sexta-feira, 23 de julho de 2010

Um texto "antigo", mais um....

Democracia Representativa, Estado de Direito e Partidos Militantes.

Roberto Romano

Para analisar a contradição entre o Estado democrático de direito e os grupos militantes que assumem no Brasil o controle da vida pública (em especial no setor da comunicação com os projetos de controle “social” da midia) é bom exercício delinear uma idéia do soldado profissional. Um soldado é feito para executar o monopólio da força física estatal na guerra. (1) Seu alvo é garantir a integridade do Estado usando armas letíferas contra inimigos. Em caso de conflito civil sua função continua, na essência, responsável pela morte dos adversários. Para que este fim seja obtido o militar obedece ordens. Segundo o anti-liberal Donoso Cortés, “o soldado é um escravo em uniforme” (Discurso sobre a Ditadura, 1849). Alí, o teórico ataca a democracia representativa e ridiculariza os defensores da Constituição. Segundo Cortés nada no mundo pode garantir estabilidade porque o próprio Deus age ditatorialmente por meio de golpes, os milagres. Esse discurso inspira Carl Schmitt, jurista bastante lido por Francisco Campos e demais personagens da república ditatorial varguista.

Elias Canetti fornece uma chave antropológica para compreendermos a consciência militar. A sentinela imóvel exemplifica a mente do soldado. Os motivos habituais de ação, como os desejos, o temor, a inquietude, nele são reprimidos. Todo ato seu é sancionado por uma ordem. O momento vital do militar é a posição atenta diante do superior. A sua educação começa quando lhe são proibidas mais coisas do que aos outros homens. A ordem tem valor supremo. Os exercícios o habituam a movimentos executados com os demais. Todos devem realizá-los de modo idêntico. O uniforme evidencia a perfeita igualdade de todos na obediência às ordens.

Uma dupla disciplina define o exército. A declarada é a ordem. A outra é a promoção. Para cada ordem cumprida fica um espinho na mente. O soldado raso não pode se desfazer desses espinhos. Ele obedece e se torna cada vez mais rígido na fala e no corpo. Para sair desse estado, só com a promoção. Quando sobe na carreira ele se desfaz —nos outros— dos seus aguilhões/ordens.

O Alto Comando é o que menos ordens recebe. Mesmo assim ele obedece quem possui maior autoridade. O exército segue a disciplina e a via das promoções. É absurdo para um soldado que cumpriu ordens e chegou ao posto de coronel, imaginar que suas próprias ordens não serão obedecidas.

As forças armadas constituem um instrumento para a defesa do Estado e da sociedade. Não é permitido, no Estado de direito, que sequer o soldado comum imponha seus alvos, desejos, ambições e prepotência aos cidadãos e contribuintes. De instrumento, o monopólio da força se tornaria um perigo. A corporação militar seria proposta para aniquilar o Estado democrático e a vida civil.

Os partidos totalitários modernos assumiram a forma da ordem militar e tentaram impôr à vida política a sua estrutura vertical de poder e decisão. Tanto no nazi-fascismo quanto no marxismo, em especial o da URSS e dos países a ela subordinados, eles mimetizaram a hierarquia e a ordem militar. Contra os procedimentos democráticos cuja base é o voto, o debate, o consenso parlamentar e o respeito à Constituição, aqueles setores tentaram aplicar à sociedade política, econômica, cultural e mesmo religiosa a rigidez do quartel. Para remédio contra a fraqueza resultante, organizaram os “movimentos”. Carl Schmitt prepara a fórmula da façanha com a tese do “Estado, movimento e povo”. O elemento rígido viria com o Estado. Este, máquina de guerra contra o liberalismo constitucionalista, teria como combustível o movimento que brota do nexo entre povo e partido. Lenine, no polo marxista, imagina um Partido vertical, um exército movido por revolucionários profissionais. Tal máquina incitaria o movimento no povo, a ele impondo a “consciência vinda de fora”, os intelectuais que integrariam o comando maior da máquina que produz a revolução.

