sábado, 19 de fevereiro de 2011

E para não dizer que não falei de flores e de espinhos...



São Paulo, quarta-feira, 22 de março de 2006



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TENDÊNCIAS/DEBATES

Defesa da moralidade, da imprensa e da lei

ROBERTO ROMANO

Na sessão que absolveu um político do PT e outro do PFL, tanto os acusados quanto os seus defensores atacaram a moralidade (dita por eles "moralismo") e a opinião pública (a qual separaram do povo), proclamando que algo contrário à lei (o caixa dois, segundo parece, se com origem particular, não é crime) seria inocente. Vejamos a desculpa que fundamenta agora a licença no Congresso Nacional.
No capítulo VII da nossa Carta Magna, lemos que a administração pública, direta ou indireta -nos três Poderes-, obedecerá aos princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade e da eficiência. Deixo o último quesito, porque eficácia no cumprimento de seus deveres não é o forte de nosso Estado.


Que a cidadania saiba recuperar nas urnas a soberania contra a representação perversa exercida nesta legislatura


A legalidade foi pisoteada com a benção do plenário. Temos o paradoxo de uma "Casa de Leis" na qual os seus integrantes não se sujeitam à legalidade. Eles se declaram acima e à margem da lei comum.
A impessoalidade foi violentada pelos deputados, visto que o parecer do Conselho de Ética aplicou a lei "sine ira et studio". No plenário, vigoraram os laços de amizade, o partidarismo, contrário aos fatos e ao direito.
Um deputado chegou a falar em "centavos" para diminuir a carga destinada ao seu colega. Um centavo usufruído contra a lei é passível de punição, pois se trata de moeda extraída, direta ou indiretamente, de todos os contribuintes. Um centavo a mais ou a menos define a diferença entre a República democrática e a desordem dos privilégios autoconcedidos no poder público.
No item moralidade, a nação brasileira ouviu os acusados e seus defensores, num sofisma, confundirem palavras. Foi satirizada a moral com a ajuda do "ismo", para tornar palatáveis práticas proibidas para as consciências retas.
Não apenas a moral sofreu violenta anamorfose no Parlamento. O realismo político, a suposta razão de Estado, foi conduzido a sua pior face. Em um país no qual um político que teve o próprio assessor pego com dinheiro em roupa íntima proibiu tal assessor de confessar o dolo "por razões de Estado", Maquiavel só poderia ter mesmo a sorte lastimável de servir para desculpar o privilégio corporativo de políticos.
Os ataques à opinião pública -vitupérios disfarçados contra a imprensa livre e não corrompida- feriram o quesito da publicidade. Ao contrário do que insinuam os interessados, eles devem prestar contas de seus atos à opinião pública, da qual a mídia é integrante.
O princípio do poder que reside no Parlamento foi conquistado a duras penas na revolução democrática inglesa do século 17, com a tese da "accountability". Nessa doutrina, encontra-se a essência de todas as democracias que merecem esse nome. O mesmo escritor que defendeu a liberdade de imprensa contra a tirania e os privilégios aristocráticos, John Milton, defendeu a tese de que o rei, os deputados e os juízes devem prestar contas à cidadania e à sua opinião. Caso oposto, perdem o cargo.
Ainda no quesito publicidade exigido pela Constituição Federal, temos o segredo que define o passaporte para a impunidade, com a artimanha de esconder o voto, de não apresentá-lo lealmente à cidadania.
Rousseau, outrora admirado pelos jacobinos do PT, louva o costume romano de declarar o voto abertamente. "Esse uso", afirma ele em "O Contrato Social", "era bom enquanto a honestidade reinava entre os cidadãos e cada um tinha vergonha de fornecer publicamente seu sufrágio a um juízo injusto ou num assunto indigno; quando o povo se corrompeu e seus votos foram comprados, foi conveniente que eles o concedessem em segredo para conter os compradores pela desconfiança e fornecer aos salafrários ("fripons") o meio de não serem traidores".
Rousseau considera que o voto secreto é remédio adequado a povos corruptos. Ele aceita a sua inevitabilidade. Se o voto mostra covardia e dissolução ética quando secretamente exercido pelo cidadão, no caso dos seus representantes, ele é técnica de burlar a fé pública, esteio do Estado democrático.
Com o corporativismo do Parlamento e com o desprezo pela moral (mesmo que retoricamente se acrescente o "ismo"), os congressistas dão um tiro no pé e subvertem o Estado.
Que, nas urnas de outubro, a cidadania saiba recuperar a soberania contra a representação perversa exercida nesta legislatura. Os deputados não corporativos nos perdoem, mas eles não souberam ou não puderam moderar a filáucia indevida de seus pares.

Roberto Romano, 59, filósofo, é professor titular de ética e filosofia política na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e autor de, entre outras obras, "Moral e Ciência - A Monstruosidade no Século XVIII" (ed. Senac/São Paulo).