quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Zero Hora, 11/08/2010.

11 de agosto de 2010 | N° 16424

MEMÓRIA CURTA

Urnas não punem mau uso da verba pública

Mesmo envolvidos em escândalos de uso inadequado do dinheiro público, políticos conseguem, nas urnas, a aprovação popular, muitas vezes como pagamento a pequenas ações individuais para os eleitores que garantem sua perpetuação no poder

Flagrado em 2006 de calção de banho, barriga à mostra, no mar em Balneário Camboriú (SC), Flávio Marques Martins (PTB) foi reeleito vereador de Rio Pardo dois anos depois – e com votação superior. Mesmo que, naquela ocasião, devesse estar em sala de aula, e não fazendo turismo com dinheiro público.

Luiz Henrique da Silva (PDT), após divertir-se no litoral catarinense enquanto a população lhe pagava um curso fictício, teve 61% de votos a mais na eleição seguinte, em Triunfo. Por que, afinal de contas, o eleitorado segue consagrando políticos apanhados em escândalos?

Especialistas consultados por Zero Hora são unânimes em apontar a troca de favores como fator-chave. Se o parlamentar conceder qualquer benesse ao eleitor – seja uma emenda trazendo asfalto para a esquina de casa, um emprego para o vizinho, uma vaquinha para o caixão do marido morto –, não importa que mais tarde ele seja flagrado na bandalheira: já tem o voto garantido.

– Não interessa se o político dá um desfalque no erário, se confunde o público com o privado. Boa parte da população se contenta com pequenas coisas, desde que a afetem diretamente – diz o sociólogo Sérgio Amadeu da Silveira, doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP).

É o legítimo “rouba mas faz”, slogan imortalizado pela campanha de Adhemar de Barros à prefeitura paulista, na década de 50. Entre os 17 vereadores flagrados fazendo turismo em 2006, na hora em que deveriam participar de cursos parlamentares, 11 foram reeleitos dois anos depois. No domingo passado, reportagem da RBS TV mostrou o desleixo com o erário se repetindo: cadernos e professores novamente cederam lugar a praias e cachoeiras paradisíacas.

Favores rendem frutos nas eleições

O ex-presidente e hoje senador Fernando Collor (PTB-AL), o deputado federal Jader Barbalho (PMDB-PA) e o ex-governador do Distrito Federal José Roberto Arruda (DEM) são alguns célebres casos de políticos que, após os escândalos, retornaram ao poder.

Professor de Filosofia e Ética Política da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Roberto Romano lembra que 70% da arrecadação de impostos no Brasil segue para os cofres federais. Um prato cheio para a “política do favor”, diz ele. Deputados só conseguem a reeleição se levarem obras às suas regiões – e, para isso, precisam trocar favores com o governo, facilitar votações na Câmara. Vereadores sobrevivem fazendo o mesmo no âmbito municipal:

– O eleitor, por fim, acha que recebeu um favor – afirma Romano. – E os casos são inúmeros: o vereador consegue com a prefeitura uma ambulância, por exemplo, e leva o filho da dona Maricota para o hospital. Pronto, ficou marcado o favor.

A cientista política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Céli Pinto diz que os brasileiros, de um modo geral, não elencam a corrupção entre as principais preocupações na hora do voto. Pelo contrário: trata-se de eleitores complacentes a condutas desse tipo. Grande parcela deles, segundo Céli, também é corrupta ao burlar o imposto de renda, furar o sinal vermelho ou recorrer da multa quando a infração ocorreu.

– Ainda somos uma democracia muito jovem. A ideia de que somos todos responsáveis pelo país e pelo dinheiro público ainda é frágil demais – avalia a professora.

Roberto Romano lembra as revoluções democráticas da Inglaterra, no século 17, e dos Estados Unidos e da França, no século seguinte. Estabeleceu-se ali uma repartição igualitária dos recursos públicos, coibindo a prática do favor.

Como a maioria dos cidadãos tem dificuldade em acessar o resultado dos impostos, eles dependem de favores. Uma coisa é você chegar a um hospital dizendo que precisa de atendimento, outra é chegar lá com uma carta de vereador.