quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Correio Popular de Campinas 11/11/2009

Publicada em 11/11/2009


Brasil: parceiro de tiranias?

Roberto Romano

A visita do presidente iraniano, sr. Mahmoud Ahmadinejad, levanta interrogações sobre a política externa de nosso país. Aquele mandatário conseguiu a reeleição com fraudes, violência contra os adversários, bênçãos de um clero autoritário. A “Guarda Revolucionária”, dirigida pelo general Mohammad Ali Jafari, abafou nas prisões, torturas e mortes de inocentes, os gritos dos oposicionistas. Desde então, recrudesceram os atentados aos direitos humanos no Irã.

Terras submetidas à tirania dificilmente podem ser parceiras e amigas de Estados onde ainda rege uma Constituição que assegura prerrogativas democráticas. Assusta a consciência civil brasileira, o trato caloroso do governo federal com o regime de Teerã. Quando o Executivo brasileiro afirma, sem pestanejar, que os massacres, torturas, violações dos direitos de expressão e de imprensa, constituem “problema interno” daquele país, precisamos avivar a memória nacional para situações exatamente iguais, vividas inclusive por grupos e pessoas que hoje nos administram.

No século 20 vivemos o pesadelo trazido por duas ditaduras que anularam as garantias dos cidadãos diante do Estado. Quando as prisões clamavam, os dirigentes eludiam toda e qualquer responsabilidade. Eles respondiam que tudo, nas queixas, não passava de “propaganda contrária à grandeza nacional”. É da época o nefando “Brasil, ame-o ou deixe-o”. E para sustentar tal propaganda, eles contavam com apoios de Estados estrangeiros. Apenas com a exasperação das violações foi iniciada uma corrente cosmopolita de solidariedade aos perseguidos.

Abro um documento anexado ao processo judicial-militar que sofri a partir de 1969. Após enumerar supostos crimes hediondos contra o Brasil e o seu Estado, a autoridade coatora afirma que ele (Roberto Romano e companheiros) “em consciência não tem autoridade moral para oferecer à imprensa internacional qualquer fato que venha desmoralizar o governo, insultar a justiça ou estigmatizar a polícia que, no cumprimento de seu estrito dever, defendeu a Democracia e a Formação Cristã do Brasil” (Autos do Processo, Prontuário número 146141, página 5, com carimbo do Arquivo Público do Estado, 2/março de 2009, com o necessário “Confere com o Original”). Vejamos a Sentença dos Juízes militares, seguidos de um juiz togado, no desfecho da lide: “Tudo o que se sabe desse moço, no curso do processo, é que a acusação que se lhe faz é totalmente improcedente”. E “nestas condições, não comprovada, por ausência absoluta de provas, a denúncia, resolve o Conselho julgá-la improcedente, para absolver frei Roberto Romano da Silva” (Autos do Processo, Sentença 207/69, A-77).

Quando existem juízes idôneos, o veredictum modifica as palavras dos acusadores, restitui aos réus a cidadania e os direitos suspensos. Mesmo em uma ditadura podem ser encontrados julgadores prudentes, garantindo os fiapos de lei que protegem os adversários do regime. O meu caso não foi regra, mas exceção no período. Sem o apoio do meu advogado, o grande dr. Mario de Passos Simas, de setores eclesiásticos liderados por Dom Evaristo Arns e dos movimentos internacionais em defesa dos direitos, eu não teria chegado ao julgamento, tantas foram as ameaças à integridade física e anímica dos presos.

No caso do Irã, a violação dos direitos humanos não interessa apenas aos iranianos, mas à humanidade. A nossa política internacional segue doutrinas desprovidas de cautelas prudenciais. Ela esquece o que se passou ainda ontem em nosso país. Quando pessoas que defendiam os direitos humanos se dobram aos ditames de supostas razões de Estado e acolhem, braços abertos, um ditador sob cuja responsabilidade a cidadania iraniana é massacrada, temos tudo para que se tolde a legitimidade dos mandatários brasileiros. Isolado, o carisma do presidente não lhe garante poder legítimo. Todos os ditadores da era moderna foram populares e usaram esse fato para gerar monstros políticos. Na visita do sr. Ahmadinejad temos a confissão dos governantes: se estivessem no poder a partir de 1964, aceitariam os procedimentos do regime.