segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Revista Continente On Line, entrevista com Roberto Romano


Intelectual pensa que o saber é sua propriedade

Escrito por Fábio Lucas
O professor Roberto Romano é um crítico ferrenho da falta de crítica que grassa nas universidades brasileiras. Para o filósofo da Unicamp, autor de livros como Conservadorismo Romântico – Origem do Totalitarismo (Unesp) e O Caldeirão de Medéia (Perspectiva), o medo de avanços científicos como a clonagem decorre de uma desconfiança natural do conhecimento técnico, mas também da ausência de criticismo no ensino contemporâneo, no mais puro sentido kantiano e iluminista. Por falar em Iluminismo, Roberto Romano lamenta uma lacuna histórica no Brasil: “Não vivemos a cultura das Luzes”, diz ele. Segundo o professor, a mídia e as universidades brasileiras são instituições contra-revolucionárias: favorecem o saber elitista, não o saber democrático.

Nesta entrevista a Continente, o professor Romano, como legítimo representante da elite da Academia nacional, explica por que, apesar da enorme quantidade de informações disponíveis e das conquistas da ciência de ponta, a maioria das pessoas de nossa época não foi apresentada às bases do saber. No diagnóstico, a condenação das figuras do pedante e do especialista, cada vez mais presentes na comunidade científica. “Os intelectuais universitários têm pouca responsabilidade social”, afirma.



C: A educação não deveria atuar muito mais em nossos dias? A reação à clonagem, por parte de setores esclarecidos da sociedade, da mídia e da população em geral, dá a impressão de que estamos em plena Idade Média. Vivemos em uma época obscurantista?

RR: Todas as idades do ser humano têm a mesma distribuição de medo, esperança e desconfiança do trabalho técnico, que pretende ao mesmo tempo evocar o novo e reiterar o habitual. O ato técnico retoma algo que já existe, e por isso é possível inventar. Não existe invenção sem empréstimo anterior, não existe empréstimo sem invenção.



C: Então como dizer que há invenção de fato?

RR: Este círculo aparente foi bem descrito por André Leroi-Gourhan, um grande etnólogo que estudou as origens do fenômeno técnico. Diz ele que nunca podemos encontrar um só instrumento, que incorpore procedimentos e métodos, absolutamente original. Em nossa época, tanto o empréstimo, a circulação universal das técnicas, quanto a invenção unem-se estreitamente.


C: Como o obscurantismo se inscreve neste cenário?

RR: Pessoas obscurantistas apegam-se ao “conhecido”, ao estabelecido, e tendem a recusar o novo, por desconfiança ou medo. Existem também indivíduos imprudentes que desejam o novo, sem passar pelo aprendizado do que já existe. Alguns prendem-se, deste modo, ao passado, outros se apegam a um presente sem solidez. As três faces do tempo são fundamentais. Simultaneamente, quando pensamos e agimos, é preciso levar em conta o presente, o pretérito, o devir. Isto, no Renascimento, chamou-se “prudência”, que foi desenhada numa figura de rosto tríplice, um jovem, um homem amadurecido, um velho.

C: A dualidade produz conflito e empurra o avanço, ou o emperra. Não há como fugir dela?

RR: A dualidade existiu sempre, e vai sempre existir. Pois a natureza é infinita, e nós somos finitos. Não sabemos se a nossa espécie é infinita... Acho que não. E a certeza da mortalidade da espécie é algo que nos apresenta muita urgência. Temos receio de que um novo conhecimento técnico, em vez de ampliar nossa vida, a diminua. Daí vêm as críticas à civilização urbana: será que conseguimos viver mais tempo? Que tipo de qualidade de vida nós temos nas grandes cidades? Há o saudosismo do campo, da vida sem barulho, etc. O imaginário é preenchido por representações regressivas, as quais não ajudam a melhorar o presente, apenas levantam nuvens cinzas de pessimismo social, o que não raro termina em conservadorismo político.

C: O conservadorismo serve de escudo contra o desconhecido, ou simplesmente contra a mudança. Com tal postura defensiva, como conseguimos avançar?

