quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Correio Popular de Campinas

Publicada em 18/8/2010

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Corações de pedra (final)

Roberto Romano

“Deve ser posto como princípio geral que a liberdade ou servidão de um povo dependerá sobretudo do tipo de administração da justiça que ele tem — especialmente da justiça criminal" (R. Hildreth, no livro de John Lord Campbell: Juízes atrozes. Vidas dos juízes infames que serviram como instrumentos dos tiranos na opressão, NY/Auburn, Miller, Orton & Mulligan, 1856).

Como vimos, a lapidação não é prevista no livro santo do islamismo. Cem chibatadas, a pena indicada ali, podem matar. Mas é possível viver depois delas. O procedimento não pertenceu apenas ao campo dos que obedecem o Corão. Ele foi praticado na Grécia, desde os tempos homéricos. E quase sempre ligado aos crimes de blasfêmia ou sexuais. Édipo, por exemplo, na peça teatral mais trágica conhecida por nós, quer ser lapidado pelo incesto cometido com sua mãe. Não o conseguindo, arranca os próprios olhos. Mas aquela técnica letífera não é apreciada pelos gregos, pois seria bárbara. Casos de lapidação espontânea, na qual a massa popular se vinga de alguém acusado de trair a pátria, são narrados na literatura histórica da Grécia. (Cf. M. Gras: Cité grecque et lapidation, in Du chatiment dans la cité: Supplices corporels et peine de mort dans le monde antique, Escola Francesa de Atenas, 1984). No mundo que se tornava cristão, Estevão o santo foi lapidado na defesa de sua fé.

No ato de lapidar são unidos os defeitos da natureza humana. O primeiro é o pleno ódio contra os mais fracos. As massas, por definição, existem no terreno da covardia coletiva. Aqui mesmo em Campinas, anos atrás, grupos massificados espancaram até à morte um torcedor de futebol, sem que a polícia conseguisse impedir a selvageria. No Brasil os linchamentos assumem caráter rotineiro. Se duvida, leitor, faça uma experiência. Peça a um conhecido seu que, no meio de uma praça aponte o dedo para você e berre: “ladrão!” ou “estuprador!”. Mesmo tendo a certeza de ser inocente, você verá a massa das hienas correndo contra seu corpo com pedras na mão. Escapar será milagre. Quando o massacre não é físico, ele é anímico e social. O que ocorreu com os professores da Escola de Base é pura lapidação psíquica. Até hoje aqueles inocentes sofrem as sequelas da selvageria coletiva. Curioso: lapidar significa em nosso idioma “aperfeiçoar” e “destruir com pedras”. Dúplice semântica, traiçoeira língua.

Existem irresponsáveis (eles escrevem em jornais, livros etc.) que proclamam a inexistência de direitos absolutos. Tais são os vanguardistas das tiranias. Existem, sim, direitos absolutos, como o direito à vida! Os covardes, em massa, ignoram tal norma porque não pensam um segundo quando matam inocentes ou culpados, sem o devido processo. Sábio Campbell: “Deve ser posto como princípio geral que a liberdade ou servidão de um povo dependerá sobretudo do tipo de administração da justiça que ele tem — especialmente da justiça criminal”.

Alguém teve a ideia de financiar a viagem ao Irã (para ver a execução de Sakine Ashtiani) dos que criticam a campanha humanitária em curso. Eles perceberiam o horror que preconizam. Discordo. Tal financiamento seria um prêmio aos que assistiriam, enlevados, a dilaceração de um ser humano. Plutarco, importante fonte ética do Ocidente, tem um livro cujo título é Sobre a Curiosidade. Ele mostra o quanto os curiosos se deleitam com a dor que atinge os semelhantes e cunha para tal prática um termo eloquente: “kakourgia". O curioso se encanta com o sofrimento alheio, adora ver as desgraças físicas ou espirituais que tombam sobre o próximo. “Kakourgia": fazer o mal por desejo. (cf. Ostwald, M.: Law, society, and politics in Fifth Century Athens, Univ. Calif. Press, 1987). O cruel, em massa, adora ver corpos estraçalhados se contorcendo. Foi assim no Holocausto que vitimou seis milhões de seres humanos. Não por acaso, o governo iraniano, que o nega, pratica a lapidação pública. O espetáculo da curiosidade se renova todo dia, como culto satânico na TV. Esta última logo mostrará na telinha, para deleite das massas, um peculiar Big Brother: pessoas apedrejadas morrendo numa agonia infinda. Quanto mais sangue, mais aplausos. Olhos obscenos agradecerão.