sábado, 7 de novembro de 2009

Discurso em homenagem a José Arapiraca, na Câmara de Vereadores de Salvador.

Nota: Arapiraca foi o pesquisador que analisou os nomes das escolas públicas bahianas, identificando o uso criminoso de políticos que aplicaram seu nome de família aos prédios de escolas públicas. Na troca de correspondência entre minha pessoa e a do então Senador Antonio Carlos Magalhães, recordo que Arapiraca só tinha, na época, uma escola com o seu nome. O que diz muito sobre a tirania oligárquica no Brasil. RR


Professor Roberto Romano.

Tributo a José Arapiraca

O serviço de um amigo, coisa viva e animada, tem força e vigorem nosso íntimo, sem exibições e paradas". A frase de Plutarco, posta no triste e realista escrito sobre "Como distinguir o Amigo do Adulador", retoma milhares de anos , unidos pela sabedoria humana. Na Grécia, amizade e ódio eram vistos como forças unificadoras ou dissolventes do mundo, da sociedade e dos indivíduos. Na ordem natural, amor e ódio são os signos de um tempo de paz e de um tempo de conflitos. Fugindo a amizade, impera o fato guerreiro. Quando a Desgraça plasma os tempos e os lugares, o homem se divide e luta contra si mesmo. Se reina a amizade, pode-se viver na polis.

Com o ódio entre os cidadãos, vem a ruína fatal. De Empédocles até Tucídides, a amizade é poder que reúne os humanos e os toma felizes em conjunto. O ódio os destrói no corpo e nas fibras da alma, reduzindo os costumes à pura animalidade, abrindo caminho para a peste e a morte de todos. Sem amizade. inexiste cidadania. Essa lição foi assumida por todos os grandes homens que desejaram dar forma à vida humana, elevando-a acima das bestas feras. Tais homens foram chamados de estadistas. O ideal da república platônica é que todos os membros de sua comunhão fossem amigos, chorando com as dores de um só deles, rindo com a alegria de um só deles. Amizade é o fio que permite costurar os pedaços da polis, antes rasgados pela hostilidade.

Hoje, no Brasil, vivemos sob o sinal de uma desgraça perene. Nossa Federação permanece intacta exteriormente. Mas ela é corroída dia e noite pelo ódio e pela voragem dos grupos e indivíduos supostamente dominantes. O Parlamento evidencia inimizade pela res publica. O Executivo devora seus titulares. O Judiciário perde a confiança das vítimas e dos réus. No cotidiano a violência campeia, indo dos assaltos à mão armada às torturas nas celas, destas aos linchamentos animalescos em plena praça. Nossos vivos não podem dizer se amanhã estarão entre nós, nossos mortos são profanados pela mídia televisiva que deles vive, como abutre voraz.
Respiramos ódio em casa e nas praias, nas estradas e nas montanhas, nos palácios e nos casebres, nos quartéis e nas salas de aula. Dentro da Universidade, nossas Congregações não congregam, nossos Conselhos fogem à razão.

Os partidos políticos brasileiros, longe de serem educadores coletivos, abrem a via do personalismo cesarista, jogando as massas interminavelmente na mística do Salvador, sem maiores esperanças no amanhã. Parece que os deuses da paz e da amizade fugiram do Brasil, para sempre. Nessa desolação, é trágica a ausência de homens verdadeiros, líderes educadores, rnente sabertas para o real e para o sonho. Pior ainda, quando o vazio ocorre após uma presença forte e terna de um homem na plenitude de sua vida.

Lembro-me bem. Certo dia, degustando um acarajé crocante, na praia ainda ensolarada mas curvando-se à noite, ouvi de José Arapiraca o resumo de seu sonho. Numa só frase, ele exprimiu o sentido de sua luta pelo ensino e pela cidadania: "A Constituição pode tudo!". Acostumado aos lamentos e análises dos fiIistinos, sempre à cata de justificações para seu egoísmo e preguiça, os quais diziam que "A Constituição nada pode mudar na face social do País", estranhei, no início, a exclamação de Arapiraca. Presos ao positivismo vulgar, nos acomodamos a repetir, feito papagaios, a "verdade" aparente, real .......destruidora do conceito de cidadania entre nós.

