quarta-feira, 29 de abril de 2009

Correio Popular de Campinas, 29 de abril, 2009

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O Supremo e sua dignidade.

Para o Dr. Mário Simas, advogado.

Após uma aula na Unicamp, sobre as bases do Estado moderno, abro as memórias do grande Evandro Lins e Silva. O volume tem nome bonito: O Salão dos Passos Perdidos. (Nova Fronteira Editora, 1997). A expressão designa o espaço onde as partes e os advogados aguardam as decisões dos tribunais. Em todas as suas formas semânticas, aquele nome se une ao poder. Andar de lá para cá, abrir sendas imaginárias no frio mármore palaciano, trocar alí a esperança pelo desconsolo, insistir na defesa dos direitos, é destino dos advogados. Defensores da lei e dos indivíduos ousam lutar pelos sem remédio, sem força e poderio, e sofrem perseguições grosseiras ou sutis. E não desistem. Quando lhes sobra alento, retornam aos passos perdidos. Quem sabe, pensam, livrarei meu cliente de garras injustas, talvez o ajude a redimir erros com o retorno à obediência legal? Talvez o juiz recorde que, além de executor da vontade legislativa, ele representa a equidade ? Quem sabe? Quem sabe?

O advogado entra nas cadeias, corre perigos, sofre com o acusado, emprega retórica, técnicas jurídicas, meios inusitados para provar a inocência ou a simples humanidade dos que dependem do seu saber forense. Ele também recebe ameaças, calúnias, incompreensão da “boa sociedade” com seu maniqueísmo impiedoso. Ele é o inimigo dos ditadores, dos totalitários. Seus passos nunca são perdidos. Na derrota, o advogado ensina que a lei não é ídolo e deve ser administrada com respeito à dignidade humana. O advogado traz a esperança e o calor da justiça aos corações. E assim foi Lins e Silva, em longos anos de advocacia, magistratura, batalhas em salões dos passos perdidos.

As páginas voam diante dos meus olhos, espantados com a sublime estatura ética do personagem. Chego ao lugar em que ele narra sua presença no Supremo Tribunal Federal. Acusado de subversão, ele quase não entrou para o “Excelso Pretório”. Quando lá estava, o nanismo ético exigiu a sua expulsão. A descrição das tormentas em sua vida pública é exemplo de coragem, lucidez, bondade.

Anoto passagens problemáticas ou equívocas. Quando chego à descrição da crise vivida pelo STF no governo Goulart, o lápis cai sobre o assoalho.Eu acabara de assistir uma cena tremenda: as falas de Gilmar Mendes e seu colega, Joaquim Barbosa. Um acusa o outro de pensar em termos de classes sociais e não no campo do direito. O outro, proclama que seu oponente é proprietário rural, dirige capangas e, na mídia, anula a justiça. Se for verdade o que ambos afirmam, os dois magistrados não operam como juízes. Eles podem ser ditos líderes políticos, similares aos que atuam no Congresso. E que Congresso!

Diz Lins e Silva, sobre o STF de seu tempo: “Os ministros decidiam juridicamente, de acordo com a lei, e, é claro, punham também a sua posição política no voto. Ninguém pode deixar de colocar nos seus gestos, nas suas atitudes, os seus pensamentos, as suas convicções políticas. Seja escrevendo um artigo de jornal, seja dando um voto no Supremo Tribunal Federal, a pessoa externa uma posição política” (pp, 377-378). E o narrador evoca, com respeito imenso, o presidente do STF Ribeiro da Costa que, “todos sabem, tinha muitas ligações com os grupos da UDN, era até ligado à Revolução. Também era filho de general, os irmãos eram coronéis”. Mas tal homem tinha “dignidade e altivez. Ele foi um juiz que esteve à altura do momento histórico em que teve de desempenhar o papel de presidente do Supremo”.

Lins e Silva teve sua aposentadoria decretada pelos militares, com apoio de parcela obscurantista da imprensa paulista. Morreu sem que o Estado restaurasse a sua dignidade ofendida. Mas identificou em Ribeiro da Costa, contrário às suas idéias, a correta altivez na pior tormenta histórica. Os atuais integrantes do Supremo leram, algum dia, o testemunho deste juiz que honra, em companhia do grande advogado Mario Simas e de tantos mais, a sociedade brasileira? Se os conhecem, porque não os imitam? Depois do entrevero no Supremo, a cidadania repete, desconsolada, a pergunta: “Existem juízes em Brasília” ? Com os ministros, a réplica.