Partido e Estado máquinas somados pelo movimento político que os alimenta. Tais são as condições do que veio a se chamar “a militância”. O militante pode ser definido como soldado do partido . Ele obedece ordens de sua hierarquia sendo escravo sem uniforme. A mente do militante se manifesta, previsível, em cada indivíduo que obedece de modo automático. O militante deve se inserir na massa popular, movê-la rumo aos alvos do Partido. As formas totalitárias produziram, ao lado dos quadros obedientes e doutrinados, “movimentos” relativos aos estágios na vida humana. Mereceram maior solicitude os infanto juvenís, dominados pela lógica anti-democrática. Das suas fileiras brotam os delatores e carrascos pardos, negros ou vermelhos que serviram a Stasi e outras organizações repressivas.

Na estrutura militar de consciência, o pior desatino consiste em desobedecer ordens e quebrar a cadeia de comando. O mesmo ocorre nos partidos totalitários que a imitam. Se as bases ousam ir contra as palavras de ordem, a traição deve ser punida. Como o partido é pensado como a cabeça decisória da sociedade e do Estado, caso a cidadania desobedeça, ela conspira para a queda dos que dirigem o social. Quem se imagina livre e capaz de tomar decisões, cedo ou tarde é dito e sentenciado como traidor do Estado. Quem não colabora para a escravidão geral é conspirador “golpista” no partido, na arena pública ou na imprensa.

Não podem coexistir a estrutura estatal democrática e partidos únicos, idealizados como exércitos. Há uma diferença relevante entre as forças armadas e tais partidos. Um soldado sobe a escala hierárquica segundo regulamentos. Chegar ao nível superior não se conquista com favores, vendas, espionagem, calúnias, infiltração em redações, laboratórios ou cortes de justiça. As exceções confirmam a regra. A obediência militar não apresenta, como seu motivo, o enriquecimento pessoal ou grupal. Nos partidos com ossatura militar a obediência não é tão ampla. Ela é uma espécie de lip service prestado aos donos dos cofres públicos e particulares (quando estes últimos ainda existem) e o fruto deve ser privilégio no consumo (lojas especiais para os quadros, casas de campo ou residência enriquecida, viagens aos estrangeiro mesmo que monitoradas pelos serviços de inteligência, etc) e nos cargos. As transações governamentais, no plano superior da “carreira revolucionária” passam pelos bolsos como “justa retribuição” pelas batalhas em favor da massa oprimida.

Regimes de partidos militantes fazem duas coisas. Em primeiro lugar, a própria forma piramidal do poder gera a corrupção em favor dos dirigentes. Na Alemanha nazista ou na URSS, a corrupção faz dos quadros pessoas incomuns. A fábula da revolução que na aurora seria espartana é propaganda mentirosa. A corrupção dos quadros segue, em escala crescente, o aumento do poder partidário. A corrupção inicial parece modesta no fim da tirania. No meio, quanto mais poderoso o partido, mais a corrupção opera em favor dos militantes. Na queda da URSS,os funcionários do Partido (sobretudo os policiais) formam máfias que marcam a propriedade pública e privada. Sua riqueza, extraída nas torturas e chantagens contra os cidadãos comuns, ela não teve origem nas vésperas da queda do muro de Berlim, mas vem dos “belos tempos”, na tomada do poder pelos bolcheviques.

A segunda coisa produzida pela estrutura vertical do poder militante é a corrosão do caráter que ocorre em duplo sentido, pessoal e civil. No pessoal, o militante aprende que sua pessoa nada vale fora do partido. Se precisa mentir, caluniar, usar chantagem contra os cidadãos comuns ou contra seus próprios companheiros, ele o faz com boa consciência. As fibras morais, no militante, são a cada instante mais tênues. A simples leitura de “A nossa moral e a deles” mostra a corrosão subjetiva a que o militante se presta. Um exemplo sobre este colóquio. Ao comentar esta reunião, um militante assim, com o caráter corrompido, no site Agencia Carta Maior, assimila o Instituto Millenium e uma casa de tolerância fechada pela prefeitura paulista. As duas coisas têm o mesmo nome. Daí, sugere que esta reunião é um evento de cunho sexual e que os acadêmicos convidados são todos “intelectuais de programa”. O redator de caráter corrompido teve sua pornografia assumida pelo PSOL, suposto partido ético, divorciado aparentemente do PT. O exemplo serve pois o que pode ser visto em plano macro, nos partidos políticos totalitários, se repete no micro. Micro ou macro cérebros a serviço da calúnia e da destruição do inimigo —todos os que não pensam como a seita desprovida de saber ou prudência— tal é a marca dos militantes. (2) Passemos à corrupção do caráter na ordem pública.

