segunda-feira, 22 de março de 2010

Jornal do Commercio, de Recife.

ENTREVISTA » ROBERTO ROMANO
“É um passo à frente no despotismo”

Publicado em 28.02.2010
Sheila Borges sborges@jc.com.br Pernambuco sempre figurou na história da vida política brasileira como um Estado de vanguarda, revolucionário. Para o professor titular do departamento de ética e filosofia da Universidade Federal de Campinas (Unicamp) Roberto Romano, os pernambucanos também começam a dar exemplos de novas figurações para o conceito de despotismo, da autoridade absoluta que é dada a um grupo ou a uma família, quando parentes – casais e mãe e filha – dominam os comandos de dois poderes democráticos importantes nas cidades: prefeituras e câmaras de vereadores. Em tese, instâncias independentes entre si que deveriam suscitar o debate. Em entrevista concedida ao JC, Romano avalia o comprometimento ético dessa estratégia acionada por alguns grupos políticos que têm, como única finalidade, se fortalecerem no poder.

JORNAL DO COMMERCIO – Qual é o comprometimento ético que existe na relação institucional entre os poderes Executivo e Legislativo de um município quando os postos mais importantes das duas hierarquias públicas – prefeito e presidente da Câmara – são ocupados por marido e mulher?

ROBERTO ROMANO – Tem um grande comprometimento, isso é muito sério. O comprometimento não é de ordem legal, é ético. Essa situação tem conexão com a origem do Estado. Na Grécia Antiga, o berço da democracia, no modelo de formação do Estado, para se fundar o Estado era preciso que se desse um passo além. O espaço da família é o espaço da relação pai e filho, da economia doméstica. Quando saímos desse ambiente, do regime familiar, e entramos em outro ambiente, das relações intersociais, a família não pode mais determinar as decisões políticas. Todas as decisões têm que levar em conta os interesses de todas as famílias. Você não pode tirar o direito das pessoas de se candidatarem, mas quando se estabelece uma aliança para preservar o poder de uma família sobre o Estado, caímos no despotismo. Em vez das decisões se pautarem pelo coletivo, se pautam pela família. A política exige que o governante não dirija a cidade tendo em vista os seus interesses. Se você tem um casal, é evidente que os debates serão resolvidos na família e não no espaço público. Existe uma apropriação do espaço público pela família.

JC – Qual é a lógica do despotismo?

ROMANO – É uma questão de lógica social. A família tem uma lógica própria. A lógica do espaço público é outra, é mais complicada. Se o marido e a mulher preparam as ações da prefeitura ou da câmara, estão reduzindo a complexidade da política aos interesses particulares. Se o prefeito não tem ligação afetiva com a presidente da Câmara, os argumentos apresentados terão uma outra lógica, a solução é mais complicada. Na pluralidade da política, a via não é única. Os argumentos da negociação, no caso dos casais na política, são deixados de lado. Eles estão sempre de acordo, são um só.

JC – Por que uma parte da população aceita essa situação com naturalidade?

ROMANO – As relações sociais são marcadas pela dominação face a face, que se passam por meio da pressão dos mais poderosos. As pessoas acham natural que o casal se torne mais poderoso porque tem aí a distribuição de favores. É legítimo dominar o poder público. O antigo regime era baseado nas relações familiares. O rei era o pai do povo. Essa figura do despotismo não deixou de existir. E isso favorece a corrupção. A população vê a figura do pai e da mãe. Eles se transformam em padrinhos, em protetores.

JC – Faz parte da luta pelo poder nas pequenas cidades?

ROMANO – A luta pelo poder, é uma luta pela hegemonia, pela dominação despótica, monárquica ou republicana. É a luta para se definir um caminho que será seguido pelo coletivo. Se você tem a possibilidade de juntar mulher e marido, o que temos aí é o fortalecimento de um grupo. Se o casal for harmonioso e simpático, melhor ainda.

JC – Nesses casos, a oposição sempre tem sido engolida pelo grupo governista. Por que isso acontece?

ROMANO – Faz parte da luta pela hegemonia. É a guerra, a função é aniquilar, colocar fora de combate. Você só ajuda o inimigo se quiser atacar outro inimigo em comum. É evidente que a oposição fica frágil. Eles criam uma imagem negativa para a oposição em função da harmonia do casal.

JC – Esses casos de Pernambuco podem ser considerados exceções à regra?

ROMANO – A regra normal não é colocar marido e mulher nos principais postos. A regra é colocar um dos dois em postos como estes e o outro fica nos bastidores, na área social. Isso é um passo a frente no despotismo. É um avanço no sentido de piorar a situação. Você tem pouca ou quase nenhuma autonomia. A independência dos poderes fica comprometida.