RR: Os herdeiros de Rousseau têm um espólio duplo de idéias. Em primeiro lugar, a democracia e a igualdade. Mas em segundo, uma obscurantista militância contra as ciências, as técnicas, as artes, e a nostalgia de uma natureza virginal que só existe nas mentes românticas conservadoras. Ou seja, o que eles afirmam de um lado, a democracia, negam de outro, no campo efetivo da política. As questões da ciência e das artes, da política e dos valores, são todas sérias, qualquer que seja a resposta que recebam, mas elas não têm resposta única e simples. O fato é que hoje, apesar de todos os avanços científicos e técnicos, grandes massas desconhecem as bases do saber e estão alijadas do exercício artístico. Não teria medo de usar um termo gasto para descrever este traço de profunda desigualdade na distribuição dos conhecimentos: alienação.

C: E quanto mais desinformação, maior a reação à mudança?

RR: É preciso conhecer muito bem o campo científico que está sendo discutido, o âmbito social e o setor religioso. Se você os ignora, não sabe bem quem está falando, quem está com medo ou quem está vivendo a esperança. Um teólogo dedicado ao estudo da ética no campo da pesquisa biológica deve ter, obrigatoriamente, uma formação rigorosa em biologia de ponta.

C: Jamais houve tanta informação e tanta liberdade formal no mundo. Mesmo assim, a defasagem educacional parece alcançar a maioria da população. Será que tanta informação e tanta liberdade não deveriam ter facilitado a educação? O saber não poderia ter ajudado a formar uma sociedade muito melhor do que a nossa?

RR: Justamente por isso, o ensino enquanto crítica é mais atual do que nunca. A crítica se exerce sobre determinado saber. Ninguém critica sem conhecer algo do setor estudado. Houve um erro aqui no Brasil, por exemplo, o de se ensinar a crítica sem expor os conteúdos. Você critica aquilo que sabe. Quando Kant escreveu a Crítica da Razão Pura, ele já sabia a física de Newton. A crítica é tentar entender como funciona a produção do conhecimento, no sujeito e nos objetos. A palavra grega que originou a crítica significa escolher, triar, comparar, julgar. Só é possível efetuar estas operações com algum conhecimento, pelo menos parcial. Criticar a partir de um suposto nada de consciência é falta de sentido. Toda consciência é consciência de alguma coisa. Este é um lado do problema.

C: E qual o outro lado?

RR: O outro, o seu oposto, é a concepção apenas conteudística do saber, como acúmulo erudito de fórmulas, de citações, de procedimentos “consagrados”. Francis Bacon, o pai da ciência experimental, repete uma anedota sobre o pedante que se insurgia contra o uso livre da cultura latina, e se dedicava ao culto quase religioso de Cícero, copiando servilmente o orador romano. Levei dez anos estudando Cícero!”, dizia o pedante em bom latim. “Asno”, repetia o seu crítico, em irreverente grego. Ou seja: os modelos devem ser seguidos, mas eles não são únicos, e devem ser encarados apenas como paradigmas, não como motivo de cópia servil.

C: O pedantismo é uma praga para o saber?

RR: Sim. Quantos pedantes existem no mundo intelectual, como os que “seguem” servilmente este ou aquele teórico! Existem muitos “ismos”, “istas” e “anos” no mundo acadêmico. Esta é uma força que paralisa o pensamento nos campi. O pedante, segundo os seus críticos renascentistas, lia todos os livros, em muitas línguas, mas não entendia nenhum deles. Kant assim define o indivíduo que sabe de cor tudo o que se escreveu sobre um assunto, mas não consegue pensar os conceitos implicados, e não sabe ir do geral ao particular. Se lhe perguntam o que é isto, ou aquilo, diz que “isto é assim segundo...”. Aristóteles ou Platão, ou qualquer outro mestre. “E você, o que pensa do objeto?”. A resposta é o silêncio. Pois bem, este é o idiota, no entender de Immanuel Kant!

C: Qual seria sua configuração atual?

RR: Hoje, podemos ter o pedante da Internet: a individualidade que sabe todos os sites, conhece todas as notícias, mas não pensa nenhuma delas. Com a Internet, nunca tanta informação útil foi veiculada no globo terrestre. E nunca tanta informação inútil foi veiculada no globo terrestre.

C: Como separar o joio do trigo numa massa de informações desse porte?

