segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Jornal do Commercio, Recife 11/10/2009

» RUMO A 2010
Governismo, um vírus incurável na política
Publicado em 11.10.2009
Final do prazo de filiação partidária para candidatos ao pleito do próximo ano revelou nova corrida de políticos em busca de melhores condições eleitorais. A maioria optou por siglas da base governista

Sérgio Montenegro Filho

smontenegro@jc.com.br

A fidelidade partidária definitivamente não faz parte da cultura política brasileira. O atrelamento à determinada legenda por questões ideológicas ou programáticas deu lugar a uma prática que vem nivelando por baixo toda a classe política: o governismo. Esse mal – que atinge tanto liberais como conservadores – representa o reverso da definição tradicional de política. Em vez de priorizar o interesse público, governantes e parlamentares miram, em primeiro lugar, a colheita de dividendos pessoais. A escolha de um partido, então, passa a ser feita visando, antes de mais nada, as facilidades para renovar o mandato.

A cada eleição, o vírus do governismo assola com mais força os políticos, sem discriminar partidos. Basta haver uma mudança de comando no Executivo. Em nível nacional, até o dia 2 de outubro, quando terminou o prazo de filiação partidária para candidatos ao pleito de 2010, nada menos que quatro senadores e 28 deputados federais trocaram de legenda, ignorando solenemente a regra estabelecida pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em 2007, segundo a qual o mandato pertence ao partido, e o parlamentar que mudar de sigla fica sujeito a perdê-lo para o suplente imediato.

Embora existam alguns registros na memória política, o governismo não é uma doença antiga. O vírus começou a ser disseminado nacionalmente a partir da redemocratização, com a restituição do pluripartidarismo e a dissolução de conceitos como esquerda e direita. Mas assumiu ares de epidemia a partir da gestão do presidente José Sarney (1985-90), que criou a política do “é dando que se recebe”, concedendo benesses aos parlamentares favoráveis ao governo. “Em sua gestão, Fernando Henrique Cardoso (PSDB) radicalizou essa técnica. E o governo Lula a aperfeiçoou”, diz o professor Roberto Romano, titular da disciplina de Ética e Política da Universidade de Campinas (Unicamp).

Para agravar a questão da falta de ideologias, a Constituição de 1988 tirou a autonomia dos Estados e fortaleceu a União. Um efeito cascata se abateu sobre a relação entre os municípios e os governos estaduais. E como o único modo de se fortalecer para garantir a reeleição – na ótica dos parlamentares – é levando obras e recursos para as suas bases, eles precisam do aval do governante da vez. “Deputados e senadores viraram meros transmissores de recursos do governo para as instâncias inferiores. E para isso, não precisam de ideologias. Eles são estafetas do Executivo, despachantes de luxo”, critica o estudioso.

Para Romano, há hoje uma irrelevância programática dos partidos que leva à diminuição da importância do Legislativo. “O próprio Parlamento permitiu a quebra da sua autonomia. Isso é perigoso, porque mesmo que não exista uma ditadura formal, cria-se uma ditadura de fato do Executivo”, adverte.

BRECHAS LEGAIS

Conselheiro da ONG Transparência Brasil, o cientista político David Fleischer, da Universidade de Brasília, vai além ao analisar o troca-troca partidário. Para ele, as mudanças registradas na reta final do prazo de filiação desmoralizaram a Justiça Eleitoral, porque ao estabelecer a regra da fidelidade partidária, em 2007, o TSE não previu normas mais rígidas para punir os infiéis. “O tribunal foi desafiado pelos políticos e ficou com a imagem arranhada. Até hoje, somente um parlamentar perdeu o mandato por infidelidade. A norma, então, parece inócua”, analisa o especialista, que enxerga várias brechas na resolução. “Todos esses parlamentares que trocaram de sigla já se articularam com advogados e prepararam suas defesas”, diz, prevendo poucas punições.

O mais grave, porém, na opinião de David Fleischer, não são as infidelidades individuais, movidas pelo vírus do governismo, mas as migrações de partidos inteiros, que ele classifica como “presidencialismo de coalizão”. De fato, várias legendas que integram hoje a base do governo Lula faziam oposição ao PT quando o País era comandado por Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Mas em 2003 e em 2007 – início de cada um dos mandatos de Lula – elas mudaram de posição política, deixando clara a inexistência de qualquer traço de ideologia ou conteúdo programático. “Em alguns países, como os Estados Unidos, um presidente precisa apenas do apoio de duas ou três legendas para governar. E elas normalmente têm uma identidade em comum. No Brasil, a base chega a ter quase vinte partidos diferentes”, observa. “O problema é que, depois das adesões, o governo fica comprometido com a coalizão, e precisa distribuir benesses para manter os novos aliados”, conclui.