Voltando para casa, em São Paulo, coloquei-me a refletir sobre a frase e o homem Arapiraca podia acreditar na luta civil, porque era ele, inteirinho, um exemplo de harmonia entre público e particular. Alegre como os justos, sua ironia, não raro, colhia os amigos nos instantes de fraqueza , elevando-os pelo riso à paz de alma que se expande positivamente na luta pelo coletivo. Engenho rápido e imaginação poderosa, ele encontrava sempre uma via para atingir os alvos mais proveitosos para seus pares, alunos, funcionários.

Um homem reto; íntegro nos atos e nos pensamentos. Sua ação como universitário pautou-se pelo amor ao Brasil e à Bahia. Através dele, muitos baianos aprenderam a se orgulhar de sua terra. Através dele, muitos brasileiros aprenderam a respeitar a Bahia. Trabalhador, competente, mas aberto à vida, Arapiraca nunca reforçou os esteriótipos e preconceitos contra sua gente. Mas demonstrou, com evidência solar, que seu povo, com ele, era fiel a si mesmo com força para acolher os diferentes. A Bahia está no centro do Brasil. Nela encontra-se o lugar da síntese entre
os vários espíritos regionais e o Universal brasileiro. Arapiraca é (recuso-mea usar o passado) um baiano que assume sua particularidade, aberto ao mais elevado cosmopolitismo. "Grego com os gregos, judeu com os judeus", assim dizia o Apóstolo. José Arapiraca é uma alma capaz de acolher em si o outro, nunca deixando de ser ele mesmo. Com ele falamos do mundo, do Brasil do local. Seu interesse prático e teórico abarca o Nordeste, mas repercute no país inteiro. Tudo isso, desde sua juventude. A primeira obra de fôlego, que permanecerá como referência para todos os estudiosos que se preocupam com os destinos da educação e da política entre nós, analisava os acordos entre o Mec e Usaid, nos anos terríveis da ditadura. Hoje, quando a universidade, em tempos formalmente democráticos, entrega-se à concepção de si mesma enquanto presa lucrativa, vemos o quanto é estratégico o livro de José Arapiraca. Entusiasta da pesquisa e do ensino em alto nível, sua docência rumou para o preparo de jovens, na pós- graduação dentro da UFBA Por este setor ele demonstra o maior carinho. Nas conversas que tive
com ele, aprendi um pouco a gostar do ensino e das pessoas que habitam os campi. Outro prisma, é sua busca de aprimorar a cidadania entre nós. Lembro-me, na época da Constituinte, seu empenho para que existisse discussão e debate, fundamentados na reflexão e saber, fugindo dos slogans fáceis e do emburrecedor lugar comum.

Os derradeiros trabalhos de pesquisa, encetados por Arapiraca, referem-se ao uso inescrupuloso que nossos políticos fazem da coisa pública. A sensibilidade pedagógica e antropológica de Arapiraca levou-o a tratar de um tema pouquíssimo estudado: o ferrete dos nomes de famílias oligárquicas nos prédios escolares. Ler os considerandos e os números apresentados por Arapiraca é banhar-se na luz do conhecimento certo e sem ilusões sobre o Brasil. Esperamos que seu trabalho sobre o Nordeste continue, e que ele muito se expanda pelo território nacional. Arapiraca é um homem amigo, pai temo, esposo amante. Esteio de nossa fragilidade nos campi e nas batalhas da vida e da política. Acadêmico exemplar foi um docente por vocação. Estamos tristes, mas sentimos sua presença entre nós: nas salas de aula, nos eventos científicos, nas pesquisas de campo e teóricas, nas caminhadas em favor da cidadania. Esta presença indica um fato: existe ainda amizade no Brasil. Entre nós, há uma possível vitória contra o ódio. Agradeçamos aos deuses por terem nos dado este amigo discreto e verdadeiro, este líder e professor. Por ter sido ele um raio luminoso dentro da noite abjeta em que nos encontramos, seja recompensado para sempre, em bençãos para os seus, a sua família querida, e para ele. Que a luz perpétua o ilumine.