quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Correio Popular de Campinas, 31 de dezembro de 2008

Publicada em 31/12/2008


Para entender Carl Schmitt (5)

Roberto Romano

Os propagandistas da URSS usaram e abusaram de um recurso gráfico para apagar atos e pessoas incômodos. Fotos recebiam retoques, arrancando do cenário indivíduos e grupos não mais gratos ao regime. O procedimento é comum na história dos livros. Algo irrita o público, as autoridades civis e religiosas? Muito simples. Basta cortar trechos, amoldar frases, e a censura efetuou seu papel. Seitas acadêmicas, sobretudo as mais próximas da esquerda ou da direita, são pródigas no uso do método eficaz. É o que efetuam muitos seguidores de Heidegger, Carl Schmitt, e outros pensadores acusados de cumplicidade ou identidade com o nazismo. É possível discutir a veracidade de todas as acusações, mas os textos completos devem ser lidos, sem cortes piedosos ou espertos.

Segundo muitos comentadores, Schmitt seria inocente dos atos perpetrados por Hitler e asseclas. Os autores “esquecem” os louvores de Schmitt a Hitler, em especial no texto O Füher protege o direito. Dizer por exemplo que os “excessos bárbaros e o poder arbitrário” não seriam objeto de Schmitt, beira o hediondo. Mas para que tamanha retórica, se é possível ler o próprio jurista, em momentos nos quais a sorte dos judeus estava sendo jogada pelos nazistas, com aplauso de Schmitt?

Sigamos o hino de 1935 entoado, em publicação no Deutsche Juristen Zeitung, do qual Schmitt era editor. Ali se anuncia que em 15 de setembro o Reichstag criou leis sobre a bandeira, a cidadania, a proteção do sangue e da honra alemã. O Parlamento, diz Schmitt, ao editá-las assumiu a si mesmo como “o próprio povo alemão, conduzido pelo movimento nacional socialista e obediente ao Füher Adolf Hitler; as leis desse povo são desde séculos a primeira Constituição alemã da liberdade”. Até aquela data o povo só conhecera liberalidades (Libertäten) ou liberalismo (Liberalismus). A liberdade era “arma e slogan nas mãos de todos os inimigos e de todos os parasitas da Alemanha (...) porque as Constituições liberais são formas de mascaramentos típicos da dominação estrangeira”. Entende-se a crítica à Constituição alemã em Schmitt: ela não era a do Estado Novo, do movimento nazista e nem do povo. Com as leis racistas, “os conceitos de nossa Constituição se tornaram novamente alemães”. As constituições anteriores “não falavam do sangue e da honra alemã. A palavra ‘alemão’ só nelas surge para sublinhar que ‘todos os alemães’ são iguais perante a lei’”. Mas esta frase, afiança, “servia apenas para tratar em pé de igualdade os que não pertencem à mesma raça (Artungleiche) dos alemães, e para considerar como alemães todos os que eram iguais diante da lei”.

E se a lei que ordena a exclusão dos judeus não for assumida pelo povo? Neste caso, anuncia Schmitt, “o Füher evocou a possibilidade de um novo exame da questão”. Se “a solução legal” não der certo, “a decisão pode ser transferida para o Partido (...) o qual é declarado o vigia da santidade völkisch, o protetor da Constituição”. Hitler, “juiz supremo da nação”, imporia o movimento nacional socialista “como protetor de nossa Constituição”. Termina seu hino o jurista dizendo : os alemães devem cuidar para que “o nosso direito não se decomponha nas mãos do demônio sem coração que é a degenerescência (Entartung)”.

Existiu coisa pior na Alemanha da época? Sim. Vejamos o que diz Fr. Gebhardt em 1933, sobre a raça e o cristianismo: “Israel foi o povo escolhido (Volk), mas Deus o rejeitou e deu o Evangelho para um ‘povo’(Volk) que daria seu fruto (os alemães)”. E J. Hossenfelder, bispo de Brandemburgo: “Rejeitamos a missão judia na Alemanha enquanto os judeus possuírem o direito de cidadania e, então, o perigo do ocultamento da raça e do abastardamento continuarem” (Cf. E. Voegelin : Hitler e os Alemães, SP, É Realizações Ed., 2008, p. 218). Schmitt é antisemita de modo igual, e sua doutrina não passa de propaganda genocida. Usá-lo em nossos dias é retomar horrores que levaram ao Holocausto. Quem possua entranhas e cérebro, com certeza pensará muito antes de usar os seus textos para balizar qualquer ação pública no mundo e no Brasil.