quinta-feira, 23 de setembro de 2010

De um amigo, uma carta, sobre o mundo e o Brasil.

Reminiscências

No início dos anos 80 do século passado o Instituto Goethe de Belo Horizonte patrocinou uma mostra com os filmes de Hans Jürgen Syberberg. Foi nessa mostra do Goethe que vi pela primeira vez Hitler, um filme da Alemanha. Coincidentemente, nesse mesmo momento eu acabara de ler o seu “livrinho” Conservadorismo Romântico. Origem do Totalitarismo. Alguns bons anos depois, li em um prefácio escrito por você parte de um dos monólogos de Hitler, um filme da Alemanha. Na boca Koberwitz, um narrador polimorfo representado no filme por três atores:

“Admitamos que ele (Hitler) passe no julgamento, no Juízo Final. Como poderiam responder semelhantes pessoas [a narrativa refere-se aos intelectuais que racionalizaram doutrinas sobre a soberania no século XX e especialmente às jurisprudências que legalizaram o nazismo] a este elogio hitlerista: ‘Que seria de nós sem os juristas alemães? Desde 1923, percorri na legalidade e lealdade o caminho longo que leva ao poder. Coberto juridicamente, democraticamente eleito. Mas o futuro ainda devia se realizar. Foi o incorruptível jurista alemão, o honesto, o consciencioso universitário e cidadão, que terminou a minha legalização, fazendo a triagem em minhas idéias. Ele criou uma lei que me agrada e a ela obedeci. Suas leis fundamentaram a minha ação’”.

Em 05 de maio de 1977 milhares de “ridículos” estudantes concentraram-se no Largo de São Francisco e saíram em passeata contra a ditadura e pelas liberdades democráticas em direção ao Viaduto do Chá.Ontem, 23 de setembro, centenas de “ridículos” voltaram, mais uma vez, ao Largo de São Francisco e lembraram que “Em uma democracia, nenhum dos Poderes é soberano. Soberana é a Constituição, pois é ela quem dá corpo e alma à soberania do povo.”Quem conhece a história e a memória do Largo de São Francisco sabe bem reconhecer o valor simbólico e o significado político daquele pedacinho do centro velho da cidade de São Paulo.

Um pouco de filosofia política, pelas palavras de Claude Lefort. Aliás, hoje convém recordar que Marilena Chauí foi uma das mais ativas estudiosas e divulgadoras da importante obra de Lefort no Brasil. Se a memória não falha, Lefort enviou de Paris uma carta em defesa da professora quando ela foi acusada de plagiar os escritos do filósofo francês. Mas com certeza eu lembro que você, Roberto Romano, antes dele já havia feito o mesmo. Situa-se Claude Lefort entre os teóricos da política que consideram o totalitarismo como “um acontecimento maior do nosso tempo”. Escreveu a respeito em A Invenção Democrática e sob forte influência da leitura da obra de Aleksandr Solzhenitsyn.

A imagem do “amigo-inimigo”, hoje ativada descaradamente em certos discursos políticos e amplificada ao extremo pela militância, foi formulada originalmente pelo jurista de Hitler, C. Schmitt, em seu livro O Conceito do Político. Tal imagem, quando transposta para o social, fornece a segurança de uma sociedade homogênea e totalmente transparente para si. E aí, dizem os críticos de Schmitt, estaria o perigo que, se subestimado, poderia levar as democracias a sucumbirem em ditaduras.

No mundo totalitário “é negado que a divisão seja constitutiva da sociedade. A divisão existe apenas “entre o povo e os seus inimigos: uma divisão entre o interior e o exterior; não há divisão interna (…). Compreendemos, assim, que a constituição do povo-Uno exige a produção incessante de inimigos: não apenas é necessário converter fantasticamente adversários ou opositores reais em figuras do Outro maléfico, é preciso inventá-las. Estabelecida a pretensa união sem fissuras, o inimigo que a ameaça só pode vir do exterior. Ele é “um parasita ou dejeto a eliminar”. A perseguição decorrente é feita “em nome de um ideal de profilaxia”, pois o que está verdadeiramente em “causa é sempre a integridade do corpo”. (A Invenção Democrática, SP, Brasiliense, 1983, p.112 e 113)