segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Sobre golpes e golpistas.

Como a parolagem de hoje é sobre "golpes" e "golpistas", segue um trecho de artigo meu, na coletânea que publiquei chamada Ponta de Lança (São Paulo, Lazuli, 2006). Alguns conceitos podem ajudar o pensamento (boa parte dos que falam sobre Honduras não falam, uivam e mordem) sobre o problema dos golpes de Estado. RR


A Missa Negra de 1964

O golpe de Estado de 1964 repetiu um fenômeno antigo da vida política que atormenta os coletivos nacionais em toda a história da humanidade, desde o surgimento do poder juridicamente organizado. Platão analisa na República os golpes que determinam a passagem dos regimes, do aristocrático ao democrático e tirânico. Aristóteles resume a técnica das artimanhas contra a legitimidade política do seguinte modo: “de uma parte, o mundo é feito de artifícios e malícias e, de outra, os reinos são derrubados por meio de fraudes e finuras. Não seria ruim defendê-los com meios idênticos”. Após vencer a conjuração de Catilina, Cícero enuncia as frases que definem o ideal do governo justo, contra os que enxergam no poder apenas o seu interesse pessoal e, por semelhante motivo, ensaiam derrubar governantes: “O abandono da utilidade comum é contrária à natureza (…) A conservação do povo deve ser a lei soberana de todas as ações”. Luciano Canfora, historiador do pensamento político antigo e moderno, publicou um livro (traduzido no Brasil) em que são coletados os atos dos filósofos a serviço dos poderosos e de seus golpes. O título do volume é expressivo: Um ofício perigoso. (1) A antiguidade clássica conheceu, portanto, a prática, a noção e as justificativas teóricas dos golpes de Estado.

Mas é com a fundação dos Estados nacionais europeus, sobretudo a partir do século XV, que o problema do golpe assume características profundas e abala a própria idéia de poder legítimo. Maquiavel é uma fonte a ser lida, sobretudo pelos conselhos que ele dirige aos conspiradores imprudentes. Se o segredo é a exigência da ação estatal, o mesmo segredo deve ser reduplicado pelos que desejam derrubar governos. Tarefa quase impossível, numa empreitada golpista, manter a própria língua longe das orelhas dos que protegem o Estado. Maquiavel, com os seus pares da época, observa com extrema atenção os clássicos gregos e latinos, sobretudo um tratado de Plutarco, o De garrulitate, onde são apresentados todos os perigos da fala sem peias e o quanto esse vício perdeu vários conspiradores e governantes.

O continuador de Maquiavel nas reflexões sobre os atentados ao poder, com certeza responde pelo nome de Gabriel Naudé (1600-1653). Segundo Naudé, o golpe de Estado é “um conjunto de ações ousadas e extraordinárias que os príncipes são constrangidos a executar quando os negócios tornam-se difíceis ou desesperados, contra o direito comum, sem manter mesmo nenhuma ordem ou forma de justiça, ameaçando o interesse do particular pelo bem público”. (2)

Quando se fala em governo legítimo ou justo, também se toca num ponto espinhoso da filosofia política, bem anterior a Platão. Não por acaso, o filósofo inicia a República, o maior livro sobre ética e política do Ocidente, com o debate entre Trasímaco e Sócrates ao redor da legitimidade e da força. Governo e leis justos derivam do poder físico, enuncia Trasímaco. Se a monarquia é forte, ela é justa. Se a aristocracia e a democracia são fortes, o mesmo ocorre. Platão conduz todo o seu texto para negar essa tese, ancorado na idéia de que a justiça é um bem fugidio (Sócrates a compara a uma caça oculta num arbusto que deve ser surpreendida pelos homens) e que ela só pode resultar do saber e da técnica correta do governo.

Os pensadores do Renascimento, de Montaigne a Francis Bacon, deste a Maquiavel, todos buscam distinguir a força física (ao dispor do governante) e a legitimidade ostentada e, não raro, sem fundamentos sólidos. Daí a separação – ainda hoje polêmica – entre a moral dos homens comuns e a moral dos dirigentes.

Gabriel Naudé, a partir daquela separação entre as duas formas da moralidade, também distingue duas justiças. “Uma é natural, universal, nobre e filosófica”. A outra é “artificial, particular, política, feita e destinada às necessidades dos governos e dos Estados”. (3) Ou seja: na condução do Estado, a moral se inverte e deixa de obedecer aos parâmetros comuns. O governante hábil não pode ser preso pelos limites legais e pela tradição de legitimidade dos títulos, usos e costumes.