Na militância, as funções oficiais ou oficiosas são transferidas à partidária. Gradativamente os jornalistas, antes responsáveis diante do público, transformam-se em militantes responsáveis apenas perante a direção do partido, encarregada de impor ordem militar a toda a sociedade e Estado. Diminui na consciência dos que se metamorfoseiam em militantes o múnus do jornalismo. O mesmo ocorre com promotores de justiça, juízes, docentes, engenheiros, médicos, sacerdotes. Eles militam sempre mais, em vez de cumprir sua função costumeira. Semelhante metamorfose mina a fé pública e o Estado de Direito. O padrão do promotor é Andrei Vyshinsky que impõe o ditador que está no ápice da máquina partidária.

Os dois processos corrosivos —o da função pública e do caráter— se ligam desde o início. Porque julgam a causa do Partido mais elevada do que a função civil ou jurídica a que estão adstritos, os militantes consideram normal ocupar lugares e sinecuras. Como os espaços elevados possuem mais privilégios, a guerra por eles tem a marca de procedimentos cortesãos que lembram o absolutismo: cada grupo ou indivíduo se esmera em bajular quem ocupa momentaneamente o poder, o que gera os “traidores” com uso de calúnias, prêmios por delação, etc.

Como indiquei, erra quem imagina que tais formas se instalam depois que o partido chegou ao comando do Estado. Na “luta revolucionária” elas já se apresentam para consolidar a forma vertical de mando, interna ao agrupamento. Alí já se definem os privilégios, as benesses, as precedências.

A estrutura vertical possibilita ação coordenada contra o Estado democrático de direito. O partido da militância gera os privilégios internos, na espera de espalhar privilégios mais amplos e profundos, quando açambarcar o poder. A crença na onipotência do partido une-se à necessária divisão entre o “nós” (os bons, os militantes) e o “eles” (os que não chegaram à graça da revelação partidária). Para que o soldado obedeça é preciso que ele acredite na forma hierárquica, que a força armada seja para ele um valor em si mesma.

Na ideologia militante resta algo daquela crença. Qualquer militante pensa como Trotsky: “Ninguém dentre nós (...) pretende ou pode ter razão contra seu partido. Definitivamente, o partido tem sempre razão (...) Não se pode ter razão a não ser com e para o partido, porque a história não tem outras vias para realizar sua razão”. (Discurso no 13o Congresso do Partido Comunista da URSS, citado por Claude Lefort, “Un homme en trop”).

O militante é soldado mantido pelo organismo partidário. No Brasil, mesmo quando negam a política definida pela direção, os militantes obedecem o comando. Quando o Partido Comunista decidiu apoiar Vargas, Gregório Bezerra subordinou sua vontade à do coletivo militante. “Eu, pessoalmente” diz ele, “achava que Getúlio devia sair pelas armas, embora estivesse plenamente de acordo com o apoio do Partido a Vargas (...) Enfim, eu era um soldado do Partido e cumpria suas decisões, depois de discutidas e aprovadas pela maioria”. (Gregório Bezerra: Memórias, Ed. Civilização Brasileira, RJ, 1979).

