quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Correio Popular de Campinas, 18/11/2009

Publicada em 18/11/2009


Visita nefasta



Segundo Norberto Bobbio, quem um dia está na praça, amanhã conquista o palácio e nega, na maioria das vezes, o que antes exigia. Dos brasileiros perseguidos pela ditadura, muitos hoje exercem o mando político. Eles esquecem o que significa um poder estatal que não concede os mais comezinhos direitos aos governados. Os palacianos usam falácias em favor de notórias ditaduras e regimes autoritários. Poderosos, tais grupos agem como se ignorassem os métodos das polícias e das autoridades iranianas (a força física sem peias) as eleições fraudadas, as torturas, censuras, perseguições a minorias. Revolta a consciência ética ouvir, de nossos dirigentes, que a repressão no Irã é problema interno. No Brasil do AI-5 as pessoas de bem jamais afirmariam que a negação do direito não seria tema de interesse universal. Sempre que um ser humano é espezinhado, morto ou perseguido, temos algo que interessa ao mundo. É dever ético condenar quem age de maneira oposta aos estatutos internacionais que penalizam os crimes contra as pessoas. O Brasil assinou vários tratados, sob a vigília da ONU, nos quais são vetadas a tortura, as mortes em nome do Estado, as perseguições a minorias étnicas, sexuais e políticas. Não cabe ao nosso governo olvidar tais compromissos, mesmo com a desculpa de interesses econômicos e geopolíticos.

Após a reeleição presidencial no Irã, ocorrida sob evidentes sinais de fraude, a violência se desencadeou contra os dissidentes. É insofismável o autoritarismo dos governantes iranianos. Mesmo uma das mais ferozes caçadas aos jornalistas naquele país não consegue esconder a face cruenta do regime teológico-político ali imperante. A situação preocupa os defensores dos direitos humanos, em prioridade mundial.

Existem coisas nas quais Deus e Diabo se enlaçam. Uma delas é a razão de Estado. Desde que tal prática surgiu, diz o pensador, devemos observar sua face de esfinge. Os intelectuais precisam se endereçar aos governantes, para que os últimos guardem na alma "Deus e o Estado, para não conceder predomínio ao Diabo, de quem eles não podem se desembaraçar totalmente" (F. Meinecke, A Idéia de Razão de Estado na História dos Tempos Modernos, 1924). Intelectuais e dirigentes da Alemanha concederam ao demônio - o interesse de Estado - um predomínio absoluto. Eles batizaram tal conúbio com o nome de "realismo político e diplomático" . Assim, abriram as portas das perseguições, censuras, assassinatos em nome do Estado cometidos pelo regime nazista, cuja obra prima diabólica foi o Holocausto. Quando Hitler cometia atrocidades, muitos dirigentes nacionais proclamavam que tudo, na Alemanha, era "problema interno" . Com a desculpa, eles foram cúmplices do massacre.

O Holocausto é negado pelo governante a ser acolhido no Brasil. Podemos lavar as mãos diante do regime atroz praticado no Irã? Ao constatar tal descaminho, perguntamos: se nossos atuais dirigentes voltassem aos anos 60 ou 70, diriam que tortura e cárcere são assunto interno? O presidente que nos visita escancara o seu entranhado antissemitismo e joga, assim, sobre nossas autoridades a suspeita de serem sucessoras de Gustavo Barroso. A prudência as levaria a evitar efusões de amizade em relação a quem blasfema e caçoa do genocídio praticado por um poder assassino. O povo brasileiro não aceita o antissemitismo, como não aceita poderosos que ignoram e impedem o respeito às mais elementares prerrogativas civis. Nosso governo apóia os direitos ou os ditadores?

Quem proclama que não existiu o massacre de seis milhões de judeus, quem afirma ser prioridade destruir Israel, quem pratica a repressão de seu próprio povo, não pode ser recebido em nosso país como aliado e, menos ainda, amigo. No caso da verdade histórica e dos direitos humanos, não existe neutralidade. Quem nega o Holocausto, mente contra a Humanidade. E o pretenso neutro cumpre o papel de cúmplice. Atenção minorias: se o Planalto festeja quem despreza direitos, é porque no seu programa a política breve será coerente com a praticada na diplomacia. O problema do Irã não é apenas dos judeus ou dos iranianos perseguidos por uma ditadura clerical. Ele é nosso.