Da nova licença atribuída ao governante surge a noção moderna de golpe de Estado. Segundo Naudé, naqueles golpes tudo é invertido em relação à normalidade (do direito, da economia, dos valores). O autor chega a dizer que no ato político do golpe, o efeito precede a causa e o esperado não se produz. Cito o próprio escritor renascentista: “nos golpes de Estado, vemos a tempestade cair antes dos trovões; as matinas são ditas antes que o sino toque; a execução precede a sentença; tudo se faz ao modo judaico; (…) um indivíduo recebe o golpe que imaginava dar, outro morre quando pensava estar em segurança, um terceiro recebe o golpe que não esperava; tudo ocorre à noite, no escuro e entre névoas e trevas”. Entre as frases terríveis de Naudé, recolho a mais bruta: “a execução precede a sentença”. Do governante derrubado aos seus apoiadores ou supostos cúmplices, o golpe de Estado elimina o direito a um julgamento segundo regras estabelecidas. Eles são punidos primeiro e depois sentenciados pelos novos dominantes.

Note-se também a forma das frases, em Naudé: o golpe de Estado inverte os valores jurídicos, religiosos, morais. Chrétien-Goni,comentador contemporâneo, lembra a insistência de Naudé na forma subvertida dos golpes. Tudo se faz, naqueles atentados ao direito público e particular, de trás para frente. Essa é uma característica das liturgias diabólicas, como nas missas negras, onde a cruz é posta de cabeça para baixo e a cerimônia é lida de trás para frente. (4)

A repugnância trazida contra o satanismo dos golpes faz com que a sua maioria seja denominada, pelos seus promotores, como um contragolpe preventivo. Foi esse o procedimento adotado pelos insubordinados de 1964. A terminologia é muito importante nos momentos graves da vida política. Assim, para fugir da sombra negra que segue todo golpe, o de 1964 foi apresentado como algo que impediria a tomada do poder pelos “subversivos” (socialistas, comunistas, sindicalistas) e garantiria o verdadeiro regime democrático. Em vez de golpes, os militares e civis brasileiros contrários ao governo Goulart ordenariam uma “revolução”.

Esse é o sentido inteiro do Ato Institucional nº 1, atribuído na sua maior parte a Francisco Campos. Diz o início daquele texto: “O que houve e continuará a haver neste momento, não só no espírito e no comportamento das classes armadas, como na opinião pública nacional, é uma autêntica revolução”. Assim, caem por terra as noções de legitimidade e de soberania vigente. Arremata o texto que assegurou longos anos à ditadura militar: “A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constitucional. Este se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais expressiva e radical do Poder Constituinte.Assim, a revolução vitoriosa, como o Poder Constituinte, se legitima por si mesma (...) Ela edita normas jurídicas, sem que nisto esteja limitada pela normatividade anterior à sua vitória (…) Fica, assim, bem claro que a revolução não procura legitimar-se através do Congresso. Este é que recebe deste Ato Institucional, resultante do exercício do Poder Constituinte, inerente a todas as revoluções, a sua legitimação’’ (5)

Francisco Campos, intelectual de triste memória para os brasileiros democratas e redator da famosa “Polaca” – a Constituição autoritária imposta à nação em 10 de novembro de 1937 –, conhecia perfeitamente os enunciados de Carl Schmitt. Este último, autor do importante livro A ditadura, das origens da idéia moderna de soberania à luta de classes proletárias (1921), descreveu a lógica dos golpes de Estado e das normas impostas pelos que sobem ao poder por seu intermédio. (6) É dele também a mais famosa fórmula do golpe de Estado: “Soberano é quem decide sobre o estado de exceção”. (7) O jurista germânico polemizou contra Hans Kelsen: ao contrário do que afirma o positivista jurídico, o problema da soberania ainda existe no mundo moderno (8). Mas Schmitt, coerente crítico da soberania exercida pelos Parlamentos, na encruzilhada supostamente sem esperanças do sistema representativo, (9) acentua o poder do Chefe do Estado, o protetor da Constituição que exerce a soberania acima dos entraves da legalidade e das regras. O dirigente opera segundo a lógica da excepcionalidade. Em O Protetor da Constituição,(10) encontra-se a referência ao Poder Moderador, tal como definido no Império Brasileiro, como um dique contra a soberania popular e contra o que dela sobrou após as Revoluções Francesa e Americana. A importância do poder moderador situa-se, justamente, no controle da soberania popular ou das pretensões parlamentares.