Além dessa lógica militarista engendrada na Europa dos séculos 19 e 20, os militantes brasileiros foram moldados pela disciplina do exército comum. É forte o elo entre os tenentes (a começar pelo comandante Prestes) e a alma mater do militantismo nacional. Qual seria a missão da Escola de Quadros do Partido Comunista ? Esse é o tema de um mestrado dirigido por mim na Unicamp, escrito por Sérgio Joachim Rückert, cujo PDF pode ser acessado na Home page da universidade. A referida escola teria como alvo, segundo Miguel Alves no “Informe ao Pleno do Comitê Central em janeiro de 1956” “preparar política e teoricamente quadros capazes de levar o programa do partido ao povo e transformá-lo em programa de todo o povo”. A educação partidária deve “contribuir para formar homens novos, verdadeiros comunistas, revolucionários práticos de novo tipo, homens que sejam soldados da revolução.”

O soldado comum assimila a disciplina militar no quartel. O mesmo ocorre com o militante. Ele assimila, com a disciplina, os dogmas partidários. Como diz Arruda Câmara, um dirigente do partido, tudo o que os militantes fazem precisa ser orientado “pela doutrina marxista-leninista, doutrina todo poderosa porque verdadeira”. (Câmara, Diógenes : “Forjemos nosso partido à imagem e semelhança do partido de Lenin e de Stalin”, Revista Problemas número 44, jan/fev. 1953, pp. 103-104).

Não basta a verdade, posse única e legítima do partido ameaçada pelos grileiros do liberalismo. O verdadeiro reside no organismo partidário mas precisa ser assimilado pela vontade do militante, o plano subjetivo. Importa, na escolha dos quadros, diz Luis Carlos Prestes, "o devotamento à causa da classe operária e a fidelidade ao partido (...) o espírito de disciplina e a intransigência pela aplicação da linha no partido" (Prestes, "Informe do balanço do Comitê Central do PC do B ao IV Congresso do Partido Comunista do Brasil", Revista Problemas número 64, dez/1954 a fev/55, página 96. ).

A escolha dos militantes não pode vir do seu nível intelectual, mas da passiva aceitação das ordens superiores. Assim, com o grau menor de saber, as ordens serão melhor obedecidas. Alcides Campos, um selecionador de quadros, afirma que erro partidário seria escolher pessoas "não por sua fidelidade, abnegação, espírito de sacrifício e devotamento ao partido, mas pelo seu nível cultural (...) Esse critério pequeno-burguês e liberal levou a que fossem propostos para membros dos Comitês regionais elementos que não eram de comprovada fidelidade ao partido" (Campos, A. "seleção, distribuição e formação dos quadros de nosso partido", Revista Problemas, número 64, dez/1954 a fevereiro de 1955, pp. 295-296.).

Para os dirigentes do Partido "não devem ser toleradas também as frequentes infrações ao princípio do centralismo no trabalho de educação (no interior do partido) (...) é preciso observar estritamente as normas traçadas pelo Comitê Central". A frase termina do seguinte modo: "Somente a sabedoria coletiva do Comitê Central, tendo à frente o camarada Prestes, permite dar aos militantes uma educação de elevado teor ideológico" (M. Alves, "Elevar o nível político ideológico do partido, tarefa essencial na luta pela vitória do programa, informe em nome do Presidium ao Pleno do CC, Revista Problemas, número 72, jan/fev. 1956, pp. 50-69).

Soldados e crentes, os militantes recebem uma educação para a disciplina rígida, e seu alvo é impor as verdades do partido às massas, com base na linha justa. O misticismo político atinge o fundo da alma militante. O partido salva. "O partido" diz Diógenes Arruda Câmara, "é a aureola do militante. Fora do partido os que eram grandes se tornam pequenos, os gigantes se transformam em anões" ("Reforçar a vigilância revolucionária, tarefa vital do partido", Revista Problemas número 39, março/abril 1952, p. 53).

Com um critério de seleção pela rama em termos intelectuais (são escolhidos não os gigantes do intelecto, pois seriam pequeno-burgueses, temos aí a gênese da apedeutocracia) e com fidelidade canina aos ditames do Comitê Central, o partido é único leitor da história. Não por acaso tal leitura sempre foi distorcida pelas certezas militantes. "Não há comunista sem se subordinar incondicionalmente aos princípios do partido" (lema citado por Claude Lefort, A invenção democrática).

