quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Correio Popular de Campinas

Publicada em 13/10/2010


Fernando Jorge










Deixemos de lado as sandices eleitorais e vejamos algo sério. Falemos de literatura e do espírito, no mundo e no Brasil. Para tal fim, nada mais certo do que abrir a páginas de um escritor luminoso. Quem ? Fernando Jorge surge, de imediato, na lembrança. O autor traz à nossa língua (inculta e bela, maltratada em calhamaços políticos ou filosóficos) as mais suaves frases, unindo-as a duras críticas dirigidas aos sofistas oficiais.

Recordemos o lancinante Cale a boca, jornalista!, livro que deve estar na cabeceira dos que insistem na repressão à imprensa. Nele, a censura policialesca é exibida com ares dignos de Kafka. Em Lutero, temos um retrato da religião que supera historiadores famosos e prestigiados na academia, como Lucien Febvre. Deste último (Martin Luther, un destin) temos um retrato preconceituoso do Reformador.

Nada assim ocorre no trabalho de Fernando Jorge. Hilariantes e verdadeiros, muito verdadeiros, os volumes sobre medalhões das academias, os “imortais” e quejandos. Títulos revelam o conteúdo: A Academia do Fardão e da Confusão e Vida e obra do Plagiário, Paulo Francis.

Entre o grave e o ridículo, textos sobre o Aleijadinho, Santos Dumont, Ernesto Geisel e a obra prima sobre Getúlio Vargas (um retrato com luz e sombra). Ler Fernando Jorge é captar a história da cultura mundial e brasileira, seguindo prismas inusitados, atalhos pouco batidos e perigosos. Diria eu, sem medo de errar, que as pinturas de nossos intelectuais fardados (da Academia ou da mídia), expostas por Jorge, atingem alturas dignas de Erasmo e Rabelais, para não falar de Luciano de Samosata ou Voltaire. Ridendo castigat mores... Após fechar os livros do autor, sentimos mais desejo de literatura, de política, de crítica aos costumes religiosos. No fundo das suas frases, sempre bem redigidas e ideadas , nota-se uma irritação santa e saudável contra a burrice e a impostura da nossa “comunidade intelectual”. Ou seria melhor dizer, com Alexandre Kojève, em vez de comunidade, “reino dos ladrões roubados”? É possível pensar. Aliás, característica de Fernando Jorge é que sua irritação leva à reflexão, algo raro no Brasil: “omnia praeclara tam difficilia, quam rara sunt”...

Fernando Jorge publicou, em data recente, um poema fabuloso sobre o mundo e a nossa arte. Trata-se de livro com título barroco: Se não fosse o Brasil, jamais Barack Obama teria nascido. Uma idéia límpida e simples: a mãe de Obama admirava o filme Orfeu Negro. Apaixonada pela trama amorosa e mitica, ela desejou ardentemente um filho negro, com força mágica que encantaria o mundo. Jorge apresenta provas, sugestões, caminhos para validar a sua ideia. Mas o encanto maior do livro reside na sua estrutura barroca: ele reúne vários livros, uns embutidos nos outros. Temos o palimpsesto fantástico cujas folhas falam sobre o racismo, nos EUA e no Brasil, da música, dos filmes, das culturas que se estranham, se afastam e se aproximam misteriosamente, imperialismo e o destino misterioso dos povos. Tudo, permeado de finas considerações sobre o mito na Grécia e nos dias atuais.

Trata-se de um volume para ler, reler, voltar e repetir as buscas, tateando os elos insuspeitados da ordem cultural, tarefa de leitor que ama a leitura e não a digere como fast food da alma. Existem escritores e escriturários no mundo. Os primeiros, diz Elias Canetti, nos alimentam em vida e após a morte. É por tal motivo que eles são imortais. Os segundos ocupam cadeiras acadêmicas, mais secas do que o cérebro de seus patronos e sucessores. Fernando Jorge pertence ao seleto primeiro grupo. Sem ele, a vida no Brasil seria mais triste e mentirosa. Obrigado, Fernando Jorge!