RR: O processo de produzir a mente crítica é fundamentalmente o do ensino formal, no primeiro e no segundo graus, e o da Universidade. É preciso formar pessoas que saibam interpretar os dados. Saber o que perguntam, inclusive. Hoje existem sites de busca, como o Projeto Perseus, que realizam em algumas horas aquilo que um pesquisador em Filosofia antiga levava 30, 50 anos. Mas é necessário que o sujeito saiba o que é Filosofia, que perguntas filosóficas é preciso fazer. O Projeto Perseus sublinha cada palavra de cada texto filosófico ou literário grego. Mas é preciso saber minimamente o que é um caso, um gênero, a semântica dos termos, além dos conceitos filosóficos, dos problemas da tragédia ou da comédia, dos assuntos políticos, dos jurídicos, etc.

C: A figura do mestre ainda é indispensável, na sua opinião?

RR: A educação formal não está e não será superada. É balela dizer que se vai superar, através de meios de educação a distância, essa forma de educar face a face. Computadores dentro de uma escola formal ajudam enormemente a tarefa de ensinar – como os livros antigamente ajudavam muito. Mas é preciso que os estudantes saibam interpretar, discutir, analisar e, sobretudo, desconfiar.

C: A universalização do saber crítico ajudaria a resolver o impasse atual do sistema democrático?

RR: Essa foi a grande esperança do século 18, o das Luzes, que levou à instauração da democracia francesa e da democracia moderna. Mesmo nos EUA, o sistema resulta dessa longa luta que veio do século 16 e culminou no século 18, em defesa da mais ampla distribuição de saber pela população. Aqui no Brasil, vivemos sob o signo da contra-revolução francesa.

C: Em que momento os brasileiros foram iluministas?

RR: Quando se fala dos inconfidentes mineiros, por exemplo, não se menciona que a primeira coisa que os inconfidentes queriam, a partir da leitura de Bacon, de Rousseau, de Diderot, de Condorcet, era produzir uma Universidade aqui. Dentro de um Estado liberal. O que aconteceu? A Insurreição Mineira foi vencida, como todas as insurreições liberais, inclusive em Pernambuco, na ponta da espada dos exércitos de Caxias, com as bênçãos da Igreja e dos positivistas. Não tivemos entre nós o desenvolvimento daquilo que existiu no século 18. Lembre-se de que Portugal proibia a circulação de livros, até de piedade, aqui. Não tivemos, portanto, a cultura das Luzes.

C: Quais as conseqüências disso para o país?

RR: Isso naturalmente se reflete no estilo de distribuição desigual de saberes que temos hoje. A USP, por exemplo, foi fundada para as elites. Nos textos do professor Fernando de Azevedo, dos fundadores da USP, do jornal O Estado de S. Paulo, vemos como todos tinham a idéia de que a USP era uma universidade para a elite – e se possível, que nela não entrasse nenhum negro. Há um livro de Júlio de Mesquita Filho, chamado A crise nacional – reflexões em torno de uma data, de 1929, em que ele lamenta a existência, no Brasil (pode pôr entre aspas, que é uma coisa que vou lembrar até o fim da vida), da “massa impura e formidável de dois milhões de negros, subitamente investidos de prerrogativas constitucionais, fazendo descer o nível da nacionalidade, na mesma proporção da mescla operada”. Fecha aspas. É esse pessoal que criou a USP. Não é de admirar que se encontre, nas universidades brasileiras, a inexistência ponderável do elemento negro, que é o elemento pobre.

C: O que torna a tese iluminista tão ameaçadora?

RR: No século 18, em Minas, a Enciclopédia de Diderot era lida pelo povo nas bibliotecas. As bibliotecas foram fechadas e as pessoas, presas. Diderot dizia que nunca será preenchida a separação entre o cientista e o povo, por mais educado que seja esse povo. Por quê? Porque o cientista está sempre na ponta dos saberes. Mas é preciso diminuir ao máximo tal distância, e esse é o alvo da educação pública.

C: Por que o óbvio demora tanto a ser visto?

RR: Porque intelectual é um bicho muito estranho. Os intelectuais universitários, sobretudo, têm pouca responsabilidade social. Alexandre Kojève, descrevendo a “comunidade” acadêmica a partir de Hegel, diz que o mundo intelectual é o dos “ladrões roubados”. Cada um, a partir do acúmulo de saberes, apropriados como se fossem descoberta pessoal, produz conceitos, fórmulas, técnicas, que julga sua propriedade. Mas se todos agem assim, todos imaginam que seu saber é propriedade privada.