Desde aqueles dias, portanto, a verdade sublime do partido, por não se adequar ao mundo efetivo, se transformou, como na URSS e nos seus subordinados, em grande fábrica de mentira. Darei apenas um exemplo brasileiro para finalizar. Leoncio Basbaum expõe o modo pelo qual um programa foi discutido no âmbito partidário e mostra os truques dos "superiores" aos militantes. "Quando começou a discussão do programa, já havia entre nós uma forte indisposição contra a direção do partido, sobretudo pela chantagem visível que pretendiam fazer contra os membros das bases, para impedir que o documento fosse discutido. Essa chantagem consistia em afirmar, sem provar, que o programa havia sido elaborado por nada menos de 400 economistas e de alto gabarito (...) a mentira era forte demais. Não havia 400 economistas no partido, nem 40, talvez nem 4" (Leoncio Basbaum, Uma vida em seis tempos, Memórias). Como se nota, o costume de mentir em termos de qualificações acadêmicas não é novo nas hostes militantes.

Se enquadramento e disciplina de pessoas de menor capacidade intelectual é norma, algo que também opera em nossos dias, a vontade cega do todo militante se volta com impeto contra os inimigos. A discussão artificiosa só pode ocorrer no interior do partido. Aos que não pertencem ao cenáculo, os que integrem a maioria dos cidadãos, é reservada a ditadura da linha justa, a verdade do marxismo-leninismo-stalinismo. Mais tarde, castrismo e maoísmo. Já no interior do partido onisciente, os "fraccionistas" que ousam questionar os dirigentes são proibidos de falar. Quanto aos liberais e burgueses, "a única posição justa é combatê-los e esmagá-los em toda linha" (Diógenes de Arruda Câmara).

Fechamos o círculo. A organização militante não dialoga ou debate com os que não se deixam dominar pela direção partidária. Essa cultura militante nutriu a maior parte dos que, hoje, dirigem o Estado brasileiro no Executivo. O legislativo segue via similar. E mesmo o judiciário se torna lugar de escolha para os militantes. José Dirceu, José Genoino, Dilma Rousseff são apenas alguns nomes cuja forma mentis é igual à dos seus antepassados. Não foi por acaso que ALN, VPR, Var-Palmares e outras vanguardas militares e militantes assumiram a via da imposição. Não raro se indica a ilha de Cuba e a teoria dos focos guerrilheiros como inspiradores dos que empregaram armas, sequestros e outros procedimentos similares. Não é totalmente verdade. O fascínio pelas armas surge no mesmo átimo em que o movimento escolhe ser um organismo com forma de exército, em Lenin e seus pares.

O partido militante não se coaduna com o Estado democrático de direito porque, sendo imaginariamente (e depois práticamente) um exército invasor em seu próprio país, sua função é destruir os inimigos, todos os que podem colocar obstáculos à sua marcha rumo ao poder. Essa é a base das tentativas de criar mecanismos de controle da imprensa "burguesa". Em nome de um sujeito coletivo inexistente, a chamada "sociedade", grupos e indivíduos militantes desejam abolir, pela mentira, calúnia ou pressão, os espaços de liberdade que resistem na vida pública.

Termino. Espero que o desvio que realizei tenha indicado a lógica dos que hoje se apresentam como legítimos representantes da sociedade, sem nunca terem recebido um só voto. Não por acaso, também, aqueles militantes precisam de um líder popular que lhes facilite a entrada nos orgãos do Estado, a proximidade em relação aos cofres do Estado e, last but not least, lhes propiciem julgamentos travestidos de magistrados, promotores, legisladores, intelectuais, jornalistas. Chamo também a atenção para o baixo nível intelectual dos militantes. Ele não é um acaso, mas fruto de escolha. O militante sem cultura aceita as piores bazófias e nutre ódio apaixonado pelos inimigos. Eles ferem e podem matar quem pensa de maneira diversa, ou apenas pensa. Tal é a missão dos militantes enquanto esperam, como recompensa, migalhas de sinecuras no Estado e na sociedade civil.

