domingo, 28 de fevereiro de 2010

Revista Época

Atualizado em 26/02/2010 - 23:50

Uma sombra na Campanha

A reaparição de José Dirceu, como dublê de político e consultor de empresas, expõe o lado nebuloso do discurso a favor do “Estado forte” de Dilma Rousseff
Ricardo Mendonça e Isabel Clemente
Sérgio Lima
O ANFÍBIO
Dirceu, num evento do PT, em São Paulo. As notícias sobre sua atividade política-empresarial incomodam o Planalto, mas o comando da campanha de Dilma trata de manter uma boa relação com ele por causa do PT
O Congresso Nacional do PT, que aclamou a candidatura da ministra Dilma Rousseff à Presidência da República, foi marcado também por discursos em defesa do “Estado forte” e pela volta do ex-ministro José Dirceu ao Diretório Nacional do partido, sob a ovação dos militantes. Dirceu, antecessor de Dilma na Casa Civil, saiu do cargo em meio ao escândalo do mensalão em 2005, pelo qual responde a um processo no Supremo Tribunal Federal (STF) em que é acusado de ter liderado o esquema que teria comprado o apoio de parlamentares e partidos ao governo Lula no Congresso. De lá para cá, sem mandato e sem direitos políticos, Dirceu tornou-se um personagem anfíbio. Passou a desenvolver ao mesmo tempo a atividade de militante partidário, com influência na cúpula do PT e acesso aos altos escalões do governo, e a de “consultor” de empresas privadas. Na semana passada, a controversa face político-empresarial de José Dirceu voltou a ser exibida e expôs também o lado nebuloso do discurso petista a favor do “Estado forte”.

Uma reportagem do jornal Folha de S.Paulo revelou que Dirceu recebeu R$ 620 mil, entre 2007 e 2009, em troca de serviços de consultoria prestados ao empresário Nelson dos Santos, que tem investimentos no setor de energia e é conhecido no mercado como um intermediador de grandes negócios. Em 2005, Santos, por meio da Star Overseas Ventures,uma companhia sediada no paraíso fiscal das Ilhas Virgens Britânicas, comprou por R$ 1 uma participação numa empresa falida chamada Eletronet. Constituída no fim dos anos 90, a Eletronet surgiu com 51% de suas ações em poder da americana AES e 49% em poder de empresas elétricas do grupo estatal Eletrobrás. O objetivo da associação era explorar comercialmente, fornecendo serviços de telecomunicação, o uso do principal ativo da Eletronet: o direito de uso de uma rede de 16.000 quilômetros de cabos de fibra óptica da Eletrobrás que interliga 18 Estados. Em 2003, sem conseguir competir com as empresas de telefonia privadas, a Eletronet pediu falência, deixando uma dívida com fornecedores estimada em R$ 800 milhões.

A massa falida da Eletronet voltou a despertar interesse quando o governo Lula começou a esboçar o Plano Nacional de Banda Larga, um programa para popularizar a internet de banda larga, que tem preços altos e difusão baixíssima no Brasil em relação ao resto do mundo. Ao mesmo tempo, o governo iniciou estudos para ressuscitar a Telebrás, a antiga holding estatal do setor de telefonia, com o objetivo de entregar a ela a administração do programa (leia mais na reportagem A horripilante volta da Telebrás) e da rede de cabos de fibra óptica que estava concedida à Eletronet. O R$ 1 gasto por Nelson dos Santos poderia se transformar em milhões se o Palácio do Planalto tomasse a decisão de recuperar a Eletronet da falência– hipótese que estava em estudo no governo quando Dirceu foi contratado por Nelson dos Santos no começo de 2007. No mesmo período, Dirceu começou a postar em seu blog artigos a favor da incorporação da rede da Eletronet ao programa de banda larga – embora ele diga que sua consultoria para Santos serviu apenas para análise de cenários econômicos na América Latina.

O governo afirma que Nelson dos Santos não vai lucrar nada com o Programa Nacional de Banda Larga porque desistiu da ideia de salvar a Eletronet da falência e ganhou o controle da rede de fibras ópticas graças a uma decisão tomada pela Justiça Estadual do Rio de Janeiro. A Justiça referendou o entendimento de que a rede de fibras ópticas pertence mesmo às empresas estatais do setor elétrico e estava apenas cedida, por contrato, à Eletronet. Mesmo que Santos não embolse nenhum centavo com seu “investimento” na Eletronet, o episódio revela como interesses privados tentam fazer grandes negócios à sombra do “Estado forte”, valendo-se de conexões no PT e no aparelho estatal, mantidas na mesma obscuridade das cláusulas de confidencialidade dos contratos de consultoria. Expõe também o problema existente na figura de um consultor privado que, ao mesmo tempo, participa de articulações políticas. Há um evidente conflito de interesses quando alguém dirige um partido que controla o governo e parte do Congresso e dá consultoria a empresas privadas. É muito difícil determinar até onde vai o limite da consultoria e onde começa o lobby junto ao poder”, diz o filósofo Roberto Romano, professor de ética da Universidade de Campinas (Unicamp).

Questionado por ÉPOCA se via algum problema de ética em sua dupla militância partidária-empresarial, Dirceu enviou a seguinte resposta, por e-mail: “Não há conflito ético. Dou consultoria a empresas, inclusive no exterior, sobre possibilidades de negócios em países da América Latina, não sobre questões que envolvam o governo brasileiro. Me tornei advogado e consultor depois de deixar o governo, em 2005. Por que a imprensa fala de mim, mas não fala das consultorias que são dadas por outros ex-ministros, por ex-presidentes do Banco Central ou por ex-embaixadores?”.

Apesar de Dirceu afirmar que não trabalha para empresas com interesses no governo brasileiro, o rastro de sua consultoria já foi detectado em serviços para clientes como a mineradora Vale, o bilionário mexicano Carlos Slim, dono da empresa de telefonia Claro e da Embratel, e o magnata russo Boris Berezovsky, quando ele manifestou interesse em comprar a Varig. Emilio Odebrecht, líder do grupo Odebrecht, também já foi visto no escritório de Dirceu, em São Paulo. São todos grupos cujos negócios somam cifras bilionárias e dependem do governo. Por que procuram Dirceu? Que tipo de consultoria tão preciosa ele pode oferecer para atrair clientes com interesses tão ecléticos?

Um amigo de Dirceu dá a resposta. “O Dirceu não vai ligar para o funcionário de terceiro escalão para colocar um enxerto ou mudar o dispositivo de uma medida provisória. Ele não faz esse tipo de lobby. Mas ele tem uma mercadoria muito valiosa para os empresários: informação. Ele sabe como o governo funciona e tem o mapa de quem é quem e como as coisas são decididas.” Numa entrevista à revista Playboy, em 2007, o próprio Dirceu deu pistas sobre seu método de trabalho: “No fundo, o que eu faço é isso: analiso a situação, aconselho. Se eu fizesse lobby, o presidente saberia no outro dia. Porque, no governo, quando eu dou um telefonema, modéstia à parte, é um telefonema! As empresas que trabalham comigo estão muito satisfeitas”.