O ponto importante, nos textos de Schmitt que se refletem na justificativa “jurídica” do golpe em 1964, sobretudo a partir do Ato Institucional nº 1, encontra-se na sua defesa da exceção como elemento mais relevante do que a regra (defendida pelos liberais). A exceção, ao mesmo tempo em que nega a soberania popular ao modo jacobino, permite a Schmitt o retorno a Thomas Hobbes. Schmitt, e seus êmulos brasileiros, encontram em Hobbes o estratagema ditatorial sempre apto para ser usado por todos os que negam a forma democrática. Em Hobbes, julga Schmitt (se ele tem razão ou está desprovido de fundamentos, apenas os especialistas em Hobbes podem dizer), existiria a tese de um “governo que pode se reclamar da necessidade concreta, do estado das coisas, da força da situação, para outras justificações não determinadas pelas normas, mas pelas situações (...). Isso encontra o seu princípio existencial na adequação ao fim, na utilidade (...) na conformidade imediatamente concreta das suas medidas”. (11)

A ditadura, resposta adequada para um estado de exceção, não precisa da legitimidade ao modo antigo e prescinde da legalidade positiva, ao modo de Kelsen e dos liberais. Sua força reside no fato de que ela emerge na crise, quando as formas jurídicas não garantem o povo e o Estado. Essa doutrina encontra-se na essência da idéia de “revolução” que justificou o golpe em 1964. Além de ser-lhe atribuída o mister de contragolpe preventivo, com o fim do governo legítimo, nele proclamava-se uma nova soberania, não mais advinda do povo, não mais adstrita ao Parlamento, não mais sujeita à legalidade, mas cuja fonte era o próprio soberano que, pelo golpe, apodera-se do Estado. Daí que o Parlamento e toda outra ordem jurídico-político receberia sua existência e razão de ser do novo soberano. Os resistentes deveriam ser banidos da vida pública nacional. Essa é a lógica da “depuração” do Parlamento, com as cassações de parlamentares, catedráticos, etc., e de todos os atos seguintes do poder militar.

Notas


(1) São Paulo, Ed. Perspectiva, 2003 (trad. Nanci Fernandes e Mariza Bertoli)

(2) NAUDÉ, Gabriel. Considerations politiques sur le coups d’etat. Roma, 1639. Georg Olms, Ed. 1993.

(3) Naudé, citado por Chrétien-Goni, Jean-Pierre: “Institutio Arcanae”, in: Lazzeri, Christian e Reynié, Dominique: Le Pouvoir de la raison d´ État, Paris, PUF Ed, 1992, p.

(4) Chrétien-Goni, Jean-Pierre. op. cit. pp. 139-140.

(5) Para uma análise jurídica percuciente desse ponto, cf. Dr. Carlos Fernando Mathias de Souza, da Universidade de Brasília: “Evolução histórica do Direito brasileiro (XXX): o século XX” no endereço eletrônico : http://www.unb.br/fd/colunas_Prof/carlos_mathias/anterior_28.htm

(6) Die Diktatur. Von den Anfängen des modernen Souveränitätsgedankens bis zum proletarischen Klassenkampf – Munique/Leipzig, Duncker &Humblot Ed., 1928 (2a ed.). Como estigma contra os brasileiros, a terceira edição daquela obra foi editada na Alemanha exatamente em 1964.

(7) “Souverän ist, wer über den Ausnahmezustand entscheidet”. Esta é a primeira frase do escrito sobre a teologia política de Carl Schmitt. Cf. Politische Theologie. Vier Kapitel zur Lehre von der Souveranität. Munique, Duncker & Humblot, 1934. O enunciado apresenta-se não apenas em autores da chamada “direita” internacional, mas também em textos da “esquerda”, como em Walter Benjamin. Tem toda razão Jean Pierre Faye, lingüista e teórico do pensamento totalitário, quando refere-se à uma “ferradura” terminológica que reúne os vários matizes da paleta ideológica. Durante o nazismo, com a “colaboração” entre URSS e Alemanha, chegou a ser cunhada a expressão tremenda: “nacional-bolchevismo”. Mas estas são análises que devem ser feitas em outras ocasiões.

(8) Kelsen, em Das Problem der Souveränität, no contexto amplo das relações jurídicas – internacionais sobretudo – diz que “o conceito de soberania deve ser radicalmente eliminado”. Uso a tradução italiana: KELSEN, Hans : Il problema della sovranità. Milano, Giufrrè, 1989.

(9) Cf. Die geistesgeschichtliche Lage des heutigen Parlamentarismus. Munique, Duncker & Humblot Ed., 1926. Existe uma edição brasileira do texto: SCHMITT, Carl. A crise da Democracia Parlamentar. Trad. Inês Lohbauer, São Paulo, Scritta Ed., 1996.

(10) SCHMITT, Carl. Der Hüter der Verfassung. Texto ideado em 1929, mas publicado mais tarde. Uso a edição de 1969 (Berlim, Duncker & Humblot).

(11) Cf. Schmitt, Carl: Legalität und Legitimität (1932). Cito na tradução italiana: Le categorie del ‘politico’. Bologna, Il Mulino, 1972, p. 217.