O tempo dos militantes é rápido, pois eles estão apressados para vencer a corrida contra seus pares e, sobretudo, contra os "inimigos". Assim, eles não perdem tempo pensando, refletindo, lendo textos complexos, analisando números montados em equações. A sua fala é regida pelas palavras de ordem e aquele idioma é todo ele constituído pelas palavras embreagem. O termo vem do linguista Emile Benveniste: quando surge uma dificuldade lógica intransponível no discurso, apelo é feito a palavras que nada significam, mas que permitem seguir adianta na fala, como se existisse nela continuidade semântica, exemplos de termo embreagem comuns na militância são "consciência crítica", "intelectual orgânico", "neo-liberalismo", "golpismo", "controle social", etc. As palavras embreagem causa um efeito hipnótico devido à sua repetição em tempo rápido, o que impede de pensá-las. A disciplina do militante, no campo discursivo, retoma um procedimento militar. Quando servi no Tiro de Guerra, o sargento, durante a ordem unida, gritava a plenos pulmões: "rápido, ligeiro, prá não pensar, prá não perder tempo". Na economia discursiva do militante, os termos chave brotam uns depois dos outros, numa algaravia que o comum dos mortais não entende. Trata-se de um idioleto comum apenas aos militantes, desta ou daquela organização. Mas em pouco tempo o ouvinte inteligente percebe, pela frequência dos enunciados, a fonte dos termos e o sentido delirante: todos falam como se a sociedade inteira tivesse a obrigação de acatar o jargão, com a ordem nele contida. Outra peculiaridade: quando falam, os militantes têm brilho nos olhos e estridência na voz. Quando deveriam escutar, seus olhos ficam mortiços, vagam pela sala. Eles preparam uma outra série de termos embreagem contra o seu opositor. Não existe diálogo entre militantes e deles com o mundo social.

A militância não é privilégio da chamada esquerda. Ela também acolhe práticas dos conservadores, a direita. Em tempos de nazi-fascismo (e tais tempos são, infelizmente, ainda contemporâneos, pois não creio em neo-nazismo ou neo-fascismo, existem versões modernizadas do nazi-fascismo), é preciso não jogar os holofotes apenas num lado do palco. Mas a corrosão do caráter dos militantes do que se chama esquerda é dramática e deve ser denunciada com urgência máxima. As desfaçatez das hostes "revolucionárias" se radicaliza. Bons tempos aqueles em que o militante padrão se conformava com um Land Roover de segunda. Agora tudo é de primeira, desde os rescaldos da Telebrás às informações privilegiadas que permitem operações bilionárias a custa zero para os seus agenciadores e beneficiários. Existem professores de ética que dão "consultoria ética" para a Petrobrás. O que beira o sublime.

Por esses motivos julgo essencial estudar o comportamento dos militantes desde o seu início histórico. Após oito anos no controle do governo, eles mostram até que ponto estão dispostos a seguir na busca de poder e privilégios. Redações, pretórios, auditórios legislativos, laboratórios e arquivos, salas de aula, tudo está preparado para o seu império. Eleita a companheira, os seus planos têm oportunidade impar e real de institui a espionagem oficial da cidadania, a censura, prisões, exílios. A família de Celso Daniel vive exilada na Europa porque os acusados, com apoio e favor de militantes, põem sua vida em risco. Até hoje nada se fez para punir os responsáveis pela morte daquele prefeito, menos ainda se realizou para esclarecer o assassinato do prefeito Antonio, de Campinas.

Com a vitória de uma disciplinada e disciplinadora militante, cairão por terra os útimos alicerces do Estado democrático de direito. Depois de outubro será tarde para resistir. Obrigado.








1 O texto que segue foi escrito antes do seu autor conhecer o escrito sobre o militante/militar posto no site DÉCROISSANCES, http://www.decroissance.info/ extraídas as diferenças doutrinárias, a fenomenologia do personagem é muito próxima. Os leitores poderão apreciar aquele texto no endereço indicado acima.
2 Além de ser programada certa manifestação na frente do Hotel em que o evento se realiza, o site do PSOL está cheio de ataques aos intelectuais convidados. Para o acesso à pornopolítica psolista, cf. http://psolsp.org.br/