quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Correio Popular de Campinas, 26/08/2009

Publicada em 26/8/2009


O Estado novíssimo

Roberto Romano

“Não achamos que o Parlamento é um fim, ele é um meio. E vamos tentar utilizá-lo até onde for possível. Na medida em que a gente perceber que, pela via parlamentar, pela via puramente eleitoral, você não conseguirá o poder, eu assumo a responsabilidade de dizer à classe trabalhadora que ela tem que procurar outra via” (Lula). Tais frases foram emitidas pelo então candidato do PT, o partido angélico. O impávido campeão da ética assim parolava em longa entrevista ao jornal Folha de São Paulo em 29/12/1985. O vezo autoritário brota em cada parágrafo daquela entrevista, o que não deixei de verberar em artigo (“O Senhor da Razão”, 4/1/1986), publicado no mesmo jornal.

O santo sem máculas, à semelhança de todos os militantes petistas de então, elevou sua voz contra os corruptos de todos os matizes e faces. O mundo bandido da política não merecia o PT, pois todos os líderes dos partidos burgueses seriam “farinha do mesmo saco”. Só o PT seria ético, só nele estaria depositada a sorte dos pobres e desvalidos. Só nele haveria salvação contra a desordem burguesa e corrompida. Na mesma entrevista, contrária aos mecanismos do Estado democrático de direito (muito reacionário e safado no entendimento dos santos petistas) o Chefe insinuava a mais do que possível chamada às armas de fogo para impor um programa socialista e virtuoso. Em semelhante contexto lógico e retórico se instalam as frases com que iniciei este artigo.

Leitores amigos e inimigos, prestem bem atenção naqueles enunciados. Em primeiro lugar, o Robespierre patrício diz, com todas as letras, o seu entendimento do sistema parlamentar de governo. Ao contrário dos liberais, dos democratas e mesmo dos socialistas marcados com a pecha de “reformismo” pelos militantes do PT, Lula define o Parlamento como instrumento, meio para os fins da sagrada agremiação petista. Um meio é usado, ou abusado, tendo em vista alvos tidos como superiores. Como o Parlamento não tem uso na revolução petista (recordo que esta última poderia ser inclusive armada, para acabar com o modo de produção determinada pelo capitalismo, assim falou Lula) sempre que o Congresso deixasse de ser utensílio do PT, o Chefe enunciaria o que o “povo” deve fazer.

Não prosperou a luta armada, no interior do petismo. Nele, é claro, em muitos setores, as brasas belicosas ainda ardem sob as cinzas da farsa eleitoral.

Mas uma arma poderosa se acrescentou aos encantos petistas: o dinheiro da burguesia cúmplice de seu próprio assassinato e a propaganda garantida pelo mesmo dinheiro. Volto à entrevista do profeta que ameaçava se tornar armado: na fala de Luiz Inácio, as armas da retórica (“Quero que me dêem meia hora para mim na televisão (…) e vamos ver quem tem condições de convencer a opinião pública”- Lula...) unem-se à cuidadosa exclusão dos “inimigos” (“Você pode excluir o grande empresário, a multinacional, mas você precisa discutir se vai excluir o pequeno e médio proprietário do campo e da cidade …” - sempre Lula…).

O chefe descobriu um jeito incruento de realizar os seus fins no governo ao unir dinheiro, propaganda e cooptação dos pobres. No Palácio do Planalto, ele iniciou a estudada corrosão do Legislativo, sobretudo nas partes daquele poder que não se curvam aos seus fins, os de perenizar a si mesmo e ao seu grupo no mando. Vimos o Executivo adquirir votos no Congresso distribuindo nacos do orçamento pelas oligarquias regionais. Deu no mensalão. Assistimos, na estratégia de salvar o ex-presidente Sarney, o ataque último contra o Congresso. A subserviência dos senadores ajudou a liquidar toda a legitimidade do Parlamento. Então, leitor, não acuse o presidente de incoerência. Jogue essa crítica contra os empresários míopes que financiam suas campanhas. Desde a entrevista citada, Lula mantem sua lógica: o sistema representativo é apenas um instrumento que, depois de usado, deve ser posto na lata de lixo com os seus trezentos picaretas. Desde 1985 já se anunciava, na boca do líder, uma ditadura do Executivo. Com o que se passou nesta semana, bem-vindos ao Estado novíssimo!