sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

São Paulo, sexta-feira, 30 de janeiro de 2009



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Decisão de comitê contradiz todas as alegações de Tarso

Órgão do ministério afirmou que temor de perseguição a Battisti não se sustenta

Decisão do ministro, que tem poder para rever as determinações do Conare, contrariou tudo o que o órgão havia argumentado

ANDRÉA MICHAEL
FELIPE SELIGMAN
LUCAS FERRAZ
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Em um documento de 16 páginas, os integrantes do Conare (Comitê Nacional para os Refugiados) justificam a negativa de status de refugiado a Cesare Battisti afirmando que Justiça italiana é democrática e respeita os direitos humanos, que não há "nexo causal" entre a perseguição alegada por ele e o pedido de refúgio e que não caberia ao órgão, vinculado ao Ministério da Justiça, definir se os crimes atribuídos a ele foram ou não "políticos".
A Folha teve acesso ao processo sigiloso do comitê -ontem o Supremo Tribunal Federal pediu uma cópia dessa decisão. Os argumentos do documento foram ignorados por completo pelo ministro Tarso Genro (Justiça), que reverteu o entendimento do órgão e concedeu o refúgio a Battisti.
O Conare é um órgão interministerial formado por conselheiros de diversas áreas do governo e da sociedade civil. Suas deliberações, conforme prevê a lei, podem ser revistas pelo ministro da Justiça -como ocorreu com Battisti. Mas isso é raro: desde a criação do comitê, em 1998, houve revisão em só 25 de 2.026 casos de refúgios.
A decisão do Conare de negar o pedido de refúgio a Battisti ocorreu em novembro, mas não foi unânime. De cinco conselheiros, três optaram pela negativa e dois pela concessão do refúgio. Votaram contra Luiz Paulo Barreto, presidente do comitê e secretário-executivo do Ministério da Justiça; Gilda Santos Neves, do Itamaraty; e o delegado Antônio Carlos Lessa, da PF, outro órgão subordinado ao ministro.
O principal argumento apresentado por Tarso é que o italiano "possui fundado temor de perseguição por suas opiniões políticas". Para os conselheiros do Conare, porém, "não há como considerar que na Itália não vige um sistema jurídico capaz de resguardar a vida daqueles que cumprem pena em seus cárceres". Acrescenta que o país é democrático, com o funcionamento normal de suas instituições, e que não há violações aos direitos humanos.
Os argumentos de Tarso, se comparados à decisão do Conare, representam mudança radical na interpretação dos fatos. O ministro afirma que a situação de Battisti na França, onde viveu por mais de uma década, foi alterada com "a mudança de posição do Estado francês, que havia lhe conferido guarida". A França concordou com sua extradição.
Já o Conare entendeu o contrário. "Se for feita uma análise real da situação do senhor Cesare Battisti, verifica-se que o mesmo foge da condenação desde 1981." E mais: "A Justiça italiana buscou a sua extradição desde o início, perpassando por diversos governos".
Em sua decisão, Tarso cita pensadores como Norberto Bobbio e Hannah Arendt, mas pouco se atém às decisões judiciais da Itália, referendadas anos depois na França e pela Corte Europeia de Direitos Humanos. O Conare reproduz despacho do último tribunal, no qual o italiano teve "direito de defesa e estava informado sobre a acusação contra ele".
O Conare se nega a avaliar se são políticos os crimes atribuídos a Battisti, dizendo ser essa "competência exclusiva" do STF, diz que não cabe a ele "instaurar" novo julgamento e atesta a legalidade do processo.

Quanto às pressões da Itália para que o Brasil extraditasse Battisti, que agora tanto tem incomodado autoridades brasileiras, os conselheiros do Conare concluíram que a atitude era um "direito legítimo de qualquer Estado que pretende ver cumpridas as suas decisões, como o faz da mesma maneira o governo brasileiro, sem que se caracterize constrangimento à soberania de outros país".


São Paulo, sexta-feira, 30 de janeiro de 2009




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Texto do Conare é contraditório, diz ministro

DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

O ministro da Justiça, Tarso Genro, disse ontem que a decisão do Conare que negou o pedido de refúgio a Cesare Battisti, em novembro, tem "contradições" e deixa dúvidas sobre a concessão do status ao italiano.
Ele disse ainda que é "perfeitamente natural" a radical mudança dos argumentos do comitê para sua decisão: "Trata-se de interpretação de fatos e conexão deles com a lei. Isso ocorre todos os dias no Poder Judiciário", disse por telefone de Belém, onde participa do Fórum Social Mundial. "Toda reforma de sentença é radical."

Ele se disse descontente com a decisão do Conare, ligado ao Ministério da Justiça e presidido pelo secretário-executivo de sua pasta, Luiz Paulo Barreto.

"Os fundamentos do Conare não estão devidamente conectados com a lei. Foi essa a conclusão a que cheguei." A principal diferença entre uma decisão e outra é sobre o "nexo causal" entre o pedido de refúgio e a perseguição alegada por Battisti, que ele julgou existir, mas que teria sido desconsiderada pelo comitê. "Quando existe dúvida, o Conare deveria decidir em sentido contrário, porque a dúvida beneficia a pessoa que está em busca do refúgio."
Ele também falou sobre o futuro do caso Battisti, agora sob responsabilidade do Supremo Tribunal Federal, no qual tramita processo de extradição solicitado pela Itália. Tarso entende que, se a Corte aplicar os mesmos critérios adotados em outros pedidos semelhantes, sua decisão será mantida.
"Se o STF disser que a decisão administrativa não interrompe o processo de extradição, a consequência é que o refúgio não será mais uma prerrogativa do Executivo, passará a ser do Judiciário". O ministro defende a atual lei, que considera correta: "Decidindo isso, todos os refúgios podem ser decididos pelo STF. Será uma inovação em relação a toda a tradição jurídica do país".

