domingo, 22 de março de 2009

Instigante entrevista de Hans Küng

Hans Küng e Joseph Ratzinger, depois o bispo Ratzinger, tal como ele enxerga o mundo, depois...







22/03/2009 - 00h01

"Roma quer ter sempre razão", diz teólogo crítico do papa Bento 16

El País
Juan G. Bedoya
Em Madri
Hans Küng, um dos grandes pensadores contemporâneos, chega a Madri para apresentar a segunda parte de suas memórias, com o título de "Verdade Controvertida", editada pela Trotta. É sobretudo um relato de suas disputas com a hierarquia católica, especialmente com o atual pontífice romano, Joseph Ratzinger. Os dois trabalharam para o Concílio Vaticano 2° (1962-1965) convidados por João 23 como peritos e coincidiram mais tarde, muito amistosamente, na faculdade de teologia de Tübingen, Alemanha. Tiveram uma discussão de altos voos teológicos, que os catapultou para a fama internacional, Ratzinger como o grande inquisidor e Küng como referência universal da ciência teológica, com tiragens milionárias de seus livros.

Hans Küng (nascido em Sursee, Suíça, em 1928) responde a El País depois de participar de um "belo banquete do presidente federal alemão, Horst Köhler, em honra aos 90 anos do ex-chanceler Helmut Schmidt". Famoso e respeitado, ele é mimado pelas autoridades alemãs com frequência, e o teólogo suíço aceita isso quase como uma revanche do destino.

El País - Há pessoas que dizem ter sentido "dores físicas" lendo o relato de suas atribulações diante de Roma. Como é possível que uma instituição que invoca continuamente o amor ainda trate assim muitos de seus melhores teólogos?
Hans Küng - Também para mim foi difícil escrever cena após cena. Mas embora doloroso era necessário que, em nome da verdade, ficasse constância de tudo isso, tal como transcorreu da perspectiva do afetado. Espero que o leitor não perceba um desejo de ajustar contas e desprezo, mas sim decepção e tristeza. Mesmo dando nome às responsabilidades, eu quis evitar ataques pessoais e ajustes de contas vingativos.

EP - Na Espanha se diz que quem ri por último ri duas vezes.
Küng - Na Alemanha também. Depois da Sexta-feira Santa vem a Páscoa. Não é o banal "ri melhor quem ri por último", para que fique patente quem ganhou. Não. Refiro-me ao riso redimido da Páscoa que me foi presenteado, um riso que se baseia em uma fé alegre e que leva pela mão a esperança.

EP - As disputas eclesiásticas parecem uma luta de poder.
Küng - O problema não é que haja disputas; às vezes é conveniente que haja. Disputas pela verdade, é claro. Tudo depende de com que meios se dirime, e se a disputa pela verdade é travada com veracidade e jogo limpo. Especialmente na Igreja, a disputa pela verdade não deveria degenerar nunca em uma luta pelo poder, sustentada com meios violentos, seja mundanos ou espirituais. Mas de uma ou outra forma Roma sempre quer ter a razão. Para ela, um só dissidente sem sanção que mostre que também se pode pensar de outro modo põe em risco todo o sistema.

EP - O senhor é um homem famoso e escutado onde quer que vá, também tem poder.
Küng - Está fora de qualquer dúvida que o cientista também tem poder. O filósofo inglês Francis Bacon já formulou isso no século 18. Não se tratava de abolir simplesmente o poder [do papa]. Nunca reivindiquei tal coisa. Seria ilusório na Igreja. Mas é preciso relativizar o poder a partir da consciência cristã, e utilizar esse poder não para dominar, mas para servir.

EP - O primeiro volume de suas memórias se intitulou "Liberdade Conquistada". Este de agora, "Verdade Controvertida". Falta fazer a memória do último terço de sua vida (a partir de 1980, isto é, quando completou 52 anos). Já tem título para esse período?
Küng - Tenho vários títulos em estudo. Mas ainda não os amadureci o suficiente para divulgá-los. Além disso, não sei se não terei de escrever essa última parte de minha autobiografia no céu.

EP - Quando João Paulo 2º morreu o senhor esperava a eleição de um papa que retomasse o espírito de João 23 e do Vaticano 2º. Ganhou Ratzinger. Deixará marca?
Küng - Ratzinger não era meu candidato ideal, como ele sabe. Mas nossa conversa amistosa de quatro horas em Castel Gandolfo [a residência de verão do papa] em 2005 despertou em mim a esperança de que não manteria o rumo do inquisidor retrógrado, mas desenvolveria pelo menos algumas reformas, na linha do Concílio Vaticano 2º. No entanto, até agora seu pontificado decepcionou cada vez mais muitos católicos. Temo que, como no caso de Paulo 6º e sua encíclica "Humanae vitae", de Bento 16 se recordem sobretudo seus graves erros.

EP - Hoje há menos pressão sobre os teólogos livres do que quando Ratzinger presidia a Congregação para a Doutrina da Fé?
Küng - Até o momento ele só buscou a reconciliação com grupos dissidentes cismáticos, anticonciliares, antiecumênicos e antimodernos da extrema-direita. Com as sanções a teólogos como Jon Sobrino e Roger Haight prosseguiu a velha práxis do antigo Santo Ofício. Se realmente lhe importa tanto a reconciliação, poderia se reconciliar, por exemplo, com a teologia da libertação latino-americana.

EP - O perdão papal chegou para os lefebvrianos, considerados a extrema-direita eclesiástica.
Küng - Já em 1977 o arcebispo cismático Lefebvre disse em uma entrevista que "o novo cardeal Ratzinger se propôs intervir diante do papa para possibilitar uma solução". Posteriormente, como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, ele manteve um contato ininterrupto com os lefebvrianos. Sem dúvida, do ponto de vista de sua mentalidade, sente-se próximo a muitas de suas inquietações, mais próximo deles em qualquer aspecto do que de nós, os teólogos reformistas. E considerou que agora havia chegado o momento adequado para levantar a excomunhão. Agora afirma que o caso Williamson eclipsou esse gesto positivo de reconciliação. Naturalmente, não ignorava que todo o grupo tinha uma orientação antijudaica e antimoderna. Acreditava que pudesse fazer vista grossa sobre tudo isso. A indignação mundial o pegou totalmente de surpresa. Agora leva o assunto de forma muito pessoal, quando teria de se responsabilizar por ter tomado uma decisão equivocada. Não só teria de admitir seus erros como manter essa excomunhão.

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves