto negativo é que, quando se reduz a dimensão da pesquisa aos planos do governo, retira-se da universidade um elemento essencial, que é o tempo necessário para a pesquisa. Os governos querem receitas prontas. Será que aqui no Brasil temos condições para fazer isso? Acho que não. Somos demasiadamente carentes de ciência e tecnologia para nos adequar a um modelo preso ao mercado. Nossa rede nacional de produção tecnológica é extremamente falha. Em primeiro lugar, boa parte das universidades não faz pesquisa científico-tecnológica. De Minas Gerais até o Rio Grande do Sul há uma rede coerente de universidades e institutos de pesquisa. Mas pára por aí.

JU – Na América Latina, as propostas da Unesco para o ensino superior se chocam com as políticas do Banco Mundial, que vêm sendo implementadas por diversos países. A diferença central entre as propostas da Unesco e do Banco Mundial seria que, para a primeira, o Estado deve se comprometer explícita e firmemente com o financiamento estratégico de médio e longo prazos da pesquisa e do ensino superior, posição hoje majoritária na maioria dos países desenvolvidos, a começar pelos EUA, que rejeitaram a receita “thatcheriana”. Em contrapartida, parte considerável dos governos latino-americanos, a partir das orientações do Banco Mundial, encontra-se na contramão da história, sob a racionalização simplória de que “o financiamento estatal das universidades é um forma regressiva de distribuição que favorece os grupos de renda mais alta”. Como equacionar essa polêmica?
Romano –
É verdade que as universidades públicas ficaram reféns, durante muito tempo, da classe média alta. Mas não é verdade que só a classe média freqüenta a universidade. Um segundo ponto é que poder-se-ia discutir, sim, o pagamento de anuidade nas universidades públicas, mas isso não tiraria a necessidade, ainda, de aplicação de recursos estatais. A produção científica e tecnológica é vital para a economia brasileira. É uma falácia dizer que a tendência do mercado e da história é a retirada dos poderes públicos no financiamento da educação e da pesquisa. Pelo contrário. Essa receita do Banco Mundial, na verdade, diz o seguinte: “você continuará sempre no seu papel de emprestador de conhecimento”. É isso que temos sido. Apesar de todo o nosso avanço, da produção de papers, ainda é muito pequena a transformação desse saber em formas práticas, via inovação tecnológica. Se quisermos chegar a esta dialética harmonizada de empréstimo e invenção, que é vital, a presença do Estado continua sendo essencial nos próximos 100 anos. Por isso digo sempre que considero genocídio quando governos e governantes deixam de aplicar na educação, na ciência e na tecnologia. Uma luta muito grande é contra a fuga de cérebros. Países pobres formam cientistas, que são drenados para os centros de produção científica mundiais, porque lá recebem maiores salários e têm mais respeito. Se os governos engolem essa receita, não vai sobrar ninguém. Se os governos assumem a política de não aplicar recursos, eles têm de responder pelos danos causados à população.