A Constituição dá ao presidente da República o poder de autorizar ou não a extradição de estrangeiros, independentemente da decisão do Supremo.

São Paulo, sexta-feira, 30 de janeiro de 2009




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Dez testemunhas embasaram condenação

Decisões das Justiças da Itália e da França e da Corte Europeia mostram que foi assegurado ao italiano amplo direito de defesa

Tarso havia argumentado que condenação foi baseada em um único depoimento e dito ter "profunda dúvida" sobre o processo legal


DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

A análise de cinco decisões proferidas pelas Justiças da Itália e da França e pela Corte Europeia de Direitos Humanos, relacionadas a Cesare Battisti, revela que sua condenação à prisão perpétua pela prática de quatro homicídios teve como base o depoimento de pelo menos dez testemunhas e também que a ele foi assegurado amplo direito de defesa ao longo dos processos judiciais.
A Folha obteve cópia dos documentos, que fazem parte do processo, em tramitação no STF (Supremo Tribunal Federal), no qual o governo italiano pede ao Brasil a extradição de Battisti pela prática de crimes comuns, que pela legislação nacional seriam hediondos.
As decisões não convenceram o ministro da Justiça, Tarso Genro, que concedeu status de refugiado ao italiano por entender que há "fundado temor de perseguição" política e "profunda dúvida" de que o julgamento do ex-militante de extrema esquerda seja fruto do devido processo legal.
Na decisão do Tribunal de Apelação de Milão, que em 1990 confirmou decisão na qual Battisti foi condenado à prisão perpétua pela prática de quatro assassinatos em situação de crime comum, são citados os depoimentos de pelo menos dez testemunhas, além do também militante Pietro Mutti, bem como dados colhidos em investigações policiais ocorridas na época dos fatos.
Para Tarso, no entanto, as condenações do italiano foram baseadas "em uma testemunha de acusação", em referência a Mutti, que, como Battisti, militava no movimento terrorista de esquerda PAC (Proletários Armados pelo Comunismo). O ministro acusou a falta de provas periciais que justificassem a condenação.
Ao ler a decisão judicial e entrevistar ontem o juiz que investigou o caso na época, o hoje procurador-adjunto da cidade de Turim, Pietro Forno, a reportagem identificou as seguintes testemunhas que, mediante benefícios da lei de delação premiada, contribuíram com informações para os processos que levaram à condenação de Battisti: Maria Cecilia "Barbetta", Enrico "Pasini Gatti", Marco "Barbone", Maurizio "Ferrandi", Santo "Fatone", Marco "Donat-Cattin", Antonio "Cavallina", Maurizio "Mirra", Giuseppe "Memeo" e Marina "Premoli".
Em sua maioria, eram integrantes da organização Prima Linea, que acolheu militantes do PAC após sua extinção.
Maria Cecilia Barbetta, por exemplo, contou que "soube do [próprio] Cesare Battisti do homicídio de [Antonio] Santoro, ou melhor, de sua participação no homicídio do Santoro, muito tempo depois do fato". Ela disse ainda que Battisti "falava sobre a impressão que se sente ao disparar em uma pessoa, ao ver sair o sangue".
Agente penitenciário, Santoro, a primeira das quatro pessoas assassinadas por Battisti, segundo a Justiça italiana, foi morto a tiros na cidade de Udine, em 6 de junho de 1978.
A morte do também policial Andrea Campagna, em Milão, no dia 19 de abril de 1979, teve como testemunha o militante Santo Fatone. De acordo com o procurador Forno, Fatone atuava com Battisti no PAC e seu testemunho foi fundamental para elucidar o caso.
Disse Fatone à Justiça: "A preparação do homicídio foi efetuada pelos companheiros que ficaram em Milão, ou seja, Battisti, [Giuseppe] Memeo, Lavazza, Bergamin e La Marelli, e pessoas próximas a Memeo que não saberei precisar".
Ainda sobre o assassinato de Campagna, constam da decisão do Tribunal de Apelação de Milão referências a "investigações da polícia realizadas logo após o delito" e relatos "prestados por testemunhas inquiridas na imediação dos fatos". Os dados colhidos coincidem com o depoimento de Mutti.
Os dois outros homicídios atribuídos a Battisti ocorreram em 16 de fevereiro de 1979 e vitimaram o açougueiro Lino Sabbadin e o joalheiro Pierlugi Torregiani.


França

Para derrubar na Justiça francesa a concessão de sua extradição para a Itália, Battisti disse ser vítima de perseguição política e que não lhe fora assegurado direito a defesa.
Ambos os argumentos foram refutados pelos magistrados franceses em três instâncias judiciais. Para o Conselho de Estado (segunda instância), Battisti "não tem motivos para afirmar que a extradição tenha sido pedida com finalidades políticas" e "beneficiou-se em todas as fases de um processo longo e complexo da defesa de advogados por ele escolhidos".
Diantes das negativas da Justiça francesa, Battisti recorreu à Corte Europeia de Direitos Humanos, em Estrasburgo (França). Novamente teve refutados os seus argumentos e confirmada a extradição, em 12 de dezembro de 2006, quando já vivia clandestino no Brasil.
A corte entendeu que era lícito "concluir que o requerente [Battisti] tinha renunciado de maneira inequívoca a seu direito de comparecer pessoalmente e de ser julgado em sua presença".

(ANDRÉA MICHAEL, FELIPE SELIGMAN E LUCAS FERRAZ)